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Antologia canina

 

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Antologia

 

CANINA

Extrato         Conto         Crônica

 

JACK LONDON

Buck

 

LUIZ VILELA

Boa de garfo

 

CASSIANO ELEK

 

MACHADO

Cheirar, nunca mais

 

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Um experimento editorial

 

O título da obra expressa seu objetivo: recolher e divulgar os melhores contos e crônicas caninas p.p. ditas e alguns  embutidos nos romances. São partes do texto extraídos de  romances, que adquiriram vida própria como conto. Foi o que fizeram com Baleia, uma  parte extraída do romance Vidas secas, de Graciliano Ramos, que adquiriu vida própria como conto e tornou-se um clássico.

Assim, fizemos com José Saramago, Paul Auster, Ciro Alegria, Tibor Déry e Jack London. Muitos dos cães protagonistas aparecem em diversas partes do romance ou se constituem no ator principal. No entanto extraímos apenas uma parte contínua do texto, onde o nosso “fiel amigo” aparece em sua melhor forma.

 

Trata-se de um experimento editorial para verificar sua aceitação pública. Vamos continuar recolhendo tais “pérolas” literárias tendo em vista a compilação de uma antologia canina.  

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Buck

                                                                                                Jack London

     Quando John Thornton ficou com os pés congelados em dezembro último, seus parceiros procuraram deixá-lo confortável para que melhorasse, indo sozinhos rio acima a fim de conseguir uma jangada que os levasse para Dawson. Ainda estava mancando um pouco na época em que salvou Buck, mas, com a continuidade dos dias quentes, até mesmo essa seqüela desapareceu. E agora, deitado à margem do rio nos longos dias de primavera, observando as águas correntes, ouvindo preguiçosamente o canto dos pássaros e os sons da natureza, Buck ia lentamente recuperando suas forças.

     Um descanso vem muito bem a calhar depois de se ter viajado quase cinco mil quilômetros, e é preciso reconhecer que Buck se enchia cada vez mais de preguiça à medida que os ferimentos saravam, os músculos se avolumavam e a carne voltava a cobrir seus ossos. Bem, quanto a isso, estavam todos na maior folga - Buck, John Thornton, Skeet e Nig - esperando a jangada que viria buscá-los, levando todos para Dawson. Skeet era uma pequena setter irlandesa que logo fez amizade com Buck; e, tão próximo da morte ele estava, que não se acanhou por ter sido Skeet a responsável pelas primeiras tentativas de aproximação. Ela entendia de curas, como alguns cães entendem e, do mesmo modo que uma gata lava seus filhotes, também lavava e limpava as feridas de Buck. Todas as manhãs, regularmente, depois que ele terminava a primeira refeição do dia, Skeet desempenhava a tarefa que assumira para si mesma, até que Buck passou a encarar tais cuidados como sendo tão importantes quanto os de Thornton. Nig, igualmente amigável, se bem que demonstrasse menos, era um enorme cachorro preto, meio sabujo e meio veadeiro, com olhos risonhos e uma bondade infinita.

     Para surpresa de Buck, esses cachorros não demonstraram o menor ciúme dele. Pareciam compartilhar a mesma bondade e grandeza de John Thornton. À medida que Buck ficava mais forte, eles o chamavam para todo o tipo de jogos e brincadeiras, dos quais o próprio Thornton não deixava de participar, e, assim, Buck passou por um período de recuperação e nasceu para uma nova vida. Amor, um amor puro e apaixonado, era o que sentia agora, pela primeira vez. E esse tipo de amor jamais havia experimentado na casa do juiz Miller, no Vale de Santa Clara, tão cheio de sol. Com os filhos do juiz, caçando e excursionando, tinha sido uma parceria de trabalho; com os netos do juiz, uma espécie de proteção de primeira classe; e, com o próprio juiz, uma amizade honrada e muito nobre. Mas aquele amor febril, ardente, pura adoração, loucura, só John Thornton havia despertado.

     Esse homem tinha salvado sua vida, o que já era muito; mas, além disso, era o dono ideal. Os outros homens cuidavam do bem-estar dos cães como se isso fosse uma espécie de obrigação e por conveniência ou interesse comercial; Thornton cuidava de seus cães como se fossem seus filhos, porque, com ele, só podia ser assim. E como cuidava. Nunca se esquecia de fazer um cumprimento amigável ou dizer uma palavra antiga, e sentar-se com eles para uma longa conversa ("fiada", era como a chamava) era um prazer imenso tanto para ele como para os cães. Tinha um jeito meio rude, mas todo especial, de pegar a cabeça de Buck entre as mãos e encostar a própria cabeça na de Buck, de sacudi-lo para a frente e para trás, dizendo as piores ofensas, que, para Buck, eram palavras de amor. Buck não conhecia alegria maior do que o abraço rude e o som das ofensas murmuradas, e a cada sacudida para a frente e para trás parecia que seu coração ia saltar do peito, tão grande era sua felicidade. E quando, solto, saltava aos pés daquele homem, a boca aberta, alegre, os olhos dizendo tanto, a garganta vibrando sons que não podia articular, e assim ficava, sem se mover, John Thornton exclamava com reverência:

     - Deus! Você só falta falar!               

     Buck tinha um jeito próprio de expressar carinho, muito próximo da dor. Freqüentemente prendia a mão de Thornton em sua boca e apertava com tanta força que as marcas dos dentes ficavam na carne por muito tempo. E, da mesma forma que os xingamentos eram entendidos como palavras de amor, também o homem entendia essa falsa mordida como um carinho.

     A maioria das vezes, no entanto, o amor de Buck expressava-se em adoração. Embora ficasse louco de alegria quando Thornton tocava nele ou lhe falava, não procurava essas manifestações de afeto. Ao contrário de Skeet, acostumada a enfiar o focinho na mão de Thornton e esfregar, esfregar, até que ele lhe desse carinho, ou Nig, que se aproximava de mansinho e pousava a cabeça enorme no colo de Thornton, Buck contentava-se em adorar à distância. Ficava horas deitado, ansioso, alerta, aos pés de Thornton, olhando seu rosto, por muito, muito tempo, estudando-o, seguindo com o maior interesse cada expressão, cada movimento ou alteração em suas feições. Ou, como acontecia às vezes, deitava-se um tanto afastado, mais para o lado ou para trás, observando os contornos do homem e os movimentos ocasionais daquele corpo. E, muitas vezes, tal a comunhão em que viviam, a força do olhar de Buck fazia que John Thornton virasse a cabeça e retomasse o olhar, sem nada dizer, o coração brilhando nos olhos, como o de Buck também brilhava.

     Por muito tempo depois de ter sido salvo, Buck não gostava que Thornton saísse do alcance de sua vista. Era só ele sair da barraca, e Buck já ia atrás, seguindo-o por toda a parte até que entrasse outra vez na barraca. Seus donos temporários desde que chegara às terras do Norte tinham criado nele o receio de que nenhum dono poderia ser permanente. Tinha medo de que Thornton saísse de sua vida como Perrault e François e o escocês tinham saído antes. Mesmo à noite, em sonhos, era atormentado por esse medo. Nessas ocasiões, acordava com um estremecimento e rastejava, tremendo, até a entrada da barraca, onde se punha a ouvir o som da respiração de seu dono.

