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Antologia canina

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Antologia

    

 

CANINA

 

Extrato        Conto          Crônica

 

 

CIRO ALEGRIA

Osso, o cão bandoleiro

 

JOSÉ J. VEIGA

O cachorro canibal

 

MÔNICA GRIMALDI

Cabo Dick, um herói nacional

 

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Um experimento editorial

 

O título da obra expressa seu objetivo: recolher e divulgar os melhores contos e crônicas caninas p.p. ditas e alguns  embutidos nos romances. São partes do texto extraídoso de  romances, que adquiriram vida própria como conto. Foi o que fizeram com Baleia, uma  parte extraída do romance Vidas secas, de Graciliano Ramos, que adquiriu vida própria como conto e tornou-se um clássico.

Assim fizemos com Saramago, Paul Auster, Ciro Alegria, Tibor Déry, Jack Londo e Virginia Woolf. Muitos dos cães aparecem em diversas partes do romance ou se constituem no ator principal. No entanto extraímos apenas uma parte contínua do texto, onde o nosso “fiel amigo” aparece em sua melhor forma.  

Trata-se de um experimento editorial para verificar sua aceitação pública. Vamos continuar recolhendo tais “pérolas” literárias tendo em vista a compilação de uma antologia canina.  

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Osso, o cão bandoleiro

                                                                                          

     Ciro Alegria

     Nuvens acinzentadas começaram a se amontoar no céu e um vento forte soprava ajuntando os capinzais. Os cães começaram a reunir o rebanho assim que Antuca ordenou. Vicenta já ia chegar. Há pouco a tinha visto descendo, carregada com um grande fardo. Além disso, seu olhar tinha encontrado apenas o dela, por mais que, durante todo o dia examinasse cuidadosamente os horizontes. Pancho não veio. Sem dúvida levou o rebanho para outro lado.

     Mas, eis que de repente, rompendo com suas silhuetas negras a uniformidade amarelada dos capinzais, dois ginetes apareceram ao longe. Avançavam a galope. Logo se acercaram. Seus ponchos flutuavam com o vento e tinham o chapéu de junco de lado. Levavam as carabinas na cabeça da sela. Um deles, o que ia na frente, desenrolou a corda que estava atravessada no seu corpo, transpassando-lhe o peito.

     Chegando junto do rebanho, aquele que tinha a corda, jogou-a habilmente no pobre Osso, que foi o primeiro que encontraram. Esse não teve tempo de pular para frente, a fim de evitar que o aro do laço se ajustasse no seu corpo. Quando percebeu, já estava preso pelo pescoço. O laçador tinha preparado um aro pequeno e mal contornou o pescoço, deu um puxão rápido. A corda de couro flexível, bem engordurado, se fechou, correndo facilmente dentro da reluzente argola de aço. Antuca foi ver o que acontecia. Vicenta, ao contrário, notando, quando descia, a presença dos dois homens, se escondeu atrás de umas pedras. Já estava muito perto e distinguia a cena claramente. Wanka e os outros cachorros se aproximaram dos intrusos latindo. Um cão amarelo, de pêlo liso, apareceu atrás deles. Começou a grunhir para os latidores e visivelmente se preparava uma batalha campal. O pobre Osso, entretanto, arquejava, puxando inutilmente a corda. O homem a segurava com a mão firme, sorrindo.

     - Fora Bonamigo - o outro cavaleiro repreendeu o cão amarelo e este, com o rabo entre as pernas foi estirar-se bem longe.

      Antuca chegou nesse momento:

      - Solte, solte o meu cão - gritou.

      O laçador replicou tranqüilamente.

      - O que tá pensando? Que eu jogo o laço à toa?

      - Solte-o, se num é do senhor - argumentou Antuca, que tinha o rosto pálido e o olhar brilhante.

       Vicenta, enquanto isso, não perdia um detalhe, assomando somente os olhos. Sim, esse era Julián Caledón e o outro seu irmão Blas. Anos atrás, na festa de Sancopampa dançou muito com Julián. Era o mesmo de antes: um cholo alto, citrino, de nariz aquilino e grandes olhos castanhos. Seu bigode ralo caía desordenadamente sobre os lábios grossos. Não tinha envelhecido. Agora se mantinha serenamente montado no seu cavalo negro. Tinha o olhar duro e enérgico. E Vicenta se lembrou que aquela vez no baile, desejou Julián e só não se entregou porque seu pai não tirava o olho de cima. Já tinha má fama o cholo. E sentiu que aquele desejo antigo e soterrado, renascia. Quase lamentou ter se escondido. Queria que Julián a descobrisse e depois de uma luta breve, a possuísse nomeio da selvagem aspereza do capinzal. Mas eles não a viam. Muito menos Vicenta se decidia sair.

     - Soltem ele por Deusinho, soltem ele - implorava Antuca.

     Os cães com seus gritos, grunhiam aos ginetes e mantinham uma atitude agressiva. Wanka tinha o pêlo do pescoço eriçado. A uma palavra de Antuca eles teriam atacado. Julián que olhava com ar de compassiva indulgência, pensou nessa possibilidade e disse ao seu irmão:

      - Mete bala nesses cães ...

      Blas preparou sua carabina, mas Antuca se apressou em fazer com que eles se afastassem e se calassem.

       - Sabe quem sou eu? - perguntou Julián.

       - Não, num sei - respondeu Antuca com a voz aflita.

