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Antologia canina

vol. 7

Antologia

                                       

     Resultado de imagem para cachorros

      

 

CANINA

Extrato     Conto    Crônica

 

VIRGINIA WOOLF

O rapto de Flush

 

LYGIA FAGUNDES TELLES

Biruta

 

CARLOS HEITOR CONY

O cão e o homem

 

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Um experimento editorial

O título da obra expressa seu objetivo: recolher e divulgar os melhores contos e crônicas caninas p.p. ditas e alguns  embutidos nos romances. São partes do texto extraídos de  romances, que adquiriram vida própria como conto. Foi o que fizeram com Baleia, uma  parte extraída do romance Vidas secas, de Graciliano Ramos, que adquiriu vida própria como conto e tornou-se um clássico.

Assim, fizemos com José Saramago, Paul Auster, Ciro Alegria, Tibor Déry, Jack London e Virginia Woolf. Muitos dos cães protagonistas aparecem em diversas partes do romance ou se constituem no ator principal. No entanto extraímos apenas uma parte contínua do texto, onde o nosso “fiel amigo” aparece em sua melhor forma.  

Trata-se de um experimento editorial para verificar sua aceitação pública. Vamos continuar recolhendo tais “pérolas” literárias tendo em vista a compilação de uma antologia canina.  

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O rapto de Flush

Viginia Woolf

 

“Nesta manhã, Arabel e eu, e ele conosco”, escreveu a Senhorita Barret, “pegamos um cupê de praça e fomos até Vere Street, onde tínhamos alguns negócios a cuidar, e ele nos seguiu, como sempre, para dentro e para fora da loja, e estava nos meus calcanhares quando subimos na carruagem. Eu me voltei e disse ‘Flush’, e Arabel olhou em volta procurando-o – não havia Flush nenhum por ali! Ele havia sido capturado naquele instante, de debaixo de nossos narizes, entendeste?” Browning entendeu perfeitamente bem. A Senhorita Barret esquecera a coleira, portanto Flush foi roubado. Em 1846, essa era a lei em Wimpole Street e seus arredores.

              É verdade que nada era capaz de sobrepujar-se à aparente solidez e segurança de Wimpole Street. Tanto que uma inválida podia perambular por ali ou sair em sua cadeira de passeio sem ser ameaçada por nada naquela paisagem de casas de quatro pavimentos, janelas de vidro e portas de mogno. Até mesmo uma carruagem puxada por dois cavalos, durante um passeio vespertino, não precisava, se o cocheiro fosse discreto, sair dos limites do decoro e da respeitabilidade. Mas uma pessoa que não fosse inválida nem possuísse uma carruagem puxada por dois cavalos, se ela fosse – como muitas pessoas o eram – ativa, com o corpo perfeito, e se gostasse de andar, então poderia ver coisas, ouvir linguagens e sentir cheiros a menos de um tirinho de distância de Wimpole Street; coisas que jogavam dúvidas sobre a solidez até mesmo da própria Wimpole Street. Foi exatamente o que o Senhor Thomas Beames (1) descobriu quando resolveu sair caminhando por Londres. Surpreendeu-se; ficou até mesmo chocado. Prédios esplêndidos erguiam-se em Westminster; no entanto, logo atrás deles, havia choupanas em ruínas nas quais seres humanos viviam amontoados sobre vacas – “dois a cada dois metros de espaço”. Sentiu que deveria contar a outros o que vira. Mas como é que alguém poderia descrever, de maneira polida, um quarto em que duas ou três famílias viviam sobre um estábulo de vacas, quando não havia ventilação no estábulo, quando as vacas eram ordenhadas, mortas e comidas sob o quarto? Aquilo era uma tarefa, o Senhor Beames percebeu quando tentou executá-la, que colocava à prova todos os recursos da língua inglesa. Mesmo assim, sentiu que precisava descrever o que vira no decorrer de uma tarde de caminhada através de algumas das freguesias mais aristocráticas de Londres. O risco de contrair tifo era muito grande. Os ricos não sabiam que espécie de perigos rondavam por ali. Não conseguiu segurar a língua quando descobriu o que descobriu em Westminster, Paddington e Marylebone. Por exemplo, havia uma mansão que anteriormente pertencera a algum destacado integrante da nobreza. Relíquias de lareiras de mármore continuavam em pé. Os quartos tinham as paredes forradas e os corrimãos eram entalhados; mas, no entanto, os pisos estavam apodrecidos, as paredes respingadas de imundície; hordas de homens e mulheres seminuas haviam tomado como moradia os antigos salões de banquetes. Então, seguiu em frente. Um especulador imobiliário havia derrubado uma antiga mansão de família. Havia construído no local, às pressas, uma precária casa de cômodos de aluguel. A chuva pingava através do telhado, e o vento soprava através das paredes. Viu uma criança mergulhar uma lata em um córrego de água verde brilhante e perguntou se bebiam daquela água. Sim, e também usavam-na para banhar-se, já  que  o  senhorio   só permitia que água fosse ligada duas vezes por semana. Tais sinais eram os mais surpreendentes, porque apareciam nos bairros mais sossegados e civilizados de Londres – “as freguesias mais aristocráticas de Londres têm sua cota”. Atrás do quarto da Senhorita Barret, por exemplo, ficava um dos piores cortiços de Londres. Tal imundice misturada a tanta respeitabilidade. Mas existiam certos bairros que, sem dúvida, havia muito tinham sido deixados para os pobres, e ninguém os incomodava. Em Whitechapel, ou em uma área triangular abaixo de Torrenham Court Road, a pobreza, a miséria e a libertinagem reproduziram-se, agitaram-se e propagaram sua espécie por séculos, sem sofrer interferências. Uma densa massa de prédios antigos próxima a St. Giles “era quase um assentamento penal, uma metrópole indigente por si só”. Por consequência e de maneira bastante adequada, o local em que os pobres aglomeravam-se era conhecido como Rookery (2). Porque lá os seres humanos apinhavam-se uns em cima dos outros como gralhas apinham-se e enegrecem as copas das árvores. Só que construções não eram árvores; mal podiam ser chamadas de construções. Celas de tijolos eram separadas por corredores cheios de sujeira. Durante todo o dia, os corredores fervilhavam de seres humanos seminus; à noite, juntavam-se as eles os  ladrões, mendigos e prostitutas que voltavam para casa depois de exercer suas funções durante todo o dia na parte mais próspera da cidade, o West End. A polícia não podia fazer nada. Nenhum viajante solitário podia fazer nada além de atravessar a região o mais rápido possível e talvez sugerir, como o Senhor Beames havia feito, com muitas citações, subterfúgios e eufemismos, que as coisas não eram bem como deveriam ser. A cólera tomaria conta do lugar, e talvez essa dica não fosse assim tão sutil.