     No entanto, apesar desse grande amor que tinha por John Thornton, amor que parecia revelar uma ligeira influência da civilização, sua origem primitiva, que as terras do Norte haviam despertado nele, permanecia viva e em plena atividade. Fidelidade e devoção, coisas nascidas da lareira e dó telhado, faziam parte dele; contudo, conservava sua natureza selvagem e sua astúcia. Era uma criatura da natureza, vinda da natureza para sentar-se junto à fogueira de John Thornton, mais do que um simples cão das suaves terras do Sul impregnado das marcas de gerações de civilização. Por causa do imenso amor que sentia, jamais seria capaz de roubar a esse homem, mas roubar a qualquer outro homem, em qualquer outro acampamento, não hesitaria um instante e, com a astúcia que tinha para roubar, sempre escapava sem que ninguém percebesse.

     A cara e o corpo estavam marcados pelos dentes de muitos cachorros, e ele lutava mais feroz do que nunca e com muito mais esperteza. Skeet e Nig eram bons demais para brigar - além do mais, eram de John Thomton; mas qualquer cachorro estranho, não importava raça ou valentia, rapidamente reconhecia a superioridade de Buck ou se veria numa luta de vida e morte com um adversário terrível. Buck era impiedoso. Aprendera muito bem a lei do porrete e da dentada, e nunca deixava escapar uma vantagem ou recuava diante de um inimigo prestes a morrer. Tinha tomado algumas lições com Spitz e com os principais cães de briga da polícia e do correio e sabia que não havia meio-termo. Era liderar ou ser liderado; e demonstrar piedade era uma fraqueza. Não existia piedade na vida primitiva. Ela era entendida como medo, e esses mal-entendidos levavam à morte. Matar ou ser morto, devorar ou ser devorado, era a lei; e a esse mandamento, vindo das profundezas do tempo, ele obedecia.

     Estava mais velho do que os dtás que tinha visto e as vezes que tinha respirado. Unia o passado ao presente e a eternidade anterior a sua existência pulsava em suas veias num ritmo poderoso que ele, assim como as marés e as estações, acompanhava. Sentava-se junto ao fogo de John Thornton, um cachorro de peito largo, caninos brancos e pêlo longo; mas atrás dele estavam as sombras de todas as espécies de cachorros, meio lobos e lobos selvagens, ansiosos e a postos, provando o sabor da carne que ele comia, desejando a água que ele bebia, farejando o vento com ele, ouvindo com ele e falando-lhe dos sons feitos na floresta pela vida selvagem, ditando seu estado de espírito, dirigindo suas ações, deitando quando ele deitava, sonhando com ele e além dele, tomando-se a própria matéria de seus sonhos.

     Com tanta autoridade essas sombras lhe acenavam, que dia a dia os homens e suas exigências afastavam-se mais e mais - dele. Do fundo da floresta vinha o som de um chamado, e todas as vezes que o ouvia, misteriosamente penetrante e irresistível, sentia-se forçado a voltar as costas à fogueira e à terra batida e mergulhar na floresta, mais e mais, sem saber para onde ou por quê; e nem se perguntava para onde ou por quê, o chamado vindo, imperioso, do fundo da floresta. Mas, sempre que chegava à terra virgem e às sombras das árvores, o amor por John Thornton o arrastava de volta para perto da fogueira.

     Thornton era a única coisa que o prendia. O resto da humanidade não era nada. Viajantes ocasionais podiam vir com elogios ou agrados, mas Buck era sempre frio e indiferente e, com pessoas demasiado expansivas, simplesmente se levantava e ia embora. Quando os parceiros de Thornton, Hans e Pete, chegaram na jangada havia tanto esperada, Buck recusou-se a tomar conhecimento deles, até entender que eram amigos chegados de Thornton; depois disso, passou a tolerá-los com certa passividade, aceitando seus favores como se lhes fizesse um favor em aceitar. Eram homens grandes, do mesmo tipo de Thornton, viviam junto à terra, pensando com simplicidade e vendo as coisas com clareza; e, antes que entrassem com a jangada na forte correnteza próxima à serraria em Dawson, já entendiam o jeito de Buck e não insistiam em ter com ele uma intimidade igual à que tinham com Skeet e Nig.

     Por Thornton, no entanto, seu amor parecia crescer cada vez mais. Só esse homem entre todos podia colocar um fardo sobre as costas de Buck nas viagens de verão. Nada era demais para Buck fazer se Thornton mandava. Um dia (estavam com um adiantamento do apurado com a jangada e tinham saído de Dawson em busca das nascentes do Tanana), homens e cães estavam sentados no alto de um rochedo que descia reto em direção ao leito de pedras, mais de cem metros abaixo. JoOO Thornton estava sentado à beira do abismo, Buck a seu lado. Um capricho impensado tomou conta de Thomton, e ele chamou a atenção de Hans e Pete para a experiência que tinha em mente .

     - Pula, Buck! - ordenou, estendendo o braço sobre o abismo.

     No momento seguinte, estava agarrado a Buck bem na beirada, quase caindo. Hans e Pete tentando puxar os dois de volta.

     - Isso é espantoso! - disse Pete, depois que tudo tinha terminado e eles já tinham recuperado a fala.

      Thomton sacudiu a cabeça.

     - Não, isso é esplêndido; e terrível, também. Sabe?, às vezes isso me dá medo.

     - Eu é que não vou ser besta de relar a mão em você quando ele estiver por perto - concluiu Pete, indicando Buck com a cabeça.

     - Caramba! - exclamou Hans. - Muito menos eu.

     Foi em Circle City, antes do :fim do ano, que as apreensões de Pete tomaram-se realidade. Burton, "o Durão", homem mal-encarado e perverso, estava puxando briga com um recém-chegado no bar, quando Thornton interferiu amigavelmente na discussão. Buck, como de costume, estava deitado num canto, a cabeça sobre as patas, observando todas as ações de seu dono. Burton lhe deu um murro só, direto, sem nenhum aviso. Thornton foi lançado longe, girando, e só não caiu porque se agarrou na beirada do balcão.

     Os que estavam assistindo ouviram, então, uma coisa que não era nem latido nem ronco, mas que poderia ser melhor descrito como um rugido, e viram o corpo de Buck erguer-se no ar, saindo do chão direto para a garganta de Burton. O homem se salvou porque, instintivamente, defendeu-se com o braço, mas foi atirado ao chão, com Buck em cima dele. Buck soltou os dentes do braço e novamente tentou atingir a garganta. Dessa vez o homem só conseguiu se defender parcialmente e teve a garganta rasgada. Nisso, a multidão veio para cima de Buck, e ele foi colocado para fora do bar; mas, durante todo o tempo em que um médico ficou examinando o ferimento do homem, Buck rondava para cima e para baixo, rosnando, furioso, tentando avançar e sendo detido à força por uma muralha de porretes hostis. Um conselho de mineiros, convocado ali mesmo, decidiu que o animal tinha motivos suficientes, e Buck foi inocentado. Mas a reputação estava feita, e, daquele dia em diante, seu nome espalhou-se por todos os acampamentos do Alasca.

     Tempos depois, no outono daquele ano, Buck salvou a vida de Thornton de um modo completamente diferente. Os três parceiros estavam alinhando um barco comprido e estreito num trecho dificil das corredeiras no riacho Forty Miles. Hans e Pete seguiam pela margem, segurando o barco por meio de uma corda, que iam amarrando de árvore em árvore, enquanto Thornton continuava no barco, ajudando a descida com uma vara e gritando orientações para a terra firme. Buck, na margem, preocupado e ansioso, acompanhava o barco, os olhos sempre colados no dono.