       - Julián Celedón - disse com aprumo e orgulho.

       Antuca ficou gelada. Claro que tinha ouvido falar dos Celedônios. Tinham fama de bandoleiros. O cholo ficou um instante gozando o efeito produzido por suas palavras e depois perguntou:

       - Estes cães são da cria de Simón Robles?

       - São.

       - Ah! é o que eu queria ...

       E olhou para frente para continuar a marcha. Mas lembrou de alguma coisa.

        - Como si chama?

        Antuca vacilava. Então eles estavam pensando mesmo levá-Io de verdade? O pobre Osso estava ali com a língua para fora, puxando a corda.

       - Diz como si chama, menina boba... E agradece que num te faço nada porque é muito pequena ainda ...

       Antuca estremeceu:

       - Chama Osso.

      - Osso! - repetiu Julián para o cachorro. Osso! Que nome engraçado.

       E esporeou seu cavalo. Osso se negava a caminhar, por isso Julián o arrastou durante um bom trecho.

       - Açoite nele - ordenou ao Blas.

        Este que até o momento avançava com a carabina dirigida para os outros cachorros, aproximou seu cavalo e golpeou Osso com a correia da rédea. O cão ficou de lado para estirar-se de novo. Chamaram Bonamigo, que se acercou de Osso com ar de camaradagem, mas este grunhiu, fulminando-o com seu olhar turvo e avermelhado que faiscou subitamente. Julián, então, receitou mais açoite para que o cativo ficasse de pé e como não ficava, continuou arrastando-o. Assim entre chicotadas e arrastões, prosseguiram até que Antuca os viu desaparecer atrás de uma lombada. Ela, que até o momento esteve paralisada pelo medo, começou a chorar a gritos. Os cachorros uivavam, olhando para o lugar por onde tinham ido.

       Vicenta desceu e vendo a dor de sua irmã e dos cachorros sentiu que sua emoção anterior se desvanecia ... E quantas vezes esteve Osso na sua saia, quando era pequeno! Coitadinho! Logo tratou de consolar Antuca:

      - Num chore, num chore mais. Da outra ninhada vamos separar um cachorrinho pra você ...

       Antuca continuava choramingando.

     - Num chore, Antuquinha. Num chore. Vamos separar um cachorrinho e vamos pôr o nome de Cravo como você quer ...

      Mas ela também sentia dó e pelas suas faces escorriam grossas lágrimas.

      Osso escutava os uivos de seus companheiros e pensou também que distinguia o pranto de Antuca. Sim, ela chorava lamentando-se. Seu coração palpitante de cativo se encheu de nostalgia e rebeldia. Ele se negou a caminhar cada vez com maior brio. O arrasto lhe machucava as costelas e o enlameava, mas continuava recusando-se a usar as pernas. Afinal, conseguiu enganchar-se numas pedras. Julián amaldiçoou e praguejou:

      - Arrancaria tua cabeça duma só vez!

      Parou seu cavalo e virou para o irmão que o acompanhava de perto:

       - Como é? Tem mal gênio o tal Osso né ...

       Ao que Blas replicou:

       - Talvez ele queira por bem ...

       Julián desceu do cavalo e se aproximou de Osso que olhava para ele com ódio e rancor. Bonamigo parou a uma distância prudente. O homem acocorou-se ao lado de Osso, cuja respiração dificil requeria atenção. A corda lhe apertava o pescoço marcando um sulco no pelo. Quando tentou por a mão na corda, Osso mostrou os caninos, por isso mudou de tática e pisou o pescoço para imobilizá-lo. Depois afrouxou o nó e começou a dar carinhosas palmadas na cabeça e no dorso.

       - Osso, Ossinho, agora vai andar. Não se maltrate assim, Ossinho, vai ficar bom ...

        Osso continuou deitado no meio das pedras, mas deu um gemido.

       - Viu? disse Blas. Agora deixa. Vai ver como ele vai andar ... Julián

       cavalgou e depois deu um leve puxão na corda.

       - Osso, Ossinho, anda, rapaz ...

       - Rapaz? caçoou Blas - Até como, cristão tá tratando o cachorro ...

       Ambos riram.

       - Mas olha, ele num anda - disse Julián, estirando com mais força. - Desce e açoite nele até que ande ...

       Osso estava desamparado. Já não escutava os uivos, nem o pranto. Tirando as vozes dos seus raptores, o silêncio da solidão tinha caído sobre os vales altos. Mas não pensou andar. Que o arrastassem até a asfixia ou a liberação. Porque teriam que se cansar e soltá-lo. Assim pensava. Como se pode ver, não conhecia o homem, pois estava acostumado com as dóceis ovelhas, com as mãos suaves de Vicenta e de Antuca e com algumas bordoadas que Timoteo dava de vez em quando, impondo respeito diante da gamela da merenda. Agora conheceria o homem, animal teimoso e duro, de quem não se podia esperar nada sem prévia obediência.

       Realmente, Blas desceu e desamarrou um açoite de arrebanhar gado que pendurava no arcão traseiro da sua sela.

       - Anda, caminha! - disse, aproximando-se de Osso e agitando o açoite.

       O cachorro continuou deitado no meio das pedras. Preso ali, não sairia nem por bem, nem por mal. Desejava somente que soltassem o laço. Além do mais, a visão do açoite não lhe impressionou muito. É porque ele ignorava. As correiadas que tinha sofrido até agora, não lhe davam uma idéia da dor ardente do chicote.

