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Antologia Canina

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Antologia

       Descrição: beagle-puppy_496x372

 

CANINA

 

Extrato       Conto       Crônica

 

 

GRACILIANO RAMOS

                              Baleia

ORÍGENES LESSA

    Madrugada

CECÍLIA MEIRELES

       Apenas um cão  

 

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Um experimento editorial

O título da obra expressa seu objetivo: recolher e divulgar os melhores contos e crônicas caninas p.p. ditas e alguns  embutidos nos romances. São partes do texto extraídos de  romances, que adquiriram vida própria como conto. Foi o que fizeram com Baleia, uma  parte extraída do romance Vidas secas, que adquiriu vida própria como conto e tornou-se um clássico.

Assim, fizemos com José Saramago, Paul Auster, Ciro Alegria, Tibor Déry, Jack London e Virginia Woolf. Muitos dos cães protagonistas aparecem em diversas partes do romance ou se constituem no ator principal. No entanto, extraímos apenas uma parte contínua do texto, onde o nosso “fiel amigo” aparece em sua melhor forma.  

Trata-se de um experimento editorial para verificar sua aceitação pública. Vamos continuar recolhendo tais “pérolas” literárias tendo em vista a compilação de uma antologia canina.  

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Baleia

                                                    

                                                                                    Graciliano Ramos

A cachorra Baleia estava para morrer. Tinha emagrecido, o pêlo caíra-lhe em vários pontos, as costelas avultavam num fundo róseo, onde manchas escuras supuravam e sangravam, cobertas de moscas. As chagas da boca e a inchação dos beiços dificultavam-lhe a comida e a bebida.

Por isso Fabiano imaginara que ela estivesse com um princípio de hidrofobia e amarrara-lhe no pescoço um rosário de sabugos de milho queimados. Mas Baleia, sempre de mal a pior, roçava-se nas estacas do curral ou metia-se no mato, impaciente, enxotava os mosquitos sacudindo as orelhas murchas, agitando a cauda pelada e curta, grossa na base, cheia de moscas, semelhante a uma cauda de cascavel.

Então Fabiano resolveu matá-la. Foi buscar a espingarda de pederneira, lixou-a, limpou-a com o saca-trapo e fez tenção de carregá-la bem para a cachorra não sofrer muito. Sinhá Vitória fechou-se na camarinha, rebocando os meninos assustados, que advinhavam desgraça e não se cansavam de repetir a mesma pergunta:

- Vão bulir com a Baleia?

Tinham visto o chumbeiro e o polvarinho, os modos de Fabiano afligiam-nos, davam-lhes a suspeita de que Baleia corria perigo. Ela era como uma pessoa da família: brincavam juntos os três, para bem dizer não se diferenciavam, rebolavam na areia do rio e no estrume fofo que ia subindo, ameaçava cobrir o chiqueiro das cabras.

Quiseram mexer na taramela e abrir a porta, mas sinhá vitória levou-os para a cama de varas, deitou-os e esforçou-se por tapar-lhes os ouvidos: prendeu a cabeça do mais velho entre as coxas e espalmou as mãos nas orelhas do segundo. Como os pequenos resistissem, aperreou-­se e tratou de subjugá-los, resmungando com energia. Ela também tinha o coração pesado, mas resignava-se: naturalmente a decisão de Fabiano era necessária e justa. Pobre da Baleia.  

Escutou, ouviu o rumor do chumbo que se derramava no cano da arma, as pancadas surdas da vareta na bucha. Suspirou. Coitadinha da Baleia.

Os meninos começaram a gritar e a espernear. E como sinhá Vitória tinha relaxado os músculos, deixou escapar o mais taludo e soltou uma praga: - Capeta excomungado.