     Num trecho particularmente ruim, onde uma fileira de rochas se projetava para fora do rio, Hans desamarrou a corda e, enquanto Thornton movia o barco com a vara para tentar pegar a correnteza, correu pela margem com a ponta da corda na mão, a fim de parar o barco tão logo este conseguisse passar pelas rochas. Isso o barco conseguiu, e ia a toda rio abaixo numa correnteza tão ligeira como a calha de um moinho, quando Hans, muito de repente, tentou segurá­-lo com a corda. O barco virou e ficou parado, apontado para a margem, enquanto Thornton, lançado para fora dele na mesma hora, era levado pela correnteza em direção ao pior trecho da corredeira, um trecho de águas violentas, nas quais não havia chances de sobrevivência.

     Buck saltou no mesmo instante; e ao fim de trezentos metros, no meio de um redemoinho alucinado, alcançou Thornton. Quando sentiu que este segurava seu rabo, Buck pôs-se a nadar em direção à margem com toda a sua magnífica força. Mas o avanço à terra firme era lento; já o avanço correnteza abaixo, assustadoramente rápido. Lá de baixo vinha o rugido fatal das águas onde a correnteza ficava ainda mais violenta e se arrebentava em espumas de encontro às rochas, que surgiam como dentes de um monstro enorme. Assim que entraram no último trecho antes da queda, a força das águas era terrível, e Thornton viu que era impossível chegar à margem. Resvalou furiosamente de uma rocha, machucou-se de encontro a outra e bateu em cheio numa terceira com uma força esmagadora. Agarrou-se à pedra escorregadia com as duas mãos, soltando Buck, e, erguendo a voz acima do rugido das águas, gritou:

     - Vai, Buck! Vai!

     Buck não conseguia controlar os próprios movimentos e era levado correnteza abaixo, lutando desesperadamente, mas incapaz de voltar. Ao ouvir a ordem de Thornton pela segunda vez, ergueu-se parcialmente para fora da água, levantando a cabeça bem alto, como para um último olhar, depois se dirigiu obedientemente para a margem. Nadou com muita força e foi puxado por Pete e Hans no ponto exato onde já não havia mais como nadar e a destruição começava.

     Sabiam que só por alguns minutos um homem conseguiria manter-se agarrado a uma rocha escorregadia no meio de uma correnteza furiosa, e correram o mais rápido possível até um ponto bem adiante do local em que Thornton se encontrava. Amarraram a corda com que vinham segurando o barco no pescoço nos ombros de Buck, tomando cuidado para que ela não o estrangulasse nem o impedisse de nadar, e jogaram-no na correnteza. Ele nadou impetuosamente, mas não reto o suficiente para pegar a correnteza. Percebeu o erro tarde demais, quando Thornton estava lado a lado com ele e a apenas algumas braçadas, e ele passou, levado pelas águas sem poder fazer nada.

     Hans imediatamente puxou a corda, como se Buck fosse um barco. A corda esticando-se assim, em meio à força da correnteza, jogou-o para debaixo da água, onde ele ficou até seu corpo bater de encontro à margem e ser puxado para fora. Estava quase afogado, e Hans e Pete puseram-se sobre ele, dando-lhe ar e pondo a água para fora. Ele cambaleou, ficou de pé e caiu. O som distante da voz de Thornton chegou até eles e, embora não conseguissem entender o que dizia, sabiam que ele estava no fim de suas forças. A voz dodono agiu em Buck como um choque elétrico. Pôs-se de pé e correu margem acima na frente dos homens até o ponto de onde havia partido antes.

     Novamente a corda foi amarrada, e ele foi jogado na água; e novamente saiu nadando, mas desta vez pegou direto a correnteza. Calculara mal uma vez, mas não cometeria o mesmo erro uma segunda vez. Hans foi dando corda, sem permitir que ela afrouxasse muito, enquanto Pete não a deixava enroscar. Buck foi em frente até estar logo acima de Thornton; então se virou e, com a velocidade de um expresso, nadou direto para ele. Thornton o viu chegar e, assim que Buck bateu nele como um tronco, com toda a força da correnteza atrás de si, estendeu os braços e agarrou-se ao pescoço peludo de Buck. Hans amarrou a corda numa árvore, e Buck e Thornton foram para debaixo da água. Sem respiração, quase estrangulados, às vezes um por cima: às vezes o outro, arrastados pelo fundo pedregoso, batendo contra rochas e troncos submersos, foram puxados numa guinada só para a margem.    

     Quando Thornton voltou a si, estava de barriga para baixo, sendo violentamente empurrado para frente e para trás sobre um tronco por Hans e Pete. Seu primeiro olhar foi para Buck, que, sobre o corpo imóvel e aparentemente sem vida, tinha Nig, soltando um uivo triste, e Skeet, lambendo-­lhe a cara molhada e os olhos fechados. Thornton, que se encontrava todo ferido e dolorido, curvou-se cuidadosamente sobre o corpo de Buck, depois de ter-se recuperado, e encontrou três costelas quebradas.

     Tá resolvido - anunciou. - Acamparemos aqui mesmo. - E lá acamparam, até que as costelas de Buck sararam e ele ficou bom para viajar. Naquele inverno, em Dawson, Buck realizou outra façanha, não tão heróica, talvez, mas que colocou seu nome muitos pontos acima na galeria da fama do Alasca. Essa façanha foi especialmente gratificante para os três homens, pois estavam precisando de equipamentos que ela veio a fornecer e, assim, puderam fazer a longa viagem havia muito desejada para as terras virgens do Leste, onde os mineiros ainda não tinham aparecido. Tudo começou com uma conversa no Salão Eldorado, na qual os homens se gabavam de seus cães favoritos. Buck, devido a seu recorde, era o alvo daqueles homens, e Thornton viu-se forçado a defendê-lo. Depois de uma meia hora, um homem afirmou que seu cachorro era capaz de mover um trenó com duzentos e vinte e cinco quilos e sair puxando; outro homem gabou-se de que o seu puxaria até duzentos e setenta e cinco quilos; e um terceiro, trezentos e quinze.

     - Hum, grande coisa! - disse John Thornton - O Buck consegue por em movimento um trenó com uns quatrocentos e cinqüenta quilos.

    - E sair puxando? E andar com ele uns cem metros? - investiu Matthewson, rei da mina Bonanza, que se gabara dos trezentos e quinze quilos.

    - E sair puxando e andar com ele uns cem metros - disse John Thornton, calmamente.

    - Ora, ora - disse Matthewson, lenta e deliberadamente, de modo que todos pudessem ouvir. - Eu tenho mil dólares aqui comigo, dizendo que ele não consegue. Tá aqui. - Jogou sobre o balcão um saquinho de ouro em pó do tamanho de uma lingüiça.