      - Bem, então faz ele cantar - disse Julián.

       Blas levantou o açoite que tinha um cabo de madeira, e arremessou sobre Osso. Zumbiu e estalou, apesar do ruído surdo, por causa do pêlo abundante. O cinto de couro cingiu seu corpo num sulco ardoroso e candente, punçando-o e ao mesmo tempo, com uma vibração que lhe chegou até o cérebro como se fossem mil espinhas. O golpe se repetiu uma e outra vez, enquanto Julián puxava a corda. Osso se agitou um pouco e Blas foi ajudar jogando-o no meio das pedras. Deixaram que ele repousasse um pouco e depois o que tinha a corda começou a puxar outra vez. Osso tentou resistir novamente: não se levantou.

      - Dá, dá mais - ordenou Julián. e Blas perguntou:

      - Marco ele?

      - Marca ...

      O açoite se levantou descrevendo um círculo, depois voou sobre o corpo ofegante de Osso e, recolhendo-se rapidamente para dobrar a ponta, rebentou numa das ancas. Depois de um breve estalido a carne se abriu, vermelha como uma flor. Osso deu um uivado estridente.

       - Na outra também? perguntou Blas.

         - Não, num dá mais que pode dar vermes! Dá só assim ...

       E o açoite se levantou e caiu sobre o corpo trêmulo, zumbindo e vibrando ritmadamente. Osso sentiu que suas carnes ardiam. Ficou de pé para fugir, mas conseguiu ficar só de um lado, pois a corda o impediu. Com o estonteamento não se lembrou dela. Mas já não tratou de deitar-se novamente. Julián puxou e o outro lhe ordenou, agitando a cinta escura e flexível:

       - Anda!

       E Osso, rendido, entregue a urna renúncia dolorosa e sangrante, com a respiração curta, o corpo ardoroso e a cabeça em chamas, começou a caminhar. Um fio de sangue tíbio escorria pela perna. Descobriu que o homem era teimoso e implacável.

       Caminharam até noite alta. De repente, numa lombada se distinguiu ao longo urna luz palpitante. Julián parou seu cavalo e perfurou as sombras com um longo assobio. Um outro igual soou depois.

      - Taí - disse, começando a caminhar de novo.

      Um homem vestido com um poncho negro saiu para recebê-los, acompanhado de um cachorro que latiu sem muita vontade. Depois apearam na porta da choça escondida na escuridão. Ali também estava urna mulher que começou a atiçar o fogo, e urna criança que dormia num amontoado de cobertas. Osso foi amarrado numa das vigas que sustentava o teto de palha e os homens saíram com os cavalos para voltar logo depois e sentar-se num extremo da entrada. Mal iluminado pela luz avermelhada do fogo, começaram a conversar sobre a venda de um gado e depois contaram moedas tilintantes.

       A mulher serviu em grandes cuias urna sopa de favas, trigo e milho torrado. Os corpos enrigecidos pelo frio saboreavam com prazer a fumegante sopa quente. Julián separou urna porção de comida em sua cuia e levou ao cativo que recebeu, além disso, algumas palavras roucas e duras e também carinhosas palmadas. Osso comeu estimulado pela fome, mas com o peito ainda cheio de ódio. No mais profundo do seu íntimo tinha decidido odiar. Melhor dizendo, o ódio tinha enchido o peito, roxo e cálido, corno o sangue da sua ferida.

      A mulher apagou o fogo e os homens, depois de conversar um pouco enquanto mascavam a coca se acomodaram para dormir. Bonamigo e o outro cachorro se acocoraram aos pés de seus donos. Osso, solitário, ao lado da vigia, reclinou a cabeça no meio das pernas, tornado de urna grande angústia quando se lembrou do redil e de toda sua vida passada. Wanka e os demais companheiros já estariam dormindo na palha tíbia, entre os pêlos suaves, ou.talvez, latindo para os animais daninhos. Ao seu lado soaria o lento ruminar das ovelhas e, no dia seguinte, a vida tornaria, corno sempre, a amanhecer plácida e luminosa. Mas, para ele, talvez, já nada disso existiria. O homem era duro e a corda sólida. Talvez não, pôde ser que mordendo tenazmente, roendo destroçando. E, lentamente, aproximou o focinho para ela. Claro que podia morder. Seus caninos se introduziram eficazmente. Ainda tinha o gosto agradável do couro e da gordura. Por fim cedeu urna fibra e cheio de esperança continuou roendo, roendo, com o corpo fustigado pelo vento e com os olhos cansados das trevas. Mas ele, apesar da escuridão, tinha certeza de que não se perderia. Saberia chegar no seu lugar, no seu redil, com a sua manada. Roia silenciosamente, mas não muito, e produzia um burburinho. Um dos homens se mexeu no seu leito. E se despertasse e o descobrisse? Mas o homem não se moveu mais e Osso seguiu roendo obstinadamente. Outra fibra cedeu. Ficava somente uma das três que se retorciam formando o laço. Osso já sentia muito fina na sua boca quando, de repente, um dos homens gritou:

      - Ei, o cachorro tá comendo o laço ...

Os outros homens despertaram e Osso ficou imóvel, mas um deles se levantou e apalpou a corda.

      - Verdade, já tá pra romper...