              Mas, no verão de 1846, tal informação ainda não fora divulgada; e o único comportamento seguro para quem morava em Wimpole Street e seus arredores era manter-se rigorosamente dentro dos limites da área respeitável e conduzir os cães com coleira. Se alguém se esquecesse das regras, como a Senhorita Barret esquecera, pagaria o preço, como a Senhora Barret agora devia pagar. Os termos sob os quais Wimpole Street vivia ombro a ombro como St. Giles eram bem conhecidos. St Giles roubava tudo o que conseguia; Wimpole Street pagava o que tinha que pagar. Portanto, na mesma hora, Arabel “começou a me consolar, mostrando-me como eu o recuperaria com dez libras, no máximo”. Sabia-se que dez libras era mais ou menos o preço que o Senhor Taylor pediria por um cocker spaniel. O senhor Taylor era o chefe do bando. Assim que uma dama de Wimpole Street perdia seu cão, procurava o Senhor Taylor; ele dava o seu preço, que era pago; ou, se não fosse, um embrulho de papel pardo era entregue em Wimpole Street alguns dias depois, contendo a cabeça e as patas do cão. Tal fora, pelo menos, a experiência de uma dama da vizinhança que tentara fazer um acordo com o Senhor Taylor. Mas é claro que a Senhorita Barret estava disposta a pagar o que ele pedisse. Portanto, quando chegou em casa e contou o acontecido a seu irmão Henry, ele foi ter com o Senhor Taylor naquela mesma tarde. Encontrou-o “fumando um charuto em uma sala com quadros” – dizia-se que o Senhor Taylor ganhava de dois a três mil por ano com os cães de Wimpole Street – e o Senhor Taylor prometeu que averiguaria junto a “Sociedade” e que o cão seria devolvido no dia seguinte. Por mais vexatório que fosse o assunto, além de especialmente inoportuno no momento em que a Senhorita Barret mais precisava de todo seu dinheiro, essas eram as consequências inevitáveis de esquecer-se de colocar a coleira em um cão em 1846.

              Mas, para Flush, as coisas eram bem diferentes. Flush, a Senhorita Barret refletiu, “não sabe que é possível recuperá-lo”; Flush nunca dominara os princípios da sociedade humana. “Durante toda esta noite, ele vai uivar e lamentar-se, eu sei muito bem”, A Senhorita Barret escreveu para o Senhor Browning na tarde de terça-feira, dia 1º de setembro. Mas, enquanto a Senhorita Barret escrevia para o Senhor Browning, Flush vivia a pior experiência de sua vida. Sentia-se extremamente perplexo. Em um instante, estava em Vere Street, entre fitas de ponta-cabeça, dentro de uma bolsa; sacolejando velozmente por ruas, até finalmente ser despejado – aqui. Descobriu-se na completa escuridão. Descobriu-se no frio e na umidade. Assim que a tontura passou, distinguiu-se algumas formas na sala baixa e escura – cadeiras quebradas, um colchão revirado. Então foi agarrado e amarrado firmemente pela pata a algum tipo de obstáculo. Algo se espalhava pelo chão – se era animal ou humano, não sabia dizer. Botas pesadas e vestidos enlameados entravam e saíam sem parar. Moscas ajuntavam-se sobre restos de carne velha que apodreciam no chão. Crianças vinham arrastando-se dos cantos escuros e puxavam suas orelhas. Ele ganiu, e uma mão pesada acertou-lhe a cabeça. Encolheu-se de medo contra a parede, nos poucos centímetros disponíveis de tijolos úmidos. Agora, conseguia ver que o chão estava coalhado de animais de diferentes tipos Cães abocanhavam e despedaçavam um osso podre que disputavam entre si. Suas costelas apareciam sob o pelo – estavam esfaimados, sujos, doentes, sem pentear e sem escovar-se; e, no entanto, Flush percebeu que todos eram cães de raça, cães de coleira, cães de companhia como ele próprio.

           Ficou lá deitado, sem ousar ganir, hora após hora. Seu maior sofrimento era a sede, mas um gole da água espessa esverdeada que estava em uma gamela próxima deixou-o nauseado; preferiria morrer a experimentar aquilo novamente. No entanto, um galgo imponente bebia o líquido com ganância. Cada vez que alguém chutava a porta para abri-la, ele olhava para cima. Senhorita Barret – será que era a Senhorita Barret? Será que chegava, afinal? Mas era só um bandido que chutava todos os cães para o lado e ia tropeçando até uma cadeira quebrada, sobre a qual se jogava. Então, gradualmente, a escuridão foi ficando mais densa. Ele mal conseguia distinguir as figuras no chão, no colchão, nas cadeiras quebradas. Um toco de vela estava preso sobre o peitoril da lareira. Uma chama tremeluzia na sarjeta, do lado de fora. Em sua luz bruxuleante e grosseira, Flush via os rostos terríveis que passavam do lado de fora, espiando de soslaio pela janela. Iam entrando, até que a pequena sala acanhada ficou tão apinhada de gente que ele precisou se encolher e encostar-se ainda mais na parede. Esses monstros horríveis – alguns eram esfarrapados, outros brilhavam, cobertos de pintura e de penas – agachavam-se no chão; amontoavam-se em cima da mesa. Começaram a beber, a xingar e a amaldiçoar uns aos outros. Mais cães saíam aos trambolhões dos sacos jogados no chão – cães de companhia, setters, pointers, ainda usando suas coleiras; e uma cacatua gigante que se agitava e esvoaçava de um canto para o outro, gritando “Prety Poll”, “Pretty Poll” (3), com um sotaque que teria aterrorizado sua dona, uma viúva de Maida Vale. Então as bolsas das mulheres abriram-se e foram despejadas sobre a mesa braceletes, anéis e broches, como aqueles que Flush vira a Senhorita Barret e Henrietta usarem. Os demônios colocavam suas patas sobre as jóias e as agarravam; xingavam-se e brigavam por causa delas. Os cães latiam. As crianças guinchavam, e a esplêndida cacatua – um pássaro igual a um outro que Flush vira frequentemente em uma janela de Wimpole Street – gritava “Pretty Poll! Prety Poll!” cada vez mais rápido, até que um chinelo foi atirado em sua direção e o pássaro agitou suas grandes asas da cor cinzenta dos pombos, com manchas amarelas, em frenesi. Então a vela virou e caiu. A sala ficou escura. Foi ficando cada vez mais quente; o cheiro e o calor eram insuportáveis, o focinho de Flush queimava; seu pêlo coçava. E, ainda assim, a Senhorita Barret não chegava.                                                    

           A senhora estava deitada em seu sofá em Wimpole Street. Estava aflita; estava preocupada, mas não seriamente abalada. Claro que Flush sofreria; ganiria e latiria a noite toda, mas era apenas questão de algumas horas. O Senhor Taylor estabeleceria seu valor; ela o pagaria; Flush seria devolvido.

           A manhã de quarta-feira, dia 2 de setembro, despontou nos cortiços de Whitechapel. As janelas quebradas gradualmente se mancharam de cinza. A luz caiu sobre os rostos peludos dos bandidos esparramados pelo chão. Flush acordou de um transe que cobria seus olhos om um véu e, mais uma vez, percebeu a realidade – esta sala, estes bandidos, estes cães ganindo, avançando e rangendo os dentes, este ar sujo, esta umidade. Será que, apenas no dia anterior, ele estivera de fato em uma loja acompanhado de damas, rodeado por fitas? Será que existia um lugar como Wimpole Street? Será que existia um quarto onde a água fresca cintilava em um pote vermelho; será que ele já se deitara em almofadas; será que comera uma asinha de frango bem assada e temperada; e será que se contorcera de raiva e mordera um homem de luvas amarelas? Toda aquela vida e os sentimentos que a acompanhavam flutuavam para longe, dissolviam-se, tornavam-se irreais.