Na luta que travou para segurar de novo o filho rebelde, zangou-se de verdade. Safadinho. Atirou um cocorote ao crânio enrolado  na coberta vermelha e na saia de ramagens. Pouco a pouco a cólera diminuiu, e sinhá Vitória, embalando as crianças, enjoou-se da cadela achacada, gargarejou muxoxos e nomes feios. Bicho nojento, babão.  Inconveniência deixar cachorro doido solto em casa. Mas compreendia que estava sendo severa demais, achava difícil Baleia endoidecer e lamentava que o marido não houvesse esperado mais um dia para ver se realmente a execução era indispensável.

Nesse momento Fabiano andava no copiar, batendo castanholas com os dedos. Sinhá Vitória encolheu o pescoço e tentou encostar os ombros às orelhas. Como isto era  impossível, levantou um pedaço da cabeça. Fabiano percorreu o alpendre, olhando as baraúna e as porteiras, açulando um cão invisível contra animais invisíveis:

-Ecô! ecô!

Em seguida entrou na sala, atravessou o corredor e chegou à janela baixa da cozinha. Examinou o terreiro, viu Baleia coçando-se a e esfregar as peladuras no pé de turco, levou a espingarda ao rosto. A cachorra espiou o dono desconfiada, enroscou-se no tronco e foi-se desviando, até ficar no outro lado da árvore, agachada e arisca, mostrando apenas as pupilas negras. Aborrecido com esta manobra, Fabiano saltou a janela, esgueirou-se ao longo da cerca do curral, deteve-se no mourão do canto e levou de novo a arma ao rosto. Como o animal estivesse de frente e não apresentasse bom alvo, adiantou-se mais alguns passos. Ao chegar às catingueiras, modificou a pontaria e puxou o gatilho. A carga alcançou os quartos de Baleia, que se pôs latir desesperadamente.

Ouvindo o tiro e os latidos, sinhá Vitória pegou-se à Virgem Maria e os meninos rolaram na caca chorando alto. Fabiano recolheu-se. E Baleia fugiu precipitada, rodeou o barreiro, entrou no quintalzinho da esquerda, passou rente aos craveiros e às panelas de losna, meteu-se por um buraco da cerca e ganhou o pátio, correndo em três pés. Dirigiu-se ao copiar, mas temeu encontrar Fabiano e afastou-se para o chiqueiro das cabras. Demorou-se aí por um instante, meio desorientada, saiu depois sem destino, aos pulos.

Defronte do carro de bois faltou-lhe a perna traseira. E, perdendo muito sangue, andou como gente em dois pés, arrastando com dificuldade a parte posterior do corpo. Quis  recuar e esconder-se debaixo do carro, mas teve medo da roda.

Encaminhou-se aos juazeiros. Sob a raiz de um deles havia uma barroca macia e funda. Gostava de espojar-se ali: cobria-se de poeira, evitava as moscas e os mosquitos, e  quando se levantava, tinha as folhas e gravetos colados às feridas, era um bicho diferente dos outros. Caiu antes de alcançar essa cova arredada. Tentou erguer-se, endireitou a cabeça e estirou as pernas dianteira, mas o resto do corpo ficou deitado de banda. Nesta posição torcida, mexeu-­se a custo, ralando as patas, cravando as unhas no chão, agarrando-se nos seixos miúdos. Afinal esmoreceu e aquietou-se junto às pedras onde os meninos jogavam cobras mortas. Uma sede horrível queimava-lhe a garganta. Procurou ver as pernas e não as distinguiu: um nevoeiro impedia-lhe a visão. Pôs-se a latir e desejou morder Fabiano. Realmente não latina: uivava baixinho, e os uivos iam diminuindo, tomavam-se quase imperceptíveis.

Como o sol a encandeasse, conseguiu adiantar-se umas polegadas e escondeu-se numa nesga de sombra que ladeava a pedra. Olhou-se de novo, aflita. Que lhe estaria acontecendo? O nevoeiro engrossava e aproximava­se. Sentiu o cheiro bom dos preás que desciam do morro, mas o cheiro vinha fraco e havia nele partículas de outros viventes. Parecia que o morro se tinha distanciado muito.  Arregaçou o focinho, aspirou o ar lentamente, com vontade de subir a ladeira e perseguir os preás, que pulavam e corriam em liberdade.