      Amaldiçoaram e o dono-da-casa disse:

      - Vou buscar uma corda de cerda ...

      Procurou entre as coisas amontoadas num canto e, logo depois, Osso ficou amarrado na viga com uma corda grossa de cerda, mas foi depois que Julián lhe deu duas tremendas bordoadas com a mesma corda que o prisioneiro tinha mordido.

       Osso se sentiu realmente perdido. Essa corda de cerda feria a boca e não cedia aos mordiscos. Não, não poderia ir embora agora. Talvez nunca mais. Além de teimoso e  implacável o homem era prudente. A manada já estava definitivamente longe. Uma angústia dilacerante invadiu sua vida e teve vontade de articular sua dor na longa e lúgubre nota do seu uivado. Mas estava cansado, muito cansado até para queixar-se. E se entregou ao sono, um sono intranqüilo de cativo, cheio de dores e desgraças.

     Partiram, mal clareou o dia.

     - Adeusinho, Martin.

     - Adeusinho, dona Pascuala - disseram.

     Para onde se dirigiam? Osso jamais tinha ido por ali. Desde a tarde anterior andou muito tempo por caminhos desconhecidos, mas agora a sensação do desconhecido se tomava mais nítido, talvez porque já não tinha o corpo escaudado pelos açoites. Ainda lhe doía, mas sua pobre cabeça já era capaz de perceber devidamente o que encontrava pelo caminho. Como sempre capinzais silvantes, grandes penhascos e cumes agudos constituíam o espetáculo que se apresentava aos seus olhos. Por mais que esse lado da cordilheira se parecesse ao outro onde estava acostumado pastorar, o novo tem sempre a hostilidade das regiões que não são familiares e a tristeza que flui de tudo que não é querença. Para piorar a corda, apesar de diferente, pela substituição efetuada durante a noite, continuava como ontem cingida ao cavalo e no outro extremo agarrada na mão de Julián.

     Ao meio-dia, os homens apearam para almoçar. Sentaram-se no chão e tiraram de um alforge uma toalha que embrulhava um grande pedaço de carne assada. Uma faca brilhante o converteu em fatias e algumas foram para Osso e Bonamigo. Este, normalmente, quase não fazia notar sua presença, caminhando silenciosamente no rastro de Blas.

     E depois prosseguiu o trote, persistente e regular, incansável. Algumas vezes passaram por pontas de vacas, de éguas, de manadas de ovelhas, mas geralmente só viam capinzais abandonados. Osso sentiu de repente que estava começando a se cansar, que o cansaço era algo que parecia subir da terra, do escorregadio caminho, canal escuro cavado pelo vaivém na grenha hirsuta do capinzal. Arquejava mais forte e soltou a língua babante para fora. Mas o atalho subitamente se precipitou por um desfiladeiro e começou a ziguezaguear no meio de arbustos de folhagem densa. Cada vez mais, à medida que desciam, aumentava a vegetação. Na frente se via penhascos altos e avermelhados. Depois veio o potente rumor de um rio e quando caíam as primeiras névoas noturnas, tinham chegado ao próprio rio. Fazia calor e Osso se sentia aflito com seu pêlo abundante. Os cavalos passaram o rio nadando e os homens e os cães numa barca que estava presa na margem, debaixo de umas árvores. Do outro lado, depois de caminhar um trecho, encontraram uma choça. Numa das suas vigas, Osso foi amarrado. Parecia que era seu destino viver no torturante cativeiro da corda. E então, apesar do cansaço uivou longa e dolorosamente.

      - Por que tá gritando? - disse Julián.

Tirou da choça um pedaço grande de charque e jogou para ele. Tinham chegado a Cañar.

     Cañar não era um ninho de condores, mas um esconderijo de pumas. Era um vale profundo cheio de mato espesso - em algumas partes vivo e verdejante até a luxúria, em outras morto e acinzentado até a desagregação - no fundo de um desfiladeiro de penhascos escarpados.

      De um lado corria o Maranhão. Um morro distante degelava suas neves um riacho que descia do vale, saltando entre inacessíveis penhascos, para regar uma pequena horta e depois desaparecer no rio. Ao lado da horta se erguia uma frágil choça de folhas e de bambus.

      Às vezes, se podia ver dois homens nesta choça ou nesta horta. No choça, sentados e relaxados mascando coca. Na horta cultivando ou colhendo as plantas contadas: mandiocas, bananas, coca, pimenta. Mas nunca ninguém os via. Por Cañar não passava uma viva alma.

     O Maranhão, alvoroçado e voraz defendia Cañar, ou melhor, os Celedônios. Apesar disso, se podia atravessar o rio, mas para quê? Veria-se um vale muito pequeno, perdido numa curva do rio, agarrado e escondido entre os penhascos. Estes muito abruptos e altos, não davam saída para o outro lado, por mais que a quebrada se prolongasse para cima formando uma ribanceira, cheia de mato. De repente, cortando-a, surgiam os ásperos penhascos. Quem chegava em Cañar caía num buraco rochoso sem saída a não ser por uma, muito perigosa, através do ruído do rio. Não era, portanto, lugar propício para a atividade de uma pessoa pacífica de aspirações agrárias a não ser quando junto ao Maranhão, para cima e para baixo, se estendem grandes vales de fácil acesso. Porém Julián e Blas Caledón sabiam porque se meteram aí. Depois com o correr dos dias as pessoas também souberam e, por último, as autoridades.