           Aqui, à medida que a poeira filtrava a luz que entrava, uma mulher levantou-se pesadamente do saco onde estivera sentada e saiu aos tropeços para buscar cerveja. A bebida e os xingamentos recomeçaram. Uma mulher gorda ergueu-o pelas orelhas e beliscou suas costelas: fizeram alguma piada odiosa a seu respeito – quando ela o jogou no chão novamente, ouviram-se gargalhadas. A porta foi chutada e aberta, e fechou-se om uma batida. Sempre que aquilo acontecia, ele olhava para cima. Será que era Wilson? Ou a Senhorita Barret? Mas não – era apenas outro ladrão, outro assassino; encolhia-se de medo à mera visão daquelas saias enlameadas, daquelas botas pesadas e pontudas. Certa vez, tentou abocanhar um osso que foi atirado em sua direção. Mas seus dentes não eram capazes de se fechar naquela carne endurecida, e o cheiro rançoso deixava-o nauseado. Sua sede aumentou, e foi obrigado a lamber um pouco da água verde que espirrara da panela. Mas, à medida que a quarta-feira foi passando e ele foi se sentindo mais quente e mais ressecado e ainda mais dolorido, deitado sobre as tábuas quebradas, uma coisa fundiu-se com a outra. Ele mal notava o que acontecia. Foi quando a porta se abriu que ele levantou a cabeça e olhou. Não, não era a Senhorita Barret.

           A senhorita Barret, deitada no sofá em Wimpole Street, estava ficando ansiosa. Havia alguma espécie de dificuldade nos procedimentos. Taylor prometera que iria a Whitechapel na quarta-feira à tarde e averiguaria junto à “Sociedade”. No entanto, a tarde e a noite de quarta-feira passaram e Taylor continuava sem dar notícias. Isso só podia significar, ela concluiu, que o preço subiria – o que seria deveras inconveniente naquele momento. Ainda assim, claro, ela teria que pagar. “Eu preciso do meu Flush, tu sabes”, ela escreveu ao Senhor Browning. “Não posso correr o risco de querer barganhar e discutir.” E assim permanecia no sofá, escrevendo para o Senhor Browning e esperando ouvir uma batida à porta. Mas Wilson subiu com as cartas; Wilson subiu com a água quente. Era hora de dormir, e Flush não chegara.

           Quinta-feira, 3 de setembro, amanheceu em Whitechapel. A porta abriu e fechou. O setter ruivo que ganira a noite toda ao lado de Flush, no chão, foi arrastado para fora por um bandido usando capa de molesquim – para que sorte? Será que era melhor ser morto ou permanecer ali? O que era pior: esta vida ou aquela morte? A algazarra, a fome e a sede, os cheiros fedorentos do lugar – e, no passado, Flush lembrou, detestara o cheiro de eau-de-cologne – rapidamente apagavam qualquer imagem clara, qualquer desejo específico. Fragmentos de memórias antigas começavam a rodar em sua mente. Será que aquela voz pertencia ao velho Doutor Mitford gritando no campo? Era aquela tal de Kerenhappoch fofocando com o padeiro à porta? Ouviu-se um ruído na sala e ele pensou ter ouvido a Senhorita Mitford amarrando um ramalhete de gerânios. Mas era só o vento – porque aquele era um dia de tempestade – batendo no papel pardo que cobria a vidraça quebrada. Era só alguma voz bêbada delirando na sarjeta. Era só a velha do   canto resmungando sem parar enquanto fritava um arenque em uma frigideira sobre o fogo. Ele fora esquecido e abandonado. Nenhum auxílio viria. Nenhuma voz falava com ele

– os papagaios gritavam “Pretty Poll, Pretty Poll”, e os canários continuavam com  seus arrulhos e estrilos sem sentido                                                                           

            Então, mais uma vez, a noite escureceu a sala; a vela foi colocada em seu pires; a luz bruxuleou do lado de fora; hordas de homens sinistros com sacos nas costas, de mulheres espalhafatosas com os rostos pintados começaram a arrastar-se porta adentro  e jogar-se sobre as camas e as mesas quebradas. Mais uma noite jogara sua escuridão sobre Whitechapel. E a chuva pingava sem parar por um buraco no teto e escorria para dentro de um balde que fora colocado de modo a recolher a água. A Senhorita Barret não viera.

           Quinta-feira amanheceu em Wimpole Street. Não havia sinal de Flush – nem recado de Taylor. A Senhorita Barret estava aflita demais. Fez indagações. Chamou seu irmão Henry e o interrogou. Descobriu que ele a enganara. O “satanás” Taylor estivera na casa, de acordo com sua promessa. E fixara seus termos – seis guinéus para a Sociedade e meio guinéu para si mesmo. Mas, Henry, em vez de comunicar a ela, comunicou ao Senhor Barret; como resultado, claro, o Senhor Barret disse-lhe que não pagasse e que escondesse a visita de sua irmã. A Senhorita Barret ficou muito “aborrecida e brava”. Ordenou que seu irmão fosse imediatamente até o Senhor Taylor e pagasse a quantia exigida. Henry recusou-se e “falou a respeito de Papai”. Mas não adiantava nada falar de Papai, protestou. Enquanto falavam de Papai, Flush poderia ser morto. Ela tomou uma decisão. Se Henry não fosse, iria sozinha: “...se os outros não fizerem o que quero, devo ir pessoalmente amanhã de manhã e trarei Flush comigo”, escreveu ao Senhor Browning.

           Mas, então a Senhorita Barret viu que era mais fácil falar do que fazer. Era quase tão difícil ela ir até Flush quanto Flush vir até ela. Toda Wimpole Street estava contra ela. A notícia de que Flush fora roubado e de que Taylor pedia um resgate agora era de domínio público. Wimpole Street estava disposta a tomar uma posição contra Whitechapel. O Senhor Boyd, que era cego, mandou dizer que, em sua opinião “seria terrível pecado” pagar o resgate. Seu pai e seu irmão estavam de conluio contra ela e seriam capazes de qualquer trapaça em nome dos interesses de sua classe. Mas pior de tudo – mito pior – foi que o próprio Senhor Browning jogou todo seu peso, toda sua eloquência, toda sua sabedoria, toda sua lógica para o lado de Wimpole Street e contra Flush. Se a Senhorita Barret desse espaço a Taylor, escreveu, estaria dando espaço à tirania; estaria dando espaço à chantagistas; estaria aumentando o poder do mal sobre o bem, da imoralidade sobre a inocência. Se desse a Taylor o que ele pede, “...como pagariam os pobres donos que não têm dinheiro suficiente para libertar seus cães”? Sua imaginação se inflamou; imaginou o que diria se Taylor lhe pedisse meros cinco xelins; diria: Tu és responsável pelos lucros do teu bando, e tu estás na minha mira – não digas bobagens a respeito de cortar cabeças e patas. Gastarei toda a minha vida fazendo com eu tu, o inconveniente que tu te mostras, sucumbas – e, por todos os meios imagináveis, serei a tua morte, assim como de todos os teus cúmplices que eu venha a descobrir - mas a ti eu já descobri e nunca te perderei de vista – tenha disso tanta certeza quanto é certo que aqui estou e digo...” Assim o Senhor Browning teria respondido a Taylor se tivesse a boa sorte de encontrar aquele cavalheiro. Porque, de fato, foi em frente, desenvolvendo a idéia em uma segunda carta, enviada naquela mesma quinta-feira à tarde: “...é horrível vislumbrar como todos os opressores em seus vários níveis, se assim desejarem, são capazes de dobrar os fracos e os silenciosos de diversas maneiras, uma vez que descobrem seus pontos fracos”. Ele não culpava a Senhorita Battet – nada que ela fazia poderia ser nada mais que perfeitamente correto, perfeitamente aceitável para ele. Ainda assim, prosseguiu na sexta-feira de manhã: “Considero isso uma fraqueza lamentável...” Se ela estimulasse Taylor, que roubava cães, encorajaria o Senhor Bernard Gregory (4), que roubava personagens. Indiretamente, ela seria responsável por todos os infelizes que cortavam suas gargantas ou fugiam do país porque algum chantagista como Bernard Gregory copiara alguma lista e divulgara seus nomes. “Mas por que desfilar essa sequência de banalidades a respeito da coisa mais evidente do mundo?” Então, dessa maneira, o Senhor Browning esbraveja e vociferava em New Cross, duas vezes por dia.