     Nmguém abriu a boca. O blefe de Thornton, se é que era blefe, tinha sido desmascarado. Podia sentir o calor do sangue subindo-lhe às faces. Sua língua tinha ido longe demais. Não sabia se Buck podia ou não pôr quatrocentos e cinquenta quilos em movimento. Quase meia tonelada! A enormidade do peso o apavorava. Tinha muita fé na força de Buck e muitas vezes o considerara capaz de mover tal carga; mas nunca, como agora, havia encarado essa possibilidade, os olhos de mais de uma dúzia de homens fixos nele, silenciosos e aguardando uma resposta. Ainda por cima, ele não tinha mil dólares; nem Hans, nem Pete.

     - Estou com um trenó lá fora, agora mesmo, com quatrocentos e cinquenta quilos em sacos de farinha - prosseguiu Matthewson com um imediatismo brutal. - Então, homem, não se faça de rogado.

Thornton não respondeu. Não sabia o que dizer. Seus olhos iam de um rosto para outro do mesmo modo ausente como olha quem perdeu a capacidade de raciocínio e fica procurando em toda a parte alguma coisa que lhe devolva tal capacidade. Os olhos de Jim O'Brien, rei da mina Mastodon e velho camarada, encontraram os seus. Foi como um sinal para ele, um estímulo que o levava a fazer o que jamais sonhara fazer em sua vida.

     - Dá pra me emprestar mil? - perguntou, quase num sussurro.

      - Claro - respondeu O'Brien, pousando com um baque um saquinho de ouro ao lado do de Matthewson.

     - Se bem que eu não bote muita fé que o animal consiga fazer isso aí, John.

     Todos os que estavam no Eldorado saíram à rua para assistir à prova. As mesas ficaram vazias, e o pessoal do bar também saiu para ver o resultado da aposta e fazer seus palpites. Centenas de homens, com capotes e luvas grossas, rodearam o trenó a uma boa distância. O trenó de Matthewson, carregado com os quatrocentos e cinquenta quilos de farinha, estava ali já havia algumas horas, e, naquele frio intenso (mais de quinze graus abaixo de zero), os patins estavam bem presos na neve endurecida. Os homens fizeram apostas de dois contra um em como Buck não conseguiria mover o trenó. Surgiu uma polêmica em tomo da frase "sair puxando". O'Brien afirmava que era direito de Thornton soltar os patins e que a Buck cabia "sair puxando" de um ponto morto. Matthewson insistia em que a aposta incluía soltar os patins das garras congeladas da neve. A maioria dos homens que tinha presenciado o acerto da aposta apoiou Matthewson, elevando as apostas para três a um contra Buck. Ninguém aceitou. Nenhum dos homens o julgava capaz de um feito como aquele. Thornton havia sido levado a aceitar uma aposta, cheio de dúvidas, e agora que olhava para o trenó, ali, a sua frente, com o grupo regular de dez cães deitados na neve diante do trenó, ainda mais impossível lhe parecia a tarefa. Matthewson estava cada vez mais radiante.

      - Três contra um! - proclamava. - Aposto mais mil com uma vantagem dessas, Thornton. Então, o que me diz?

     A dúvida transparecia no rosto de Thornton, mas seu espírito de luta fora despertado - o espírito de luta que se ergue acima das desvantagens, deixa de reconhecer o impossível e não ouve mais nada além do clamor da batalha. Chamou Hans e Pete para perto. Tinham pouco ouro, e, juntando tudo que os três parceiros possuíam, dava apenas duzentos dólares. Na maré de azar que atravessavam, aquele era todo o seu capital; mesmo assim, não vacilaram em colocar tudo contra os seiscentos dólares de Matthewson.

     O grupo de dez cães foi desatrelado, e Buck, com seus próprios arreios, foi preso ao trenó. Deixara-se contagiar pela excitação ao redor e sentia que de alguma forma deveria fazer algo grandioso por John Thornton. Ouviam-se murmúrios de admiração por seu aspecto magnífico. Estava em perfeitas condições, sem um grama sequer a mais ou a menos, e seus sessenta e cinco quilos eram de pura coragem e força. Seus pêlos brilhavam como seda. Ao longo do pescoço e dos ombros, os pêlos mais compridos, mesmo em repouso, estavam meio eriçados e pareciam erguer-se a cada movimento, como se o excesso de vigor fizesse cada pêlo ter vida própria. O peito largo e as pesadas patas dianteiras estavam em proporção perfeita com o resto do corpo, onde músculos surgiam firmes e salientes por debaixo da pele. Alguns homens apalparam esses músculos e afirmaram que eram duros como ferro, e as apostas caíram para dois contra um.

     - Muito bom! Muito bom! - gaguejou um membro da mais recente dinastia, um dos reis da Skookum Benches. - Ofereço oitocentos por ele, senhor, antes da prova, senhor, oitocentos do jeito como ele está agora.

     Thornton sacudiu a cabeça e caminhou para o lado de Buck.

     - Tem que ficar afastado dele - protestou Matthewson. - Jogo limpo e bastante espaço.

     A multidão ficou em silêncio; só se ouviam as vozes dos apostadores oferecer inutilmente dois contra um. Todos reconheciam que Buck era um animal magnífico, mas quatrocentos e cinqüenta quilos de farinha era muita carga para que se animassem a afrouxar os cordões das bolsas.

     Thornton ajoelhou-se ao lado de Buck. Segurou-lhe a cabeça entre as mãos e encostou o rosto nela. Não o sacudiu brincando, como era seu costume, nem murmurou suavemente ofensas de amor; apenas sussurrou em seu ouvido. "Pelo amor que tem por mim, Buck. Pelo amor que tem por mim", foi o que sussurrou. Buck ganiu baixinho, contendo sua ansiedade.

     A multidão observava, curiosa. O caso estava ficando misterioso. Parecia um feitiço. Quando Thornton se pôs de pé, Buck segurou-lhe a mão enluvada com a boca, apertando-a com os dentes e soltando-a lentamente, com certa relutância. Essa era a resposta, não em termos de palavras, mas de carinho. Thornton caminhou bem para trás.

    - Agora, Buck - disse.

     Buck esticou os tirantes, depois os afrouxou alguns centímetros. Era assim que tinha aprendido.

    - Direita! - A voz de Thornton ecoou aguda no silêncio cheio de tensão.

    Buck virou à direita, concluindo o movimento num mergulho que eliminou a folga dos tirantes e, de súbito, deteve seus sessenta e cinco quilos. A carga estremeceu, e dos patins vieram uns estalidos secos.

     - Esquerda! - ordenou Thornton.

     Buck repetiu as manobras, dessa vez para a esquerda. Estalidos transformaram-se em estalos secos, o trenó girando para o lado, os patins escorregando e arranhando vários centímetros. O trenó estava desencalhado. Os homens seguravam a respiração, sem sequer se aperceberem do fato.

     - Agora, EM FRENTE!

     A ordem de Thornton ressoou como um disparo de pistola. Buck atirou-se para a frente, esticando os tirantes com uma investida vibrante. Todo o seu corpo estava contraído, compacto, num esforço tremendo, os músculos retorcendo-se, movendo-se como coisas vivas debaixo do pêlo sedoso. O peito enorme estava rente ao chão, a cabeça abaixada, para a frente, enquanto as patas patinhavam como loucas, as unhas rasgando a neve dura em sulcos paralelos. O trenó balançou, tremeu, começando a avançar. Uma das patas deslizou, e um homem soltou uma exclamação de pena. Então o trenó cambaleou para a frente no que parecia ser um solavanco atrás do outro, se bem que, na verdade, não ficasse mais parado ... dois centímetros ... cinco centímetros ... dez centímetros ... Os solavancos iam diminuindo a olhos vistos; conforme o trenó ia ganhando embalo, os solavancos desapareciam, até mover-se firme para frente.