     Uma fama cruel zumbia ao redor deste sombrio estreito, onde chegavam pegadas de sangue. A fala popular pluralizou o sobrenome e a voz dos Caledônios retumbou na comarca como uma descarga de winchesters.

      Osso não foi liberado no dia seguinte, nem nos muitos outros.

      - Será que ele volta? - perguntou Julián.

      E Blas.

      - É capaz ... Os cães voltam, sempre. E este apesar de que nunca nadou, é capaz de atravessar quatro rios juntos ... São muito teimosos.

     Foi por isso que Julián verificou bem a firmeza do nó da corda. Além disso, levou Osso ao rio e sem tirar a corda, fez com que ele se banhasse em companhia de Bonamigo. O cativo se sentiu muito aliviado do calor sufocante que, como já dissemos, seu abundante pêlo provocava e que aumentava com a falta de costume. Com sua característica de cão das alturas, não soube até agora o que era o eterno calor dos vales. Amarrado na viga e vendo, como se diz, as moscas voarem, não demorou a perceber que umas grandes e azuis esvoaçavam sobre sua ferida. Julián, também, reparou:

     - Tá vendo? disse ao seu irmão. A mosca já tá por aqui, e si num cuidar vai dar verme. E por isso derramou na carne aberta um líquido negro e ardente.

      Osso sentia que esse homem teimoso, implacável e prudente sabia também ser camarada. Passava muito tempo com ele, dando palmadas no dorso. Levava o alimento numa cuia grande para que compartisse com Bonamigo, que na verdade era um bom amigo. Este comia de um lado, parcimoniosamente e, apesar de sua liberdade, não grunhia, e de jeito nenhum hostilizava Osso. Julián dizia:

      - Que sejam como irmãos. Dois contra a desgraça são quatro ...

     E ele também, sem dúvida, procurava um irmão, pois quantas jornadas, quantos dias ainda duraria Blas? Quem poderia saber? As leis do banditismo estão escritas na faca e na carabina e ambas destroçam a vida.

      Julián ficava olhando para Osso, fixa e profundamente:

     - Osso, Ossinho ... 

     A dor das bordoadas passou. Osso engordava com a farta ração de charques e mandioca. Bonamigo ficou Íntimo dele e o acompanhava e trocavam farejadas amistosas. Seus olhos se familiarizaram com o mato verde cinza e com a mancha avermelhada dos penhascos. Para os seus ouvidos os rumores do rio e das folhas já eram familiares e como acontece quando se acostuma, embalavam. seu sono. E o homem, o homem ruim de ontem, tinha um carinho profundo nas mãos, nos olhos e nas palavras,

      Osso, Ossinho ...

      E uma tarde Osso entendeu. Moveu o rabo. E lambeu as mãos do homem, gemendo, inquieto e comovido. Julián se apressou a libertá-lo e Osso correu e pulou ao redor do seu inimigo de outrora, dando curtos latidos. Que alegria para os dois!

       - Olha, Blas, olha ... - gritava Julián. Qsso pulava para seu dono    

       - já era seu dono - e este o recebia com palmadas e dizendo-lhe insultos carinhosos, pois homens de certa índole ferem e acariciam com as mesmas palavras: só varia a entonação.

    Quando homem e cachorro se cansaram de festejar, Osso e Bonamigo correram de um lado para o outro explorando o pequeno vale. Foi pouco o que o recém-chegado pôde ver. A horta, os dois cavalos num pasto reduzido, cactus, mato entrelaçado de um lado e do outro, penhascos e o rio, sempre o rio transpondo a escassa terra. Mas Osso bebeu a água clara da quebrada. E podemos lhe entregar então, certificado de cidadania de Cafiar, supondo que essa é a água que, nesta localidade, enraíza o forasteiro. Porque é preciso saber que em todas as terras do norte do Peru - e é nela que transcorre nossa história - tem uma água de virtudes mágicas. Em Cajabamba, por exemplo, é a água de Tacshana, um riacho. Em Huamachuco, a água dos Pajaritos, uma vertente. E assim por diante. Estrangeiro que a bebe não volta ao seu país. A água lhe dá nova querença.

      Osso, certamente, não arrebanhou mais ovelhas. Teve que se entender com as vacas. Umas eram ariscas, outras mansas, mas todas se demoravam para tomar o caminho e investiam freqüentemente contra o cão que latia. Além disso, não entendiam a linguagem com a qual Osso estava acostumado. Quando latia perto das orelhas, atacavam. Mas Bonamigo foi um mestre eficaz e Osso fez a descoberta da barbeIa e das virilhas. O aprendiz recebeu muitos coices e chifradas, mas rapidamente se aperfeiçoou na dificil arte de mordiscar as virilhas e agarrar a barbeia, evitando as contundentes respostas das agredidos. Mas geralmente, latindo a certa distância conseguia que o animal andasse, e isto - como já assinalamos - não acontecia quando era feito de muito perto. Então, a vaca desesperada, parava e ficava examinando e arremessando contra o cachorro por muito tempo. Julián ou Blas intervinham nesse momento distribuindo chicotadas e censurando Osso por retardar a marcha. Mas Osso terminou por entender perfeitamente todas as necessidades e a tropa avançava rapidamente. Sempre tinham pressa.