           Deitada em seu sofá, a Senhorita Browning lias as cartas. Como teria sido difícil render-se – como teria sido fácil dizer: “Para mim, a tua justa opinião vale mais do que uma centena de cocker sapaniels”. Como teria sido fácil afundar-se em seus travesseiros e suspirar: “Eu sou uma mulher fraca, não sei nada a respeito de lei e justiça, decida por mim”. Tudo o que ele tinha a fazer era recusar-se pagar o resgate; só precisava desafiar Taylor e sua Sociedade. E se Flush fosse morto, se o terrível pacote, se ela o abrisse e de dentro caíssem a cabeça e as patas do animal, teria Robert Browning a seu lado para assegurá-la de que tomara a decisão acertada e que conquistara seu respeito. Mas a Senhorita Barret não se intimidaria. Pegou sua pena e refutou o Senhor Browning. Era muito bonito, escreveu, citar o caso Gregory; inventar respostas espirituosas para o Senhor Taylor – ele teria feito o mesmo caso Taylor a difamasse – se ousassem! Mas o que o Senhor Browning teria feiro se os bandidos tivessem-na roubado; se tivessem ela em seu poder, ameaçando cortar as orelhas dela e enviá-las pelo correio para New Cross? Independentemente da decisão dele, ela tomaria uma decisão. Flush estava indefeso. Seu dever era para com ele. “Mas Flush, pobre Flush, que me amara tão fielmente. Será que tenho direito de sacrificá-lo em sua inocência, em nome da culpa de qualquer Senhor Taylor no mundo? Independentemente do que o Senhor Browning pudesse dizer, ela salvaria Flush, mesmo que precisasse ir até as mandíbulas de Whitechapel para recolhê-lo, mesmo que Robert Browning a desprezasse por tomar essa atitude.

           No sábado, portanto, com a carta do Senhor Browning aberta sobre a mesa à sua frente, começou a vestir-se. Ela leu: “Mais uma palavra – com tudo isso, quero dizer que vou contra a política execrável dos maridos, dos pais, dos irmãos e dos dominadores em geral do mundo”. Portanto, se ela fosse até Whitechapel , iria colocar-se contra o Senhor Browning e a favor dos pais, dos irmãos e dos dominadores em geral. /Ainda assim, continuou a vestir-se. Um cão uivou nas estrebarias. Estava preso, indefeso, sob o poder de homens cruéis. Parecia, que, enquanto uivava, dizia a ela: ”Pense em Fluxh”. Calcou os sapatos, vestiu a capa, colocou o chapéu. Olhou para a carta do Senhor Browning mais uma vez. “Estou prestes a casar-me contigo”, leu. E o cão continuava a uivar. Deixou o quarto e desceu as escadas.

           Henry Barret foi a seu encontro e disse que, em sua opinião, corria o risco de ser assaltada e assassinada se chegasse a  fazer o que ameaçava. Ela mandou Wilson chamar um cupê de praça. ?Toda trêmula, porém submissa, Wilson obedeceu. Wilson, apesar de convencida de que a morte a espreitava, subiu na carruagem. A Senhorita Barret disse ao condutor que fosse até Manning Street, no Shoreditch. A própria Senhorita Barret subiu a bordo, e a carruagem partiu. Logo, deixaram para trás as janela envidraçadas, as portas de mogno e os terrenos cercados de grades. Estavam em um mundo que a Senhorita Barret nunca vira, sobre o qual nunca refletira. Estavam em um mundo onde vacas eram criadas sob quartos de dormir, onde famílias inteiras dormiam em aposentos com as janelas quebradas; em um mundo onde a água era ligada apenas duas vezes por semana, em um mundo onde a libertinagem e a pobreza originavam mais libertinagem e pobreza. Chegavam a uma região desconhecida dos condutores de cupês respeitáveis. A carruagem parou; o condutor perguntou o caminho em uma hospedaria. “De lá saíram dois ou três homens: ‘Ah, o senhor deseja encontrar o Senhor Taylor, arrisco-me a dizer?’”. A este mundo misterioso, um cupê transportando duas damas só poderia vir por um motivo, e o motivo já era conhecido. Tudo era sinistro ao extremo. Um dos homens correu para dentro de uma casa e saiu dizendo que o Senhor “não estava em casa! Mas será que eu não gostaria de descer?” Wilson, em um murmúrio de terror, suplicou que eu nem pensasse em tal coisa”. Uma cambada de homens e garotos ajuntavam-se em volta da carruagem. “Será que eu não gostaria de ver a Senhora Taylor?, o homem perguntou. A Senhorita Barret não tinha desejo algum de ver a Senhora Taylor; mas agora uma imensa mulher gorda já saía de casa, “gorda o bastante para alguém que sempre teve a consciência tranquila”, e informou à Senhorita Barret que seu marido estava fora: “Ele pode voltar daqui a alguns minutos ou daqui a muitas  horas – será que eu não gostaria de descer e esperar?. Wilson puxava sua saia. Imagine só, esperar dentro da casa daquela mulher! Já era bem ruim ficar sentada no cupê com aquela cambada de homens e de garotos aglomerando-se ao redor deles. Assim, a Senhorita Barret negociou com a “imensa bandida” sem sair do cupê . Ela disse que o Senhor Taylor estava com o cão dela; o Senhor Taylor prometera devolver seu cão ; será que poderia dar como certo que o Senhor Taylor levaria seu cão de volta a Wimpole Street naquele mesmo dia? “Ah, com certeza”, disse a mulher gorda com um sorriso dos mais corteses no rosto. Acreditava que o Senhor Taylor saía de casa precisamente para cuidar desse assunto. E então “balançou a cabeça de um lado para o outro com a graça das mais afáveis”.