Começou a arquejar penosamente, fingindo ladrar. Passou a língua pelos beiços torrados e não experimentou nenhum prazer. O olfato cada vez mais se embotava: certamente os preás tinha fugido. Esqueceu-os e de novo lhe veio o desejo de morder Fabiano, que lhe apareceu diante dos olhos meio vidrados, com um objeto esquisito na mão. Não conhecia o objeto, mas pôs-se a tremer, convencida de que ele encerrava surpresas desagradáveis. Fez um esforço para desviar-se daquilo e encolher o rabo. Cerrou as pálpebras pesadas e julgou que o rabo estava encolhido. Não poderia morder Fabiano: tinha nascido perto dele, numa camarinha, sob a cama de varas, e consumira a existência em submissão, ladrando para juntar o gado quando o vaqueiro batia palmas.

O objeto desconhecido continuava a ameaçá-la. Conteve a respiração, cobriu os dentes, espiou o inimigo por baixo das pestanas caídas. Ficou assim algum tempo, depois  sossegou. Fabiano e a coisa perigosa tinham-se sumido. Abriu os olhos a custo. Agora havia uma grande escuridão, com certeza o sol desaparecera. Os chocalhos das cabras tilintaram para os lados do rio, o fartum do chiqueiro espalhou-se pela vizinhança.

Baleia assustou-se. Que faziam aqueles animais soltos de noite? A obrigação dela era levantar-se, conduzi-los ao bebedouro. Franziu as ventas, procurando distinguir os  meninos. Estranhou a ausência deles.

Não se lembrava de Fabiano. Tinha havido um desastre, mas Baleia não atribuía a esse desastre a importância em que se achava nem percebia que estava livre de responsabilidades. Uma angústia apertou-lhe o pequeno coração. Precisava vigiar cabras: àquela hora cheiros de suçuarana deviam andar pelas ribanceiras, rondar as moitas afastadas. Felizmente os meninos dormiam na esteira, por baixo do caritó onde sinhá Vitória guardava o cachimbo.

Uma noite de inverno, gelada e nevoenta, cercava a criaturinha. Silêncio completo,  nenhum sinal de vida nos arredores. O galo velho não cantava no poleiro, nem Fabiano roncava na cama de varas. Estes sons não interessavam Baleia, mas quando o galo batia as asas e Fabiano se virava, emanações familiares revelavam-lhe a presença deles. Agora parecia que a fazenda se tinha despovoado.

Baleia respirava depressa, a boca aberta, os queixos desgovernados, a língua pendente e insensível. Não sabia o que tinha sucedido. O estrondo, a pancada que recebera  no quarto e a viagem difícil no barreiro ao fim do pátio desvaneciam-se no seu espírito. Provavelmente estava no cozinha, entre as pedras que serviam de trempe. Antes de se deitar, sinhá Vitória retirava dali os carvões e a cinza, varria com um molho de  vassourinha o chão queimado, e aquilo ficava um bom lugar para cachorro descansar. O calor afugentava as pulgas, a terra se amaciava. E, findos os cochilos, numerosos preás corriam e saltavam, um formigueiro de preás invadia a cozinha.

A tremura subia, deixava a barriga e chegava ao peito de Baleia. Do outro peito para trás era tudo insensibilidade e esquecimento. Mas o resto do corpo se arrepiava, espinhos de mandacaru penetravam na carne meio comida pela doença. Baleia encostava a cabecinha fatigada na pedra. A pedra estava fria, certamente sinhá Vitória tinha deixado o fogo apagar-se muito cedo.

Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. E lamberia as mãos de Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ela, rolariam com ela num pátio enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás, gordos, enormes.

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Fonte: RAMOS, Graciliano. Vidas secas, 82ªed. Rio de Janeiro: Record. 2001. p. 85-91.