     E era duro arrebanhar. Saíam de Cañar de noite, rumo aos potreiros. Em geral chegavam no lugar previsto ao amanhecer, mas muitas vezes depois de uma caminhada de dois dias. Para separar o gado trabalhavam de madrugada ou de noite, com a luz da lua, evitando a vigilância dos guardiões e dos espiões que os fazendeiros tinham espalhados pelos lugares adequados.

       Separar as vacas é uma tarefa embaraçosa. As que formam a ponta da tropa fogem, de vez em quando, para se reunirem com as que ficaram. Às vezes, é claro, era possível levar todas, mas o comum era separar dez ou doze. Uma grande manada se toma forçosamente lenta e o que necessitavam os Caledônios, em primeiro lugar, era a rapidez. Por isso, depois de formada a tropa, caminhavam dia e noite até chegar a certos lugares onde outros a recebiam. Por caminhos esquecidos, entre as sombras, debaixo de grandes tormentas de chuva e de vento era preciso arrebanhar, sempre arrebanhar.

     Osso sofreu no começo, mas depois se acostumou com aquela vida. Seu coração. palpitava alegremente enquanto caminhava atrás das vacas inquietas, afligido pela chuva, acariciado pela luz estelar, castigado pela ventania, cego pela escuridão ... E era também repousante deitar-se ao lado de Julián, sentir seu calor e sua sólida força e velar com o ouvido-alerta. Eram poucos os amigos de seu dono. Osso conheceu, além de Martín, na casa de quem pernoitou quando foi raptado, Santos Baca, Venâncio Campos e três ou quatro mais, espalhados pelas alturas. Alguns deles eram vaqueiros das fazendas e faziam vista grossa, davam avisos oportunos e, em certas ocasiões, quando era necessário tiravam a carabina escondida entre os vimes do catre e se uniam aos Caledônios. Conheceu, também, Elisa, bela moça do povoado de Sarún, que vivia numa casa branca-avermelhada, rodeada de arbustos azuis, no começo da rua principal. Julián ia até lá algumas vezes durante a noite. Elisa o recebia junto à cerca. Conversavam em voz baixa e Julián recebia no meio das sombras, sua ração de ternura. Osso vigiava o caminho com a corda do cavalo no meio dos dentes. Este cabeceava de cansaço, pois o cavaleiro só voltava ao amanhecer.

     Certa vez, Osso avistou sua manada ao longe. Ali estava Antuca, os cachorros, as ovelhas tudo o que em outros tempos foi sua vida e que durante muitas horas, lhe trouxe uma imensa nostalgia, Parou, indeciso, olhando o lento vaivém do rebanho. Iria até ele? Seguiria Julián? Este parou a certa distância, observando o cão. Depois chamou:

     - Osso, Osso ...

     Chamado, ele virou a cabeça para o dono. Aí estavam seus olhos duros e carinhosos. E a vida movimentada e imprevista feita de audácia, rapidez, noite, perigo e morte.

     - Osso, Osso ...

     E lentamente, entregando-se ao estimulante convite da violência, seguiu o rumo de Julián. Deste modo decidiu seu destino.

E assim Osso foi um bom camarada e um fiel guardião. Não só no trabalho de arrebanhar serviu a seu dono. Em muitas ocasiões salvou sua vida. 

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Fonte: Alegria, Ciro – Os cães famintos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. p. 51 -65

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O cachorro canibal

                                                                                              José J. Veiga

     Percebia-se que era um cachorro por causa do rabo metido rente entre as pernas, quase colado na barriga, e também um pouco por causa dos olhos, de uma tristeza tão funda que só podiam ser olhos de cachorro escorraçado. As patas não se firmavam no chão como as de qualquer cachorro razoavelmente seguro de si; pisavam a medo, apalpando experimentando. (Depois se soube que ele tinha perdido os cascos pelos caminhos, ficando as plantas em carne viva.) De onde estaria vindo, ninguém se interessou em saber; ele apenas parou ali, lamentável e infeliz, muito cansado para continuar andando. Apareceu de manhã, e quem o viu deitado numa nesga de grama debaixo do jasmineiro pensou em um cão errante, igual a tantos que cruzam o mundo em todas as direções, parando e farejando mas sempre em marcha, como se incumbidos de alguma missão urgente, cujo endereço e propósito só eles sabem; nem valia a pena providenciar comida, provavelmente ele não estaria mais lá quando a comida chegasse.

      Mas aquele parecia não ter pressa ou intenção de seguir, e lá ficou deitado de lado, não propriamente descansando porque as moscas não deixavam, mas fazendo o possível por conseguir algum sossego.

     Via-se que estava faminto, mas o cansaço impressionava mais, talvez devido a seu litígio incessante contra as moscas. Às vezes ele parecia pensar que pudesse acomodar a cabeça entre as patas e deixar ao resto do corpo o trabalho de repelir os inimigos. O rabo não parava de açoitar o ar, e todo o pêlo tremia repuxado pelas contrações dos músculos; mas essa estratégia era logo descoberta e as moscas concentravam o ataque na cabeça e nas orelhas. Eram tantas e tão insistentes que ele não podia ignorá-las por muito tempo: bocava o ar indignado e às vezes até se levantava de um pulo para poder persegui-las melhor - mas a dor causada pelos talos de grama nas plantas desprotegidas advertia-o de que ele não estava em condições de ser muito enérgico.