           Então, o cupê de praça deu meia volta e deixou para trás Manning Street, no Shoreditch. Wilson acreditava que “escapamos com vida por pouco. A própria Senhorita Barret ficara receosa. “Estava bem claro que a corja era forte ali. A Sociedade, o ‘Capricho’, como o bandido era conhecido, estava enraizado no solo”, escreveu. Sua mente fervilhava de pensamentos, seus olhos enchiam-se de imagens. Era isso, então que existia do outro lado do Wimpole Street? – estes rostos, estas casas. Enquanto esperava na carruagem parada à frente da pensão, vira mais coisas do que durante todos os cinco anos passados em repouso no quarto dos fundos de Wimpole Street. “Os rostos daqueles homens!”, exclamou. Estavam marcado em sua retina. Estimulavam sua imaginação mais do que “as divinas presenças de mármore”, os bustos em cima da estante de livros, jamais haviam estimulado. Ali viviam mulheres como ela mesma; enquanto ela vivia em seu sofá, lendo e escrevendo, elas também viviam. Mas agora o cupê já passava por casas com quatro pavimentos mais uma vez. Aqui estava a avenida conhecida de porta e janela: o tijolo anguloso, os batentes de latão, as cortinas habituais. Aqui estava em Wimpole Street e o número 50. Wilson pulou para fora do cupê – com o maior alívio que se possa imaginar por estar a salvo, finalmente. A Senhorita Barret talvez tenha hesitado por um instante. Continuava vendo “os rostos daqueles homens”. Que voltariam à sua mente anos depois, quando estava acomodada em uma sacada ensolarada na Itália, para escrever. Inspirariam a passagem mais intensa em Aurora Leigh. Mas, agora, o mordomo já abrira a porta, e ela subira as escadas, de volta a seu quarto.      

           Sábado foi o quinto dia da prisão de Flush. Quase exausto, quase desesperado, ficou arfando em seu canto escuro no chão cheio de insetos. Portas batiam e se fechavam. Vozes ásperas gritavam. Papagaios tagarelavam como nunca haviam tagarelado às janelas em Maida Vale, mas agora velhos e velhas maldosas simplesmente os xingavam. Insetos arrastavam-se por seu pelo, mas estava fraco demais, indiferente demais para sacudir o corpo. Toda a vida pregressa de Flush e as cenas que a ilustravam – Reading, a estufa. A Senhorita Mitford, o Senhor Kenion, as estantes de livros, os bustos, os camponeses na persiana – esvaíam-se como flores de neve que se dissolvem em um caldeirão. Se é que ainda lhe restava algum tipo de esperança, era algo sem nome e sem forma; o rosto sem feições de alguém chamada “Senhorita Barret”. Ela ainda existia; todo o resto do mundo não estava mais lá; mas ela ainda existia, apesar de haver tantos abismos entre eles, a ponto de ser impossível, quase, que ela o alcançasse. A escuridão começou a cair mais uma vez; uma escuridão tal que quase parecia capaz de esmagar sua última esperança – a Senhorita Barret.

           Na verdade, as forças de Wimpole Street ainda batalhavam, até mesmo neste último instante, para manter Flush e a Senhorita Barret afastados. No sábado à tarde, deitada em seu sofá, ela esperava o Senhor Taylor chegar, como a mulher imensamente gorda prometera. Afinal, chegou, mas não trazia o cão consigo. Enviou um recado – Que a Senhorita Barret lhe pagasse seis guinéus no ato, dando “sua palavra de honra”. O que valia a palavra de honra de “satanás”, a Senhorita Barret não sabia dizer, mas parecia “não haver outra saída”; a vida de Flush estava em jogo; ela contou os guinéus e mandou entregar a Taylor; no corredor. Mas, como quis a má sorte, enquanto Taylor aguardava entre os guarda-chuvas, as gravuras, o tapete felpudo e outros objetos valiosos, Alfred Barret entrou. A visão do satanás efetivamente dentro da sua casa fez com que ele perdesse as estribeiras. Explodiu em um acesso de raiva. Chamou-o de “vigarista, mentiroso e ladrão”. Depois disso, o Senhor Taylor respondeu aos xingamentos. O pior de tudo é que jurou que “assim como confiava no salvação, nós nunca mais veríamos nosso cão”, e saiu apressado da casa. Na manhã seguinte, portanto, o pacote sanguinolento chegaria.

           A Senhorita Barret enfiou-se em suas roupas mais uma vez e desceu as escadas, apressada. Onde estava Wilson? Que ela chamasse um cupê. Retornaria a Shoreditch naquele mesmo instante. A família veio correndo para impedi-la. Estava ficando escuro. Ela já estava exausta. A aventura seria bastante arriscada mesmo para um homem em perfeita saúde. Para ela, era loucura. Foi o que lhe disseram. Seus irmãos, suas irmãs, todos se juntaram à sua volta, ameaçando-a, tentando dissuadi-la , “gritando comigo por ser ‘completamente insana’, obstinada e caprichosa – fui chamada de tantos nomes quanto o Senhor Taylor”. Mas ela fincou os pés no chão. Afinal, perceberam a extensão de sua loucura. Quaisquer que fossem os riscos, deveriam abrir caminho para ela. Septimus prometeu que se Ba voltasse para o quarto “e  ficasse de bom humor, ele próprio iria ao encontro de Taylor, pagaria a quantia exigida e traria o cão de volta.    

           Assim, o anoitecer do dia 5 de setembro transformou-se no escuro da noite em Whitechapel. Mais uma vez, a porta da sala foi chutada e aberta. Um homem peludo agarrou Flush pela pele do pescoço e tirou-o de seu canto. Olhando pra cima, para o rosto horrendo de seu velho inimigo. Flush não sabia se estava sendo levado para a morte ou para a liberdade. A não ser por uma memória apagada, ele não se importava. O homem tropeçou. Por que aqueles dedos enormes mexiam na sua garganta? Seria uma faca ou uma coleira? Tropeçando, meio cego, sobre patas que vacilavam, Flush foi conduzido a céu aberto

           Em Wimpole Street, a Senhorita Barret não conseguia engolir seu jantar. Flush estaria vivo ou morto? Não sabia, Às oito da noite, ouviu-se uma batida à porta; era a carta habitual do Senhor Browning. Mas, quando a porta se abriu para dar passagem à correspondência, algo mais também entrou correndo – Flush. Foi direto até seu pote de vermelho. Que foi reabastecido três vezes; e ele continuou a beber. A Senhorita Barret olhava para o cão sujo, perplexo e atordoado que bebia sua água. “Não ficou tão entusiasmado em me ver quanto eu esperava”, observou. Não, só havia uma coisa no mundo que ele queria – água limpa.