      Os homens, boquiabertos, começaram a respirar outra vez, sem notar que por alguns momentos tinham parado de respirar. Thornton saiu correndo atrás do trenó, encorajando Buck com palavras curtas de incentivo. Tinha-se medido a distância, e, conforme ele se aproximava da pilha de lenha que marcava o fim dos cem metros, gritos de alegria cresciam mais e mais, explodindo num urro enorme assim que ele passou pela pilha de lenha e parou por ordem de Thornton. Todos os homens comemoravam, até mesmo Matthewson. Chapéus e luvas voavam pelo ar. Homens apertavam as mãos, não importava de quem, e falavam sem parar numa confusão geral de vozes.

     Thornton caiu de joelhos ao lado de Buck. Cabeças encostadas, ele sacudia Buck para a frente e para trás. Aqueles que correram para perto ouviram-no dizer palavrões a Buck, ofensas prolongadas, comovidas, murmuradas e carregadas de amor.

     - Muito bom! Muito bom! - exclamou o rei da Skookum Benches. - Dou mil dólares por ele, senhor, mil dólares, senhor... mil e duzentos, senhor.

     Thornton pôs-se de pé. Os olhos úmidos. As lágrimas correndo livremente pelo rosto.

     - Meu senhor - disse ao rei da Skookum Bench -, não. E pode ir pro inferno com a sua proposta, senhor. É só o que eu tenho a dizer, senhor.

      Buck segurava a mão de Thornton entre os dentes. Thornton sacudia-o para a frente e para trás. Como se movidos por um mesmo impulso, os observadores afastaram-se em sinal de respeito, e nenhum deles foi indiscreto o bastante para interrompê-los mais uma vez.

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Fonte: Capítulo VI do livro O Chamado da Floresta, de Jack London, publicado em 1903. (São Paulo: Editora Ática, 2000. p.80-93).

                                                      x.x.x.

 

 

Boa de garfo

Luiz Vilela

     “Bom-dia” foi, naturalmente, a primeira coisa que meu pai disse ao homem.
      A segunda, só podia ser aquela “E essa fera aí?”
      A fera, que estava junto ao homem, era um cachorro fila, rajado, de um tamanho que eu nunca tinha vista na vida; um cachorro enorme. A gente ficava frio só de olhar para ele – aquela cabeçona com as beiçorras dependuradas.
      Mas o homem disse que não precisávamos ter medo, não tinha perigo.
       “O senhor tem certeza que não morde?” Perguntou meu pai.
       “É ela”, disse o homem, com um sorriso meio envergonhado.
       “Ela ou ele, a mordida dói do mesmo jeito”, disse meu pai.
       “O senhor pode ficar tranqüilo”, disse o homem: “Ela, quando não gosta de uma pessoa, vai logo avançando”.
       “É?”, disse meu pai, “Quer dizer se ela não tivesse gostado de mim, ela já tinha avançado...”
       “Tranquilamente”, disse o homem.
       “Tranqüilamente”, repetiu meu pai.
       “Mas eu sabia que ela não ia avançar”, disse o homem: “Eu sei o tipo de gente que ela não gosta: Bêbado, por exemplo, ela não pode nem sentir o cheiro”.
       “Ainda bem que eu não bebo”, disse meu pai com alívio.
      “O senhor pode ficar tranqüilo”, tornou a dizer o homem, “ela é mansinha...”
       Acho que meu pai não ficou tão tranqüilo, mas precisava continuar a conversa e convidou o homem a sentar-se numa das cadeiras do alpendre: o homem sentou-se. Depois meu pai sentou-se. Eu continuei em pé, no canto, olhando. A cachorra foi ficar ao lado do homem e sentou-se nas pernas de trás.

       O homem era miúdo, franzino. Era mulato, e tinha um bigodinho ralo e achinesado. Sua roupa estava com remendos, mas muito limpa – o que era bom sinal. Meu pai dizia “Se o sujeito não tem cuidado nem com a própria roupa, como eu posso esperar que ele tenha cuidado com o serviço? Meu pai devia ter gostado daquilo.
      O de que meu pai visivelmente não estava gostando era aquele animalzão parado ali, na frente, de olhos fixos nele. Mas a cachorra não parecia estar vigiando-o: parecia ser apenas curiosidade – como se ela também estivesse interessada na conversa. Mesmo assim, meu pai falou:
      “Escuta, será que ela não gostaria de dar umas voltinhas por aí enquanto a gente conversa? Tem muito passarinho ai: ela não gosta de pegar?”
       “Gostar, até que ela gosta, mas...”. o homem pareceu sem jeito de dizer:”é que não se afasta de mim por nada desse mundo; ela é muito apegada...” Olhou então para a cachorra e fez um carinho na cabeça dela: a cachorra retribuiu com um latido que fez tremer o ar no alpendre. “Ela é muito afetuosa...”
      “É”, disse meu pai, um tanto quanto assustado, “eu estou vendo...”
       Tentando esquecer a cachorra – o que não era muito fácil – meu pai prosseguiu a conversa:
     “Bom, como o senhor já sabe, meu negócio é hortaliça; comecei há pouco tempo e estou precisando de uma pessoa com bastante prática.”
      O homem sacudiu a cabeça. A cachorra, quieta, olhava para meu pai.
     “Eu tive boas informações sobre o senhor, fiquei sabendo de seu trabalho... Agora nós precisamos conversar, ver se a gente combina; são várias coisas...”
      Ao falar assim, meu pai olhou para a cachorra; não sei se foi intencional, querendo dizer que a
cachorra era uma das “coisas”, mas estava claro que ela o preocupava. Quando ele mandou o recado para o homem vir ao nosso sitio, ele não sabia que o homem viria acompanhado daquele cachorrão – o mais certo seria dizer o cachorrão acompanhando aquele homem - e, era evidente agora que a cachorra tinha de ser levada em conta na combinação deles.
      Houve uma pausa.
      O homem tirou do bolso da camisa um cigarro de palha, já começado, e acendeu em densas baforadas; Depois ficou olhando para fora, a espera de que meu pai prosseguisse.
      “Bem”, meu pai prosseguiu: “por quanto o senhor viria?”
      “Quanto de chão tem aqui?”
       “É o que o senhor está vendo, mais o pedaço atrás da casa, que vai até o córrego. É pouca coisa”, disse meu pai, com astúcia.
       “É, o senhor tem um sitio bem ajeitado...” o homem disse balançando a cabeça devagar; ele não era menos vivo. “O senhor planta o quê? Couve, alface, repolho...”
       “E os tomates. A maior área é a de tomate; está lá atrás, no fundo”.
       “Tomate é que é mais encrencado.”
       “É; eu tenho tido azar com os meus. Soube que o senhor é muito bom para mexer com tomate.”
       “A gente entende alguma coisa.”
       “Bom, a casa: a casa é aquela que está ali, no fundo, o senhor  deve ter visto...”
        “Eu vi; parece uma casinha até boa.”
        “É, ela é muito boa”, disse meu pai, animado com o andamento da conversa; “é uma casa nova”.
        “O senhor sabe que dá até pra morar uma família ali?”
        “Dá, perfeitamente”, disse me pai. “Mas o senhor é solteiro...”
        “Sou, pela graça de Deus.”
        Meu pai riu:
        “É, às vezes ser solteiro é mesmo uma graça...”
        O homem riu também.
        Então os dois ficaram sérios de novo para prosseguirem a conversa.
        “A bóia”, perguntou o homem: “como que é?”
        “A bóia é por conta do empregado”, disse meu pai.
        “Sei”, o homem balançou a cabeça concordando.
        Houve uma pausa.
        “Então”, perguntou meu pai: “por quanto o senhor viria?”.
        O homem olhou para o cigarro e limpou com o dedo a cinza na ponta; pareceu refletir. Então olhou para meu pai:
        “Por quinhentos eu viria.”
        “Quinhentos?”, meu pai quase caiu da cadeira.
        Um outro empregado, em que ele estava também interessado e que aparecera lá em casa poucos dias atrás, pedira trezentos e cinqüenta, e parecia tão bom quanto aquele, senão melhor – pelo menos, era bem mais forte.
      “O senhor está querendo demais”, disse meu pai; “o senhor vê que a área é pequena, a variedade dos produtos pouca, a casa boa...”
      “Quanto a isso não há dúvida”, disse o homem.
      “Eu soube que o senhor trabalha bem”, continuou meu pai; “tive muito boas informações. Mas por esse preço, sinceramente... o senhor há de reconhecer que é demais...”.
       “Eu reconheço”, disse o homem.
       “Então?”
     “A questão é que...”, o homem se mexeu na cadeira, meio incomodado. “Eu vou dizer pro senhor: cobrar caro pelo meu serviço, eu até que não cobro não. E vou dizer por quê: porque meu gasto é pequeno. Beber, eu não bebo; não sou enredado em saia; de vício, eu só tenho mesmo o cigarrinho. O senhor vê que é pouca coisa. A questão é que... A questão é a Bebé.”
       “Bebé? Quem é a Bebé?”