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Madrugada

Orígenes Lessa

Dobrei a esquina do hotel, cansado e com sono. Caminhara o dia inteiro, tomando contato com a cidade, olhando vitrinas, examinando tipos, lendo tabuletas e painéis, admirando mulheres, ouvindo frases soltas, de diálogos alheios, procurando reconstituir, pela frase mal ouvida, o rumo da conversa, o drama, a intriga, o mexerico, os interesses que uniam aquela gente cheia de gestos e abraços.

Duas horas da manhã. Às sete, devia estar no aeroporto. Foi quando me lembrei de que, na pressa daquela manhã, ao sair do hotel, deixara no banheiro o meu creme dental. Examinei a rua. Nenhuma farmácia aberta. Dei meia volta, rumei por uma avenida qualquer, o passo mole e sem pressa, no silêncio da noite. Alguma haveria de plantão... Rua deserta. Dois ou três quarteirões mais além, um guarda. Ele me daria indicação. Deu. Farmácia Metrópole, em rua cujo nome não guardei.

- O senhor vai por aqui, quebra ali, segue em frente.

Dez ou doze quarteirões. A noite era minha. Lá fui. Pouco além, dois tipos cambaleavam. Palavras vazias no espaço cansado. Atravessei, cauteloso, para a calçada fronteira. E já me esquecera dos companheiros eventuais da noite sem importância, quando estremeci, ao perceber, pelas pisadinhas leves, um cachorro atrás de mim. Tenho velho horror a cães desconhecidos. Quase igual ao horror pelos cães conhecidos, ou de conhecidos, cuja lambida fria, na intimidade que lhes tenho sido obrigado a conceder, tantas vezes, me provoca uma incontrolável repugnância.

Senti um frio no estômago. Confesso que me bambeou a perna. Que desejava de mim aquele cão ainda não visto, evidentemente à minha procura? Os meus bêbados haviam dobrado uma esquina. Estávamos na rua apenas eu e aqueles passos cada vez mais próximos. Minha primeira reação foi apressar a marcha. Mas desde criança me ensinaram que correr é pior. Cachorro é como gente: cresce para quem se revela o mais fraco. Dominei-me, portanto, só eu sei com que medo. O bicho estava perto. Ia atacar-me a barriga da perna? Passou-me pela cabeça o grave da situação. Que seria de mim, atacado por um cão feroz numa via deserta, em plena madrugada, na cidade estranha? Como me arranjaria? Como reagiria? Como lutar contra o monstro, sem pedra nem pau, duas coisas tão úteis banidas pela vida urbana?

Nunca me senti tão pequeno. Efeito do uísque de má sorte, ingerido naquela boate encontrada ao acaso, tomou-me uma descontrolada sensação de desamparo. Eu estava só, na rua e no mundo. Ou melhor, a rua e o mundo estavam cheios, cheios daqueles passos cada vez mais vizinhos. Sim, vinham chegando. Não fui atacado, porém. O animal já estava ao meu lado, teque-teque, os passinhos sutis. Bem... Era um desconhecido inofensivo. Nada queria comigo. Era um cão notívago, alma boêmia como tantos homens, cão sem teto que despertara numa soleira de porta e sentira fome. Com certeza, saindo em busca de latas de lixo e comida ao relento.

Um doce alívio me tomou. Logo ele estaria dois, três, dez, muitos passinhos miúdos e leves cada vez mais à frente, cada vez mais longe... Não se prolongou, porém, a repousante sensação. O animal continuava a meu lado, acertando o passo com o meu - teque-teque, nós dois sozinhos, cada vez mais sós...  Apressei a marcha.

Lá foi ele comigo. Diminuí O bichinho também. Não o olhara ainda. Sabia que ele estava a meu lado. Os passos o diziam. O vulto. Pelo canto do olho senti que ele não me olhava também, o focinho para a frente, o caminhar tranqüilo, muito suave, na calçada larga.