           Afinal, a Senhorita Barrete vira aqueles rostos apenas de relance e estava fadada a lembrar-se deles por toda avida. Flush ficara à sua mercê em em sua companhia durante cinco dias inteiros. Agora, ao acomodar-se sobre almofadas mais uma vez, a água fresca era a única coisa que parecia ter algum tipo de substância, algum tipo de realidade. Bebia sem parar. Os antigos deuses do quarto – a estante de livros, o guarda-roupas, os busto – pareciam ter perdido sua substância. Este quarto já não era mais o mundo inteiro; era apenas um abrigo. Não passava de um pequeno vale coberto por uma camada frágil de folhas em uma floresta onde animais selvagens andam à espreita e cobras venenosas serpenteiam; onde, atrás de cada árvore, esconde-se um assassino pronto para dar o bote. Ao jogar-se, perplexo e exausto, no sofá, aos pés da Senhorita Barret, os uivos dos cães amarrados e os gritos dos pássaros aterrorizados ainda ecoavam em seus ouvidos. Quando a porta abriu, a expectativa do aparecimento de um homem peludo com uma faca causou-lhe um sobressalto – era apenas o Senhor Kenion com um livro; era apenas o Senhor Browning com as luvas amarelas. Mas, agora, escondia-se do Senhor Kenion e do Senhor Browning. Não confiava mais neles. Por trás daqueles rostos sorridentes e gentis havia traição, crueldade de falsidade. Suas carícias eram vazias. Ele tina medo até de ir à caixa de correio com Wilson. Não se movia sem a coleira no pescoço. Quando diziam “pobre Flush, foi levado pelos homens maus”, ele levantava a cabeça, gemia e urrava. Um estalo de chicote fazia com que corresse para se esconder sob os degraus do pátio interno, para sentir-se a salvo. Quando estava dentro de casa, espremia-se bem junto a Senhorita Barret no sofá. Ela era a única que não o abandonara. Ainda tinha alguma confiança nela. Gradualmente, ela foi recobrando alguma substância. Exausto, trêmulo, sujo e muito magro, ele se acomodou no sofá, a seus pés.

           À medida que os dias passavam e as lembranças de Whitechapel iam ficando cada vez mais fracas, /Flush, acomodado próximo à Senhorita Barret no sofá, era capaz de entender os sentimentos dela de maneira mais clara do que nunca. Tinham sido separados; agora estavam juntos. De fato nunca foram tão semelhantes. Cada sobressalto dela, cada movimento que fazia passava através dele também. Agora parecia que ela vivia sobressaltada e em movimento. A entrega de um pacote até mesmo fez com que tivesse um sobressalto. Abriu o pacote; com aqueles dedos trêmulos, retirou dali um par de botas pesadas. Escondeu-as no mesmo instante, no canto do armário. Então se deitou como se nada tivesse acontecido; e, no entanto, algo acontecera. Quando ficaram sozinhos, ela se levantou e retirou um colar de diamantes de uma gaveta. Pegou a caixa onde guardava as cartas do Senhor Browning. Ajeitou tudo – as botas, o colar e as cartas – em uma caixa forrada, e então – como ouvisse alguém subir as escadas -, empurrou a caixa para debaixo da cama e deitou-se, apressada, voltando a cobrir-se com seu xale. Tais sinais de sigilo e de dissimulação certamente anunciavam, Flush sentia, a aproximação de alguma espécie de crise. Estariam prestes a fugir juntos? Estariam prestes a escapar juntos desse mundo perverso de ladrões de cães e de tiranos? Ah se isso fosse possível! Ele tremia e gania de excitação; mas, com sua voz grave, a Senhorita Barret mandou que se calasse, e, na mesma hora, ele ficou quieto. Ela também estava muito quieta. Acomodava-se completamente imóvel em seu sofá logo que algum de seus irmãos ou alguma de suas irmãs entrava; ficava deitada conversando com o Senhor Barret..

           Mas, no sábado, dia 12 de setembro, a Senhorita Barret fez algo inédito para Flush.   Vestiu-se como  se fosse  sair  logo  após o desjejum. Além disso, enquanto a observava vestir-se, Flush entendeu perfeitamente, baseado na expressão em seu rosto, que não a acompanharia. Ela ia cuidar de assuntos secretos e particulares. Às dez, Wilson entrou no quarto. Ela também estava vestida como se fosse dar um passeio. Saíram juntas; Flush ficou deitado no sofá, esperando que retornassem. Mais ou menos uma hora depois, a Senhorita Barret voltou sozinha. Nem olhou para ele – parecia não estar olhando para nada. Tirou as luvas, e, por um instante, ele viu uma aliança de ouro brilhar em um de seus dedos de sua mão esquerda. Então a viu retirar o anel da mão e escondê-lo na escuridão de uma gaveta. Então se acomodou no sofá como sempre. Ficou deitado a seu lado, mal tendo coragem de respirar porque, seja o que houvesse acontecido, era algo que deveria ser escondido a todo custo.

           A todo custo, a vida no quarto deveria continuar correndo como sempre. No entanto, tudo estava diferente. O simples movimento da persiana, que balançava para frente e para trás, parecia a Flush um alerta. E as luzes e as sombras que passavam sobre os bustos também pareciam fazer insinuações e sinais. Tudo no quarto parecia estar ciente da mudança; estar pronto para algum tipo de acontecimento. E, no entanto, tudo estava em silêncio, tudo estava escondido. Os irmãos e as irmãs entravam e saíam como sempre; o Senhor Barret vinha à noite, como sempre. Parecia o mesmo de sempre quando se assegurava de que a costeleta fora comida, de que o vinho fora bebido. A Senhorita Barret conversava e ria e não dava sinais de estar escondendo algo quando havia alguém no quarto. Mas, quando ficavam sozinhos, tirava a caixa de baixo da cama e a enchia apressada e furtivamente, com ou ouvidos bem atentos enquanto desempenhava a ação. Os sinais de tensão eram inequívocos. No domingo, os sinos da igreja tocaram. “Que sinos são esses?”, alguém perguntou. “Os sinos da igreja de Marylebone”, a Senhorita Henrietta disse. Flush viu a Senhorita Barret ficar branca como a morte. Mas ninguém parecia notar nada.

          Então a segunda-feira se passou, assim como a terça, a quarta e a quinta. Sobre cada um daqueles dias pairava uma manta de silêncio, de comer e de conversar e de repousar no sofá como sempre. Flush, agitando-se de um lado para o outro em seu sono irrequieto, sonhava que estavam deitados, juntos, sob samambaias, em folhagens, na escuridão, em uma floresta ampla; então as folhas se abriram e ele acordou. Estava escuro, mas viu Wilson entrar furtivamente no quarto, pegar a caixa sob a cama e leva-la para fora em silêncio. Era sexta-feira à noite, dia 18 de setembro. Durante toda a manhã de sábado, ficou deitado como alguém que sabe que, a qualquer momento, um alfinete vai cair, um assobio baixo vai soar e estará dado o sinal para a vida ou a morte. Observou a Senhorita Barret vestir-se. Às quinze para as quatro, a porta abriu-se e Wilson entrou. Então, foi dado o sinal - A Senhorita Barret tomou-o nos braços. Levantou-se e caminhou até a porta. Por um instante, ficaram ali parados, examinando o quarto. Ali estava o sofá e, a seu lado, a poltrona do Senhor Browning. Ali estavam os bustos e as mesas. A luz do sol era filtrada pelas folhas de hera, e a persiana com seus camponeses era suavemente soprada para fora. Tudo como sempre. Tudo parecia pronto para que os mesmos movimentos se repetissem mais um milhão de vezes; mas, para a Senhorita Barret e para Flush, aquela seria a última vez, Era silêncio, a Senhorita Barret fechou a porta.