       “A cachorra”.
       “Ah, a cachorra; quer dizer que ela chama Bebé...”
       “Bom, o nome mesmo não e esse; Bebé é apelido”.
       “E qual é o nome?”
       “Elizabete.”
      “Elizabete?...”, meu pai arregalou os olhos. “É um nome bastante original para cachorro... Confesso que eu nunca tinha visto uma cachorra com esse nome...”
       “Era o nome da madrinha”, disse o homem.
       “Madrinha da...”
       “Minha madrinha”
      “Ah”, disse meu pai. “Ela deve ter ficado muito contente; sua madrinha...”
       “Não, ela não chegou a conhecer a cachorra não; ela morreu antes, que Deus a tenha”, e o homem ergueu respeitosamente o chapéu. “Foi ela que me criou, minha madrinha. Era uma Santa mulher. Devo muita gratidão a ela. E então falei que quando nascesse meu primeiro filho, se fosse mulher, eu ia batizar com o nome dela. Mas eu não casei; e aí, como eu gostava tanto dessa cachorra como de um filho, resolvi por o nome nela.”
       “Compreendo”, disse meu pai.

       “Muita gente acha que isso é abuso. Eu não acho. Segui meu coração, e, pra mim, tudo o que vem do coração é certo”.
O homem olhou para a cachorra, depois para o cigarro, depois,
novamente para meu pai.
      “Mas, como eu ia dizendo pro senhor, a questão é a cachorra: ela come muito.”
      “Quantos quilos ela come por dia?”
      “Quilos? Não sei, mas ela é boa de garfo.”
      “Boa de garfo? O senhor quer dizer que... que ela come muito; ou...”
      “É; ela come pra danar.”
      “O senhor pode dar ração pra ela.”
      “Ração? Ela não come: ela só come carne.”
      “O senhor dá carne pra ela todo dia?”
      “Dou; quer dizer, dava, quando eu estava no emprego, quando eu tinha dinheiro. Agora... O senhor vê que ela está magra...”
       “É”, disse meu pai, olhando para a cachorra, que continuava olhando para ele: “gorda ela não está mesmo não”.
       “Pois é...”
       “E como o senhor tem feito?”

       “Tem feito?”
       “O que o senhor tem dado para ela?”
       “Tenho dado abacate.”
       “Abacate? Ela come?”
       “Come. Mas tem que ser do liso; do cascudo ela não come não. Essa cachorra tem umas coisas que... eu vou dizer pro senhor: ela tem umas coisas em que ela é igualzinha a gente...”
       “Realmente”, disse meu pai. “Até hoje eu nunca tinha ouvido falar que cachorro come abacate.”
       “Não sei se é qualquer cachorro; essa come. Ela é compreensiva; eu expliquei pra ela que não tinha mais carne, e aí ela aceitou comer abacate. Foi a sorte, sorte
minha e dela, porque lá no rancho de meu irmão, onde eu estou agora, tem um pé de abacate, e ele fica tão carregado, que eu posso dar abacate pra ela o dia inteiro. Mas, não sei, acho que abacate não é comida de cachorro...”
       “É o que eu sempre pensei”, disse meu pai.
       “Acho que ela já anda com saudade duma boa carninha...”
       “Por que o senhor não arranja um cachorro menor?”
      “Um cachorro menor?... Eu vou explicar pro senhor: essa aí, quando eu peguei ela pra criar, era desse tamaninho; eu não sabia que ela ia ficar tão grande. Eu achei ela abandonada numa estrada e fiquei com dó; não sabia quem tinha abandonado, que raça que era, nem nada. Depois é que fui vendo; o bicho foi só crescendo, não parava mais de crescer, era aquela coisa. Quando vi, já era tarde. Quer dizer, eu já estava gostando dela. Aí...”
       Meu pai sacudiu a cabeça.
      “E ela não parou de   crescer ainda não”, continuou o homem. “O    senhor que pensa: ela é criança ainda, ela só tem um ano”.
       “Ela é bem crescidinha para a idade, hem?”
       “É... Mas também só tem tamanho essa danadona”, e o homem fez outro carinho na cabeça da cachorra.
      “O senhor algum dia já pensou no tanto que o senhor já gastou de carne com ela?”
       “Não, não pensei não, mas deve ter sido um despropósito.”
       “E se o senhor, em vez de dar carne para ela, tivesse comido essa carne?”
        “Eu?”
       “É; se, em vez de dar pra ela, o senhor tivesse comido essa carne?...”

        “É verdade”, o homem baixou o olhar, parecendo refletir; então olhou novamente para meu pai: “Mas e ela, quê que ela ia comer?”
         Meu pai não soube o que responder.
        “E depois”, disse o homem, “eu não tenho problema: eu como pouco. Pra mim, tendo arroz, feijão e farinha de mandioca, não precisa de mais nada; de vez em quando um ovinho frito. Ela é que é comilona. Come por três de mim essa cachorra. É por isso que eu peço esse ordenado. O senhor sabe que a carne não está brincadeira.”
       “É, mas esse preço... O senhor não vai encontrar emprego fácil não...”
       "Eu sei”, disse o homem baixando a cabeça, “eu sei disso; mas...” e olhou para o lado, para a cachorra.
       “O senhor não podia deixar a cachorra com alguém?”, perguntou meu pai. “Com seu irmão, por exemplo...”
        O homem fez uma expressão desolada:
       “Só se fosse pra ela ficar comendo abacate todo dia...”
       “É...”