- Bem. na esquina ele me deixa - pensei quase em voz alta.

Para a esquina fomos. Parei, vagamente hesitante, sem saber se era naquela ou na esquina seguinte que devia dobrar. E imediatamente vi que o bicho se detinha e me fixava.

- Não me liberto deste bicho - pensei, olhando-o, quase disposto a lutar, a enfrentá-lo com decisão.

Mas o bicho desviou os olhos. É traiçoeiro e covarde - pensei. - Se não tomo cuidado, ele me assalta. E de novo o medo me alcançou. O animal devia estar com fome. Talvez estivesse desesperado. Não podia penetrar-lhe as intenções, é claro. Se ele ao menos me olhasse, poderia formar alguma idéia. Mas ele olhava, com uma curiosidade despreocupada, para outro lado.

Dei dois passos à frente, ele fez menção de marchar. Fiz meia volta à esquerda e atravessei a rua. O animal vacilou, ficou um instante parado.

- Desistiu - disse comigo.

E estuguei o passo. Mas ainda não alcançara o outro lado, já o tinha junto a mim, as patinhas sutis, em ritmo cadenciados pipocando no chão.

- Ele há de parar em algum poste. Nesse momento, fujo.

Mas os postes sucediam-se e caso raro entre os cães, ele continuava indiferente. Não farejava, não hesitava, não parava, parecia farto dos cheiros caninos que em todas as árvores, postes, quinas e esquinas tanto excitam os seus irmãos de toda a terra.

Assim foi que continuamos, às vezes mais rápido, outras vezes mais lento, metros, metros e metros, ao longo de calçadas, cruzando ruas, quadras, quadras, quadras. O medo maior havia passado. Já caminháramos juntos vários quarteirões, e ele não dera indício maior de hostilidade. Provavelmente nada teria contra mim. Não era de briga. Mas a sua presença me transmitia um indizível desconforto. Marchávamos quarteirões sobre quarteirões sem que houvesse outro alguém nas ruas de iluminação visivelmente racionada. E aquela sensação de continuar sozinho ao sabor dos caprichos de uma dentada de rafeiro sem dono, sem ninguém para quem apelar, sem porta aberta onde buscar refúgio, punha-me um aperto na alma, impossível de negar.

Com que alívio, num dobrar de esquina, avistei o letreiro luminoso que anunciava a farmácia. Luz vinha do interior. Estava aberta. Lá encontraria outros seres humanos, ouviria voz humana, dividiria com os outros a atenção do animal. Talvez se perdesse por entre os balcões ou por entre as pernas de outros possíveis clientes. Talvez se interessasse por eles. Talvez se assustasse com as luzes da casa e arrepiasse carreira. Ou talvez, pelo menos, estivesse distraído à minha saída, permitindo-me a fuga.

Entrei. Creme dental. Por que não uma escova nova? Quanto custava a

loção de barba anunciada naquele cartaz com um homem sorridente que afinal descobrira o segredo de conquistar o olhar e o coração de todas as mulheres? Era caro? Não era? Eu queria, na verdade, encher tempo. Havia que descorçoar o meu estranho companheiro de madrugada que felizmente ficara lá fora. Após alguns minutos, já pago o creme dental e uma latinha de talco, voltei-me para a porta. Não o vi. Desaparecera, afinal! Boa-noite, satisfeito, e ganhei a rua. Mal dei os primeiros passos, porém, vi que era acompanhado outra vez.

- Você não pirou, seu cachorro?

O cachorro me olhou pela primeira vez, com olhos tão doces e interrogativos, que me comovi. Pareceu-me ver o desespero da sua incompreensão, menos pelas palavras que pela aspereza do tom. Parei. E foi numa tentativa de reconciliação,

- Como é, compadre... você não tem casa?