           Em silencio, deslizaram escada a baixo, passando pela sala de estar, pela biblioteca, pela sala de jantar. Tudo tinha a mesma aparência de sempre, cheirava como sempre; tudo estava quieto como se estivesse dormindo naquela tarde quente e setembro. Sobre o capacho da entrada, Catiline dormia também. Alcançaram a porta da frente e, em silêncio, giraram a maçaneta. Um cupê esperava do lado de fora .

           “Para a livraria Hodgson”, disse a Senhorita Barret. Ela falava quase em sussurros. Flush acomodou-se sobre seus joelhos, imóvel. Não teria rompido aquele tremendo silêncio por nada neste mundo. 

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(1)Thomas Beames: escritor inglês que em 1850 publicou a obra The rookeries of London, na qual descreveu o submundo da capital inglesa.

 

(2)Rookery: viveiro de gralhas, em inglês. A palavra também serve para designar cortiços e construções em ruínas que abrigam pessoas.

 

(3)“Prety Poll”: em inglês, som associado a pássaros que imitam a voz humana. Também é o nome de uma canção do século XVIII

 

(4) Bernard Gregory (1796-1852): editor dos jornais humorísticos britânicos The Satirist (1831-49) e The Penny Satirist (1837-46), que satirizavam personalidades vitorianas.

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Extraido de WOOLF, Virginia. Flush: memórias de um cão. Porto Alegre, L&PM, 2003. p. 71-95.

x.x.x

 

Biruta

Lygia Fagundes Telles

     Alonso foi para o quintal carregando uma bacia cheia de louça suja. Andava cm dificuldade, tentando equilibrar a bacia que era demasiado pesada para seus bracinhos finos.

     - Biruta, eh, Biruta! - chamou sem se voltar.

   O cachorro saiu de dentro da garagem. Era pequenino e branco, uma orelha em pé e a outra completamente caída.

    - Sente-se aí, Biruta, que vamos ter uma conversinha - disse Alonso pousando a bacia ao lado do tanque. Ajoelhou-se, arregaçou as mangas da camisa e começou a lavar os pratos.

     Biruta sentou-se muito atento, inclinando interrogativamente a cabeça ora para a direita, ora para a esquerda, como se quisesse apreender melhor as palavras do seu dono. A orelha caída ergueu-se um pouco, enquanto a outra empinou, aguda e ereta. Entre elas, formaram-se dois vincos, próprios de uma testa franzida do esforço de meditação.

    - Leduína disse que você entrou no quarto dela - começou o menino num tom brando. - E subiu em cima da cama e focinhou as cobertas e mordeu uma carteirinha de couro que ela deixou lá. A carteira era meio velha e ela não ligou muito. Mas se fosse uma carteira nova, Biruta! Se fosse uma carteira nova! Me diga agora o que é que ia acontecer se ela fosse uma carteira nova!? Leduína te dava uma surra e eu não podia fazer nada, como daquela outra vez que você arrebentou a franja da cortina, lembra? Você se lembra muito bem, sim senhor, não precisa fazer essa cara de inocente!...

irutBiruta deitou-se, enfiou o focinho entre as patase baixou a orelha. Agora, ambas as orelhas estavam no mesmo nível, murchas, as pontas quase tocando o chão. Seu olhar interrogativo parecia perguntar:

"Mas o que foi que eu fiz, Alonso? Não me lembro de nada..."

  - Lembra sim senhor! E não adianta ficar aí com essa cara de doente, que não acredito, ouviu? Ouviu, Biruta?! - repetiu Alonso lavando furiosamente os pratos. Com um gesto irritado, arregaçou as mangas que já escorregavam sobre os pulsos finos. Sacudiu as mãos cheias de espuma. Tinha as mãos de velho

  - Alonso, anda ligeiro com essa louça! - gritou Leduína, aparecendo por um momento na janela da cozinha. - Já está escurecendo, tenho que sair!

  - Já vou indo - respondeu o menino enquanto removia a água da boca. Voltou-se para o cachorro. E seu rostinho pálido se confrangeu de tristeza. Por que Biruta não se emendava, por que? Por que razão não se esforçava um pouco para ser melhorzinho? Dona Zulu já andava impaciente. Leduína também. Biruta fez isso, Biruta fez aquilo...

  Lembrou-se do dia em que o cachorro entrou na geladeira e tirou de lá a carne. Leduína ficou desesperada, vinham visitas para o jantar, precisava encher os pastéis, "Alonso, você não viu onde deixei a carne?" Ele estremeceu. Biruta! Disfarçadamente, foi à garagem no fundo do quintal, onde dormia com o cachorro num velho colchão metido num ângulo de parede. Biruta estava lá deitado bem em cima do travesseiro, com a posta de carne entre as patas, comendo tranquilamente. Alonso arrancou-lhe a carne, escondeu-a dentro da camisa e voltou à cozinha. Deteve-se na porta ao ouvir Leduína queixar-se à dona Zulu que a carne desaparecera, aproximava-se a hora do jantar e o açougue já estava fechado, "o que é que eu faço, dona Zulu?"

    Ambas estavam na sala. Podia entrever a patroa a escovar freneticamente os cabelos. Ele então tirou a carne de dentro da camisa, ajeitou o papel já todo roto que a envolvia e entrou com a posta na mão

     - Está aqui Leduína.

     - Mas falta um pedaço!

    - Esse pedaço eu tirei pra mim. Eu estava com vontade de comer um bife e aproveitei quando você foi na quitanda.

     - Mas por que você escondeu o resto? - perguntou a patroa, aproximando-se

     - Por que fiquei com medo.

     Ele ainda tinha bem viva na memória a dor brutal que sentira nas mãos corajosamente abertas para os golpes da escova. Lágrimas saltaram-lhe dos olhos. Os dedos foram ficando roxos, mas ela continuava batendo com aquele mesmo vigor obstinado com que escovara os cabelos, batendo, batendo, como se não pudesse parar mais.

     - Atrevido! Ainda te devolvo pro asilo, seu ladrãzinho!

    Quando ele voltou à garagem, Biruta já estava lá, as duas orelhas caídas, o focinho entre as patas, piscando, piscando os olhinhos ternos. "Biruta, Biruta, apanhei por sua causa, mas não faz mal."

    Biruta então ganiu sentidamente. Lambeu-lhe as lágrimas. Lambeu-lhe as mãos.

   Isso tinha acontecido há duas semanas. E agora Biruta mordera a carteirinha de Leduína. E se fosse a carteira de dona Zulu?

    - Hem, Biruta?! E se fosse a carteira de dona Zulu?

    Já desinteressado, Biruta mascava uma folha seca.

    - Por que você não arrebenta minhas coisas? - prosseguiu o menino elevado a voz. - Você sabe que tem todas as minhas pra morder, não sabe? Pois agora não te dou presente de Natal, está acabado. você vai ver se ganha alguma coisa. Você vai ver!...

    Girou sobre os calcanhares, dando as costas ao cachorro. Resmungou ainda enquanto empilhava a louça na bacia. Em seguida, calou-se, esperando qualquer reação por parte do cachorro. Como a reação tardasse, lançou-lhe um olhar furtivo. Biruta dormia profundamente.

    Alonso então sorriu. Biruta era como uma criança. Por que não entendiam isso? Não fazia nada por mal, queria só brincar... Por que dona Zulu tinha tanta raiva dele? Ele só queria brincar, como as crianças. Por que dona Zulu tinha tanta raiva de crianças?