      Uma criança da casa viu-o ainda no mesmo lugar lá pelo meio da tarde e levou-lhe uns restos de comida. Ele estudou o menino com olhos desconfiados e concluiu que não havia perigo daquele lado. Comeu, lambeu o prato, balançou o rabo para mostrar que apreciara a gentileza. Deve ter passado a noite no mesmo lugar, mas ninguém ouviu latidos nem uivos. De manhãzinha chamaram-no para dentro e o menino deu-lhe um banho na torneira do pátio. Ele não resistiu nem criou dificuldades, era o primeiro a reconhecer a necessidade de limpeza, sabia que um cachorro limpo leva vantagem por onde anda.

     Com o banho ele começou a levantar o rabo, primeiro por ter recuperado um pouco da dignidade, segundo por suspeitar que dentro de pouco haveria mais comida. Quando um cachorro errante é levado para dentro de uma casa e recebe o luxo de um banho, a seqüência lógica é um prato de comida.

     Mas aí começa também a fase difícil das relações entre cão e gente. Como esperava, ele recebeu o seu almoço; e não tendo sido enxotado, interpretou a situação como significando que seria tolerado. Mas pode um cão contentar-se com a simples tolerância? Quando se sente apenas tolerado, um cão de respeito tem dois caminhos a seguir: ou exige atenção, ou vai embora para outro lugar onde possa se impor. A retirada é sempre humilhante, ele sabe que no momento em que vira as costas começou o esquecimento - isso se não acontece o pior- nem percebem que ele se foi; muito tempo depois é que alguém indaga distraidamente, "é verdade, que fim levou aquele cachorro que andava por aí?" Farejando o ambiente ele percebeu que podia escolher o primeiro caminho com grande probabilidade de êxito.

     Para começar, era preciso não exagerar na gratidão. Se um cachorro mostra muita gratidão as pessoas podem pensar que ele não está habituado com bom trato e acabam relaxando nas atenções; nesse caso não há mais esperança para ele naquela casa. A melhor maneira de impor-lhes respeito é fazê-las pensar. Quando alguém pensa, "o que é que esse miserável julga que é? O Rei do Mundo?", o cachorro pode ficar descansado que o seu lugar está garantido. Em vez de se atirar aos pés da primeira pessoa que lhe estala os dedos, o cachorro ajuizado deve mostrar uma certa frieza. Só depois que a pessoa insistir é que ele deve atender, assim mesmo sem pressa. Se não houver insistência o cachorro nada terá a perder; pelo contrário, convém sempre desconfiar das que não insistem.

     Aplicando todas as suas habilidades na fase difícil dos primeiros contatos ele conseguiu fazer-se notado e respeitado. Em pouco tempo já estava dormindo onde bem quisesse, sem receio de que o pisassem ou enxotassem. Esta é a grande prova de prestígio canino: não ser tocado do lugar que escolheu para deitar-se.

     E gostaram tanto dele na casa que estragaram tudo com a solicitude de amaciar-lhe a vida. Vendo-o brincar sozinho no jardim alguém lembrou-se de arranjar-lhe um companheiro menor. Pensaram que assim ele ficaria mais feliz, e de fato ficou por algum tempo. Passava horas rolando com o menorzinho na grama, ensinando-o a viver e a ser respeitado, e quem os via embolados no chão pensava: "Que graça! Até parecem irmãos!" E como aprendia depressa aquele ladrãozinho malhado!". Em pouco tempo já estava passeando de colo, aliás uma lição que o maior não ensinou. Aproveitando-se da inocência do cãozinho as pessoas da casa conquistaram-no completamente, numa inversão ridícula de papéis. Dava engulhos ver a sofreguidão dele atendendo os chamados mais absurdos, a humildade na aceitação de censuras e castigos. Aquele estado de coisas não podia acabar bem. Mais dia menos dia ...

     A situação agravou-se quando começaram a tomar liberdades com o cão maior, decerto inspirados pela intimidade excessiva que mantinham com o outro. Já não o deixavam dormir onde quisesse, e não escondiam o desgosto de vê-lo dentro de casa. Ele ia suportando tudo com paciência, esperando que a loucura passasse. Mas não paciência que resista a abusos.

     Ele estava dormindo de patas pra cima no canto de uma varanda ladrilhada, que nem era no meio ou na passagem, mas no canto, ninguém podia dizer que estivesse obstruindo. Mesmo assim alguém achou de encher a bocade água e vir de mansinho eguichá-la nele. Ora, isso assusta e aborrece. Num rápido movimento rolado ele ergueu-se e ficou parado sem compreender, mas a água escorrendo pelas pernas e a pessoa enxugando a boca e olhando com olhos maldosos diziam tudo. foi uma traição mesquinha, mas mesmo assim ele achou melhor não perder a compostura, não latiu nem fêz escândalo. Retirou-se com relativa dignidade para a sombra do jasmineiro.

     A idéia veio de repente, já como decisão. O ladrãozinho malhado tinha acabado de tomar banho e espojava-se ao sol a poucos metros de distância. O outro levantou-se da sombra, esticou as patas dianteiras ao comprido do corpo, como se fosse deitar-se noutra posição, mas era apenas para se espreguiçar; abriu a boca num bocejo enorme e caminhou para o pequenino. Quando esse, que estava deitado de costas dando coices para o ar, sentiu aquela pata pesada no peito, julgou tratar-se de alguma bincadeira e ainda rosnou de brinquedo. A primeira dentadas feriu-o na carne mole do ventre.     