Naturalmente ele não entendeu as palavras, mas sentiu que o tom eraoutro. Havia agora uma tranqüilidade amiga nos seus olhos bons. Recomecei a caminhada, pleque-pleque ele seguia, sereno, humilde,cabisbaixo. Resolvi fazer experiências. Dobrava esquinas, cruzava as ruas, ia de uma para outra calçada. Sempre que mudava de rumo ele estava a meu lado, não atrás, não à frente, silencioso e calmo, sem mostrar surpresa, jeito cansado de resignação e doçura.

Voltei a falar-lhe várias vezes. Sempre que falava, detinha-me. Ele se detinha também e me encarava com uma curiosidade muda e mansa. Não havia sofrimento na sua impossibilidade de responder. Nem esforço. Era um pobre cão de rua na madrugada sem homens nem carros nem barulhos.

Como se chamaria? Fiel? Sultão? Peri? Lord? Leão? Joli? Chamei vários nomes e nenhum teve sentido. Era cão sem dono e sem nome, apesar de não dar impressão de desnutrido, que ele saberia seguramente se defender na batalha pelos ossos da rua. Mas não estaria com fome?

Assaltou-me de novo aquela idéia. Aquela marcha silenciosa ao lado do homem desconhecido talvez não significasse outra coisa.

- Está com fome, velhinho?

Seus olhos doces nada disseram, mas ainda assim convenci-me de que era esse o problema. Tive remorso da minha insensibilidade. Fiel, Lord ou Sultão, com ou sem dono, ele tinha fome. Por isso caminhava pela noite adentro. Por isso aderia ao primeiro passante. E alonguei os olhos a ver se descobria algum bar ou botequim. Alguns quarteirões adiante, numa rua transversal, havia feixes de luz sobre a calcada. Para lá rumei, certo de que o meu amigo me acompanharia. Os passinhos se amiudaram em meu seguimento. Era um bar de última classe. Um mulato dormia, a cabeça caída sobre a mesa de ferro.

- Tem queijo?

Atirei-o ao cachorro. O animal olhou-o com indiferença.

- Mortadela?

O meu companheiro não se mostrou interessado. Vi um pernil de porco. Pedi um pedaço. O português do balcão me achava muito mais bêbado que o seu bebedor solitário e adormecido. Mas satisfez a encomenda. Abaixei-me, chamei o cão, ele se aproximou agitando a cauda, estendi-lhe, sem o jogar no chão, o naco cheiroso e tentador. O cachorro, os olhos onde nadava uma doçura ainda mais contagiosa, contemplou longamente a oferta inesperada e voltou-se para a rua, como a dizer que não tinha fome.

- Quanto é?

Paguei a despesa e saí, meu amigo a meu lado, teque-teque na calçada.

- É amigo desinteressado - pensei. - Talvez esteja aqui para me proteger. Sentiu, talvez, que estou correndo algum perigo.

E um receio novo me encheu o coração. Dois quarteirões adiante ouviam-se os passos de um noctâmbulo apressado, atravessando a rua. Nisso, avistei as luzes do hotel. Senti a necessidade de correr para ele, de fugir novamente. Atravessei a rua e, pela primeira vez, o meu cão ficou do outro lado, pensativo. Tomou-me um medo supersticioso.

- Como é! Você não vem?

Sem hesitação e sem festa, como num gesto de rotina, ele baixou a cabeça e veio ao meu encontro, continuou a marchar comigo. Meu coração se alegrou: Você está aqui para me proteger, não é, velhinho? Ele continuou caminhando, de cabeça humilde. Estávamos na porta do hotel.

- Quer entrar?

Ele me contemplou com o jeito triste de quem sabia ser inútil o convite. A larga porta iluminada não fora feita para os cães de rua. Examinei o meu relógio de pulso. Três da manhã. Dentro de quatro horas deveria estar no aeroporto.

- Então adeus, camarada ...

Curvei-me, acariciei-lhe a cabeça, ele fez um movimento macio de agrado e de gratidão. Dois ou três minutos depois eu estava no meu apartamento do segundo andar. Cheguei-me à janela. O cachorro continuava na calçada, solitário e sereno, olhando talvez com tristeza as luzes do hotel imponente.