      
“Mas também não ia adiantar: ela não fia longe de mim; uma vez ela ficou uma semana e quase morreu de tristeza.”
       Meu pai passou a mão pelos cabelos:
      “Se o senhor aceitasse por menos... Quinhentos é demais para mim; eu estou começando, luto com muita dificuldade... O senhor vê aí, quanta coisa ainda há por fazer...”
      “É verdade”, disse o homem, de cabeça baixa, “isso eu não nego...” depois olhou para meu pai: “Mas também vou dizer uma coisa pro senhor: a Bebé sabe ajudar, não é só comer não; pra campear gado não tem cachorro igual no mundo.”
      “Mas eu não tenho gado”, disse meu pai, já meio irritado.
      “Às vezes o senhor ainda pode ter.”
      “Não, não penso em ter gado não”.
      “Se o senhor tivesse, o senhor ia ver o tanto que ela boa pra campear.”
      “Pode ser, mas eu nunca pensei em ter gado, nem estou pensando nisso.”
       Meu pai olhou para a cachorra, quieta no mesmo lugar e sempre de olhos nele. Diabo, ele deve ter pensado, se não fosse aquela cachorra, tudo já estaria resolvido...
       Nessa hora minha mãe o chamou lá de dentro; ele pediu licença e foi. Eu fui junto.
      “Eu estava escutando a conversa”, disse minha mãe. “Quê que você ainda espera? Será que você está pensando em pegar esse sujeito? Onde você está com a cabeça? O outro pediu trezentos e cinqüenta: são cento e cinqüenta cruzeiros de diferença; quanta coisa a gente não pode fazer com esse dinheiro, a gente que vive no aperto? E, além do mais, o outro homem é muito mais forte; quê que esse tampinha aí agüenta?”
      Ele é mais competente”
     “Mais competente... Você tem hora q
ue me dá uma raiva... Você acredita em tudo o que os outros falam... Você está acreditando nessa conversa mole? E ele ainda vem com essa história de cachorro...”
      “Essa raça come mito mesmo”
      “Que coma, que coma até uma tonelada: você acha que é para isso que ele quer o dinheiro: Ele está te levando na conversa, fazendo você de bobo. E,depois, já pensou agente com um cachorro desses por perto? Ele é capaz de comer até a gente.”
      “É ela”, disse meu pai, imitando o homem, enquanto abria a garrafa térmica para tomar uma xícara de café.
      “Despache ele logo”, disse minha mãe, “senão ele vai ficar aí até tarde, ensebando, e você ainda precisa consertar o moinho. Eu vou à cidade agora, fazer as compras”.
      Meu pai e eu voltamos ao alpendre. O homem e a cachorra estavam lá, na mesma posição, e olharam ao mesmo tempo para nós.
      Meu pai sentou-se, franziu a testa, passou a mão na cabeça:
      Quer dizer que o senhor só viria mesmo por quinhentos...”
      “É”, disse o homem; “infelizmente... É como expliquei pro senhor...”
     Minha mãe então veio e passou pelo alpendre: cumprimentou secamente o homem e olhou de um jeito nada amistoso para meu pai. Quando ela ficava com raiva, andava reta e dura como uma tábua. Lá fora, ela caminhou até o carro, entrou e, sem dar tiau, arrancou numa zangada nuvem de poeira. Nós ficamos olhando, até o carro desaparecer na curva, por trás do milharal.
     Eu já conhecia bem meu pai para saber que, quando o carro desapareceu, ele teve uma sensação de alívio. Ficou então olhando para a cachorra, e num tom em que não falara até aquela hora, disse:
      “Ela não desprega os olhos de mim...”
      “Ela gostou do senhor”, disse o homem.
      “Será?...” disse meu pai.
      Para ver, ele se curvou um pouco para frente e estralou os dedos: num segundo, com uma rapidez incrível, a cachorra estava sobre ele, as patas no seu peito, a língua lambendo-lhe o rosto, ele sumindo o quanto podia na cadeira.
     “Cá, Bebé, cá”, o homem chamou, e a cachorra obedeceu. “Eu não falei? Ela gostou do senhor...”
      “É”, disse meu pai branco de susto.
      “Ela é muito carinhosa”
      “Eu vi”, disse meu pai.

      A cachorra olhava para ele – os olhos brilhantes, o rabo abanando fortemente -, querendo se aproximar e só esperando que meu pai estralasse outra vez os dedos, o que, evidentemente, ele não fez.
       “Sua cachorrinha é pesada...”
       “É...”
       “Que dirá quando ela está bem alimentada...”
       “Ah, o senhor precisa ver:aí ela fica uma beleza; fica parecendo uma leoa.”
       “Eu imagino”, disse meu pai.
       "Fica parecendo uma daquelas leoas de circo.”
       “Eu imagino...”
       Estávamos agora os três olhando para a cachorra, que continuava alegre, abanando o rabo, os olhos brilhantes.
      “Uma pergunta”, disse meu pai, sério de novo, e o homem olhou com atenção para ele: “o senhor não acha que ela poderia pisar nos canteiros?”
     “Canteiros?... Não, ela é bem-comportada; é só a gente falar, que ela obedece. O senhor pode ficar tranqüilo.”
      “Outra coisa: e se ela gostar de tomate?”
      “Tomate?, o homem ficou olhando meio confuso para meu pai; depois, vendo que ele ria, riu também: “O senhor está é brincando, né?
      “Não sei. Ela não gosta de abacate? Quem me dirá que ela não goste também de tomate?...”
      "Não, de tomate ela não gosta não, o senhor pode ficar tranqüilo...” o homem disse, rindo contente.
      “O senhor me garante?”
      “Garanto, o senhor pode ficar tranqüilo...”
      “Bom, disse meu pai, “nesse caso, então, o senhor pode vir”.
      “Sim senhor”, disse o homem. “Quando?”
      “Amanhã mesmo, se o senhor puder.”
      “Eu posso; amanhã o senhor pode me esperar, que eu venho”.
      “Combinado”, disse meu pai.
       Ficaram um momento em silêncio, o homem olhando com ternura para a cachorra, e meu pai olhando para os dois.
       O homem então se levantou:
       “Vamos Bebé?”
       Olhou para meu pai:
       “O senhor pode ficar tranqüilo; o senhor não vai se arrepender.”
       “Assim espero”, disse meu pai.
       O homem despediu-se dele, depois despediu-se de mim, chamando-me de “mocinho”. E então foi andando para a estrada, a cachorra a seu lado. Pareciam ter um gingado alegre no andar. Eu disse isso para meu pai.
      “É”, ele concordou, “eles são alegres, todos dois”.
      “Estão...”
      “Você acha que ele me fez de bobo?”, meu pai me perguntou.
      “Não”, eu disse.

      “Eu também acho que não”, disse meu pai; “tenho certeza”.
      “Eu também tenho certeza”, eu disse.
      “Sua mãe é que não vai gostar.”
      “Ih!... Ela vai ficar uma fera com o senhor...”
       "Se vai...”, disse me pai, rindo. “Eu não quero nem saber...”
       Ele me pôs a mão no ombro:
      “Vamos lá, consertar o moinho?”
      “Vamos”, eu disse.  
                    