     Achando que a brincadeira muito bruta ele decidiu retirar-se, rosnando e mordendo o outro no pescoço, mas o queixinho novo não tinha força para fazer mal, e o outro prosseguiu com seu projeto, começando pelas partes tenras, com certeza já de cálculo para não sair perdendo caso se fartasse antes ou tivesse que fugir por motivo de força maior. Mas ninguém veio acudir, aqueles dois viviam brigando e fazendo as pazes. Quando ele começou a enjoar só restavam os ossos mais duros e uma mancha de sangue na grama. Os ossos ele caregou para longe, escondeu, enterrou; o sangue ficou como enigma para as pessoas da casa.

     Se ele pensava que ia ser feliz dai por diante, deve ter omitido em seus cáculos algum elemento mito importante; porque desde esse dia ele mudou completamente, a ponto de parecer outro cachorro. É claro que as pessoas da casa interpretavam a mudança como consequência da perda do companheiro (O que não deixava de ser) e combinaram ter paciência com ele.

     Dava pena vê-lo de cabeça baixa, num ir e vir incessante, sem encontrar sossego em parte alguma. Mesmo quando parecia descansar, deitado de lado em um tapete, o bojo das costelas arfando compassado, o brilho do pêlo ondulado com a respiração, podia-se ver que o repouso era aparente. Olhando bem, via-se que os músculos nunca estavam em completo descanso, havia neles uma constante trepidação, um zumbir de alta voltagem. Bastava um ruído distante, um leve toque, mesmo de uma penugem pousando, para ele saltar nas quatro patas, as orelhar armadas, os olhos furando o tempo - o que acontecia também sem nenhma razão aparente.

     Por uma misteriosa repulsão as pessoas passaram evitá-lo, não lhe afagavam mais a cabeça, não lhe alisavam o pêlo, nunguém lhe amarrotavam as orelhas para ouvi-lo ganir, o que é também uma forma de mostrar a um cão que se gosta dele. Agora  era só respeito, um respeito apreensivo. Às vezes ele se instalava numa passagem, parece que desejando que o maltratassem, que o enxotassem, que o humilhassem; mas o que se via era as pessoas tomarem trabalho para não incomodá-lo, se afastarem para lhe dar passagem. Não sabendo chorar ele procurava gastar a angústia caminhado sem parar, talvez na esperança de se cansar e cair de vez. E quanto mais se movimentava, mais dava a impressão de estar contido entre barras de uma jaula.    

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Fonte: VEIGA, José J. Os melhores contos de José J. Veiga. São Paulo: Global, 1989.

 

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Cabo Dick, herói nacional

Mônica Grimaldi

     Dick não nasceu cabo, nasceu pastor, pastor alemão. Não pretendia ser herói. Simplesmente, como todos os cães, possuia uma infinita capacidade de amar e servir como policial militar. Se preciso fosse, feliz, num abanar de cauda, sacrificaria sua vida por qualquerhumano que estivesse em perigo.

     Dick não é um conto, foi real. Viveu há cerca de 50 anos e, por sua coragem, foi promovido tendo uma estátua em sua homenagem.

     Há alguns anos havia uma criança em perigo desaparecida por vários dias. Um menino que, como todas as crianças têm medo, frio, fome, sede, esperança de fé. E Deus ouviu as suas preces, enviou um anjo para salvá-lo. Não um anjo covencional, mas sim na figura de um cão policial, um anjo sem asas, mas munido de quatro patas, focinho frio. sem temor do perigo, pêlo macio, com olhar vigilante, ternos e protetor.

    E se esperança tem forma, tamanho ou cor, aquele menino teve sua vida restituida porum policial farejador que, brilhantemente, localizou-o desaparecida e virou manchete, tornou-se herói, de soldado foi a cabo e até hoje é lembrado.

     E se quiserem confirmar, é só se dirigirem ao Canil da Polícia Militar em São Paulo, que lá está ele esculpido em bronze, muito atento, com suas orrelhas sempre eretas e seu olhar amigo e vigilante.

      Agora deve estar desempenhando, todo contente, sua função lá no céu, bem ao lado do Arcanjo Miguel, zelando por nós, o nobre evalente Dick.

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Fonte: Seção Histórias no site www.vidadecao.com.br

Nota:

Em 21 de abril de 1956, o cão policial Dick encontrou um garoto, que foi raptado três dias antes na cidade de São Paulo. A busca envolveu centenas de policiais, mobilizou toda a imprensa e motivou mais um dos "bilhetinhos" do Governador Jânio Quadros, enviado ao Secretário de Segurança: "Desejo saber detalhes imediatamente sobre o desaparecimento do menino Eduardo. Gostaria de conhecer, e recomendar a promoção as autoridades que deslindarem o mistério". Além da promoçáo de alguns policiais, o cão Dick foi promovido a cabo. No outro dia, o escritor Menotti del Picchia publicou em sua crônica: "Há um homem e há um cão. Quem sai aureolado de glória desse episódio? O cão. Quem se degrada na indignidade do crime? O homem".

Fonte: COSTELLA, Antonio F. Dick, o herói. Campos de Jordão, S.P: Editora Mantiqueira, 1996.

                                           

Busto do Cabo Dick no Canil da PM de São Paulo

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