Nisso, vem da esquina, do outro lado, um vulto de homem. Os passos ressoam. O vulto cambaleia na noite. O animal voltou os olhos, ficou a contemplá-lo, por alguns segundos. O homem caminhava pela calçada fronteira, passava agora sob as luzes fortes, continuava, incerto e só. Foi quando o meu companheiro se movimentou. Cruzou a rua, teque-teque, foi chegando, acertou o passo com o desconhecido. Vi-os caminhando lado a lado, mais um quarteirão. Na segunda esquina o homem dobrou. Meu amigo também.

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Fonte: Perez, Renard. Escritores Brasileiros Contemporâneos, v. I .Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970. (Conto publicado no livro LESSA, Orígenes. Balbino, Homem do Mar, Editora José Olympio: Rio de Janeiro, 1960, págs. 124-131).

                                                         

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Apenas um cão

Cecília Meireles

Subidos, de ânimo leve e descansado passo, os quarenta degraus do jardim – plantas em flor, de cada lado; borboletas incertas; salpicos de luz no granito eis-me no patamar. E aos meus pés, no áspero capacho de coco, à frescura da cal no pórtico, um cãozinho triste interrompe o seu sono, levanta a cabeça e fita-me. É um triste cãozinho doente, com todo o corpo ferido; gastas, as mechas brancas do pêlo; o olhar dorido e profundo, com esse lustro de lágrima que há nos olhos das pessoas muito idosas.

              Com grande esforço, acaba de levantar-se. Eu não lhe digo nada; não faço nenhum gesto. Envergonho-me haver interrompido o seu sono. Se ele estava feliz ali, eu não devia ter chegado. Já que lhe faltavam tantas coisas, que ao menos dormisse: também os animais devem esquecer, enquanto dormem... Ele, porém, levantava-se e olhava-me. Levantava-se com a dificuldade dos enfermos graves, acomodando as patas da frente, o resto do corpo, sempre com os olhos em mim, como à espera de uma palavra ou de um gesto. Mas eu não o queria vexar nem oprimir. Gostaria de ocupar-me dele: chamar alguém, pedir-lhe que o examinasse, que receitasse, encaminhá-lo para tratamento... Mas tudo é longe, meu Deus, tudo é tão longe. E era preciso passar. E ele estava na minha frente, inábil, como envergonhado de se achar tão sujo e doente, com o envelhecido olhar numa espécie de súplica.

              Até o fim da vida guardarei seu olhar no meu coração. Até o fim da vida sentirei esta humana infelicidade de nem sempre poder socorrer, neste complexo mundo dos homens. Então, o triste cãozinho reuniu todas as suas forças, atravessou o patamar, sem nenhuma dúvida sobre o caminho, como se fosse um visitante habitual, e começou a descer as escadas e as suas rampas, com plantas em flor de cada lado, as borboletas incertas, salpicos de luz no granito, até o limiar da entrada. Passou por entre as grades do portão, prosseguiu para o lado esquerdo, desapareceu.

              Ele ia descendo como um velhinho andrajoso, esfarrapado, de cabeça baixa, sem firmeza e sem destino. Era, no entanto, uma forma de vida. Uma criatura deste mundo de criaturas inumeráveis. Esteve no meu alcance, talvez tivesse fome e sede: e eu nada fiz por ele; amei-o, apenas, com uma caridade inútil, sem qualquer expressão concreta. Deixei-o partir, assim, humilhado, e tão digno, no entanto; como alguém que respeitosamente pede desculpas por ter ocupado um lugar que não era o seu. Depois pensei que nós todos somos, um dia, esse cãozinho triste, à sombra de uma porta. E há o dono da casa e a escada que descemos, e a dignidade final da solidão.

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Fonte: www.paginasavulsasdeliteratura.br  (em 17/06/2012)

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