Fonte: VILELA, Luiz. Lindas pernas. S. Paulo: Livraria Cultura Editora,1978.

x.x.x

Cheirar, nunca mais

Cassiano Elek Machado

    

        Dinho deixou de chafurdar diariamente na cocaína, no crack, no ecstasy e na maconha para bater em outras portas da percepção. Gaúcho de boa cepa, só no mês passado, já grisalho, ele pôde afundar os caninos, pela primeira vez, num naco sanguinolento de churrasco. Ele fez por merecer, trabalhou como um cão. Durante toda a existência, bateu ponto na Polícia Federal de Porto Alegre. Vivia espartanamente, como um cronograma puxado de exercícios e treinamentos, alimentação regrada, horários restritivos, confinamento. Noitadas, esbórnias, reivindicações trabalhistas, maledicências contra os superiores – jamais. Para ele, só havia o emprego. O emprego e os narcóticos, dia após dia. É rebolando o traseiro que Dinho comemora a libertação das drogas, o início de uma vida cã.
       O principal jornal gaúcho, Zero Hora, documentou o rito de passagem. Numa terça-feira, no final de março (2007), Dinho ocupou toda uma página do tablóide. Vestido com um luzidio colete negro da Polícia Federal, exibia um porte altivo. Sua carreira de agente terminava ali. Para tristeza dos colegas, o maior farejador da história de Divisão de Repreensão a Entorpecentes do Rio Grande do Sul pendurava a coleira.
Como alguns aposentados neuróticos, que não conseguem se reciclar, ele continua a freqüentar o local de trabalho. Mas enquanto outros labradores aguardam novas missões, é espalhadão no assoalho, junto aos pés de seu parceiro de trabalho, Arthur Vargas, que Dinho desfruta do ar-condicionado.
         Vargas e Dinho viveram mais de oito anos o estilo Cosme e Damião: um não trabalhava sem o outro. A parceria começou no Canil Central da Polícia Federal, em Brasília, onde todos os cães-agentes são
treinados desde pequenos. A vida de um farejador começa a tomar forma aos dois meses de idade. Nessa idade, os labradorzinhos (ou springerzinhos spaniels, ou mallinoisinhos ou pastozinhos alemães) previamente selecionados, por serem filhos de outros farejadores, fazem uma espécie de vestibular, no Distrito Federal. Os hiperativos e possessivos passam para uma segunda fase. Ao completar um ano, estão prontos para a “universidade”: um curso intensivo de três meses, de segunda a sexta-feira, em período integral.
        “Cada cão faz três drogas de manhã e três de tarde”, explica Vargas, com a voz calma e um par de óculos de clínico geral. O treinamento é todo feito com a mesma ferramenta: um tubo de PVC branco, do tamanho de uma lanterna grande, dentro do qual é colocado outro tubo de PVC branco um pouco menor, com alguns furos ao longo de sua superfície. Dentro do recipiente interno são postas, alternadamente, embaladas em saco de plástico as cinco drogas que os farejadores brasileiros são treinados para detectar: cocaína, crack, maconha, ecstasy e, mais recentemente, heroína. É com este mesmo bastão de PVC, cada vez aromatizado com um narcótico, que os cães federais brincarão até o final de sua vida – ou melhor, até, como Dinho, se aposentarem.
          Gaúcho de São Borja (como Getúlio), Vargas explica que a atividade dos farejadores se reduz a encontrar o tubo branco, e com isso ganhar afagos de seu parceiro e treinador. Os cães não são premiados com biscoitos, com bistecas ou com roupinhas de lã. Nos treinamentos, nos quais o brinquedo de PVC com narcótico é escondido das mais variadas formas, eles são recompensados com uma saudação do tipo: “ boa, garoto!”.
        Para evitar que tenham seus 240 milhões de células olfativas corrompidas (os humanos, temos no máximo 12 milhões delas), os agentes-farejadores comem apenas um tipo de ração, não convivem com outras pessoas que não seus treinadores, não passeiam livremente e são impedidos de cheirar florzinhas, postes, xixis, e secreções de outros cachorros. Quando são usados em operações em aeroportos, em batidas policiais nas estradas ou em buscas e apreensões, eles apenas querem o brinquedo de PVC.
         Em 55 flagrantes, Dinho detectou mais de uma tonelada de cocaína e quatro de maconha. É um recorde nacional. Seu talento olfativo fez com que fosse o escolhido para representar o Brasil no exterior. “1º Seminário Sudamericano Canino 1999 – Bolívia”, lê-se no diploma ao lado da mesa de Vargas. Embora não fosse um encontro competitivo, Dinho foi, diz seu parceiro, o único entre os cães hermanos que conseguiu detectar as drogas em todos os testes.
         A excelência do filho de uma cão inglês ( o senhor Book) e de uma brasileira (Madame Bruska) fez com que ele fosse requisitado peara missões pelo Brasil afora, e representasse a Polícia Federal na Semana Farroupilha e em algumas festas da uva, como atestam dezenas de fotografias afixadas na maior sala do canil porto-alegrense, onde ele vivia.
         No mesmo ambiente, fica uma ferramenta importante do trabalho da dupla Vargas-Dinho. Em um cofre cinza-esverdeado, semelhante aos que os Irmãos Metralha tentavam abrir nos quadrinhos da Disney, ficam recipientes com cocaína, crack e ecstasy (a heroína anda em falta). Vargas, e os demais treinadores, precisam de susbstâncias para manter os tubos de PVC com o cheiro da droga tal como ela é comercializada: fresca. A cocaína e o crack são as que perdem o seu buquê mais rapidamente. Com isso, o canil da PF recebe com regularidade pacotes com drogas da melhor qualidade. A mistura de drogas faz com que, ao ser aberto, o cofre exale o bafo de um pântano.
        Quando Vargas se aproxma do canil com um bastonete de PVC devidamente aromatizado, os cães ali hospedados fazem uma algazarra que picanha alguma provoca numa cachorrada normal. Sob o olhar blasé de Boss, um rotweiller, que não faz parte da brigada de farejadores, e que fica por ali apenas para proteger os demais cães, é com a agilidade de um Michael Jordan que Astro, um labrador, tenta alcançar as mãos do policial.

         Dinho, cuja aposentadoria faz com que se desapegue progressivamente do brinquedo anaboilizado, ensaia alguns pulos, mas logo se acomoda, de língua de fora. Enquanto isso, Vargas dá os comandos para Astro: “zit!”, “nein!”, “up!” . Isto porque a Polícia Federal adotou a escola alemã de treinamento de farejadores, e é nesse idioma que eles aprendem os principais comandos. Se na escola inglesa, os cães trabalham com coleira, e costumam ser exibidos ostensivamente, na alemã tudo é feito na miúda: na maior parte das missões, os cães não ficam à vista, e tentam achar seus tubos de PVC nos bastidores dos aeroportos.
          Para Dinho, tudo isso é passado. Com exceção de uma ou outra missão na qual é levado como “supervisor”, a vida dele agora é feita de ar-condicionado, sonecas à vontade e todo um novo universo gastronômico. Eros, seu filho, Astro, o neto, e Luck, o bisneto continuarão seu legado farejador na PF. Para o velho labrador, que completou 10 anos e foi adotado pelo parceiro Vargas, nada mais de ouvir gritos em alemão e correr atrás de drogas. Ele cansou da cocaína e ligou no chocolate.
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Fonte: Revista "Piaui", maio de 2007.

 

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