    Uma expressão desolada amarfanhou o rostinho do menino. "Por que dona Zulu tem que ser assim? O doutor é bom, quer dizer, nunca se importou nem comigo nem com você, é como se a gente não existisse, Leduína tem aquele jeitão dela, mas duas vezes já me protegeu. Só dona Zulu não entende que você é que nem uma criancinha. Ah Biruta, Biruta, cresça logo, pelo amor de Deus! Cresça logo e fique um cachorro sossegado, com bastante pêlo e as duas orelhas de pé! Você vai ficar lindo quando crescer, Biruta, eu sei que vai!"

   - Alonso! - Era a voz de Leduína. - Deixe de falar sozinho e traga logo essa bacia. Já está quase noite, menino.

    Alonso ergueu-se afobadamente. Mas antes de pegar a bacia meteu a mão na água e espargiu-a no focinho do cachorro.

     - Chega de dormir, seu vagabundo!

     Biruta abriu os olhos, bocejou com um ganido e levantou-se, estirando as patas dianteiras, num longo espreguiçamento.

     O menino equilibrou penosamente a bacia na cabeça. Biruta seguiu-o aos pulos, mordendo-lhe os tornozelos, dependurando-se com os dentes na barra do seu avental.

    - Aproveita, seu bandidinho! - riu-se Alonso. - Aproveita que eu estou com a mão ocupada, aproveita!

    Assim que colocou a bacia na mesa, ele inclinou-se para agarrar o cachorro. Mas Biruta esquivou-se, latindo. O menino vergou o corpo sacudido pelo riso.

     - Aí, Leduína que o Biruta judiou de mim!...

    A empregada pôs-se guardar rapidamente a louça. Estendeu-lhe uma caçarola com batatas:

    - Olhaí para o seu jantar. Tem ainda arroz e carne no forno.

    - Mas só eu vou jantar? - surpreendeu-se Alonso ajeitando a caçarola no colo.

    - Hoje é dia de Natal, menino. Eles vão jantar fora, eu também tenho a minha festa. Você vai jantar sozinho.

    Alonso inclinou-se. E espiou apreensivo para debaixo do fogão. Dois olhinhos brilharam no escuro: Biruta estava lá. Alonso suspirou. Era bom quando Biruta resolvia se sentar! Melhor ainda quando dormia. Tinha então a certeza de que não estava acontecendo nada. A

trégua. Voltou-se para Leduína.

     - O que o seu filho vai ganhar?

     - Um cavalinho - disse a mulher. A voz suavizou. - Quando ele acordar amanhã, vai encontrar o cavalinho dentro do sapato dele. Vivia me atormentado que queria um cavalinho, que queria um cavalinho...

     Alonso pegou uma batata cozida, morna ainda. Fechou-a nas mãos arroxeadas.

    - Lá no asilo, no Natal, apareciam umas moços com uns saquinhos debalas e roupas. Tinha uma que já me conhecia, me dava sempre dois pacotinhos em lugar de um. A madrinha. Um dia, me deu sapato, um casaquinho de malhae uma camisa.

     - Por que ela não ficou com você?

     - Ela disse uma vez que ia me levar, ela disse. Depois, não sei por que ela não apareceu mais...

     Deixou cair na caçarola a batata já fria. E ficou em silêncio, as mãos abertas em torno a vasilha. Apertou os olhos. Deles, irradiou-se para todo o rosto uma expressão dura. Dois anos seguidos esperou por ela. Pois não prometera levá-lo? Não prometera? Nem lhe sabia o nome, não sabia nada a seu respeito, era apenas " a madrinha". Intilmente a preocurava entre as moças que apareciam no fim do ano com os pacotes de pesentes. Inutilmente cantava mais alto do que todos no fim da festa, quando então se reunia aos meninos da capela. Ah, se ela pudesse ouvi-lo!

                              "... O bom jesus é quem nos traz

                                A mensagem de amor e alegria"...

    - Também é muita responsabilidade tirar crianças para criar! - disse Leduína desamarrando o avental. - Já chega os que a gente tem...

     Alonso baixou o olhar. E de repente sua fisionomia iluminou-se. Puxou o cachorro pelo rabo. Riu-se:

  -Eh, Biruta! Está com fome, Biruta? Seu vagabundo! Vagabundo!... Sabe, Leduína, Biruta também vai ganhar um presente que está escondido lá debaixo do meu travesseiro. Com aquele dinheirinho que você me deu, lembra? Comprei uma bolinha de borracha, uma beleza de bola! Agora dele não vai precisar mais morder suas coisas, tem a bolinha só pra isso. Ele não vai mais mexer em nda, sabe, Ledeuína?

    - Hoje cedo ele não esteve no quarto da dona Zulu?

    O menino empalideceu.

    - Só se foi na hora em que fui lavar o automóvel... Por que Leduína? Por quê? Que foi que aconteceu?

     Ela hesitou. E encolheu os ombros.

    - Nada. Perguntei à toa.

    A porta abriu-se bruscamente e a patroa apareceu. Alonso encolheu-se um pouco. Sondou a fisionomia da mulher. Mas ela estava sorridente. O menino sorriu também.

    - Ainda não foi pra sua festa, Leduína? - perguntou a moça num tom afável. Abotoava os punhos do vestido de renda. - Pensei que você já estivesse saído... - E antes que a empregada respondesse, ela voltou-se para Alonso: - Então? Preparando seu jantarzinho?

    O menino baixou a cabeça. Quando ela lhe falava assim mansamente, ele não sabia o que dizer.

    - O Biruta está limpo, não está? - Prosseguiu a mulher, inclinando-se para fazer uma carícia na cabeça do cachorro. Biruta baixou as orelhas, ganiu dolorido e escondeu-se debaixo do fogão.

     Alonso tentou encobrir-lhe a fuga:

   - Biruta, Biruta! Cachorro mais bobo, deu agora de se esconder... - Voltou-se para a patroa. E sorriu desculpando-se: - Até de mim ele se esconde.

     A mulher passou mão no ombro do menino:

    - Vou a uma festa onde tem um menino assim do seu tamanho. Ele adora cachorros. Então me lembrei de levar o Biruta emprestado só por esta noite. O pequeno está doente, vai ficar radiante, o pobrezinho. Você empresta seu Biruta só por hoje, não emnpresta? O automóvel ja está na porta. Ponha ele lá que já estamos de saída.

     O rosto do menino resplandeceu num sorriso. Mas então era isso?!... Dona Zulu pedido o Biruta emprestado, precisando do Biruta!... Abriu a boca para dizer-lhe que sim, que o Biruta estava limpinho, e que ficaria contente de emprestá-lo para o menino doente, estava muito contente com isso... Mas sem dar-lhe tempo de responder, a mulher saiu apressadamente da cozinha.

    - Viu, Biruta? Você vai numa festal - exclamou Alonso, beijando repetidas vêzes o focinho do cachorro. - Você vai numa festa, seu sem-vergonha! Numa festa com crianças, com doces. com tudo! Mas pelo amor de Deus, tenha juizo, nada de desordens! Se você se comportar, amanhã cedinho te dou uma coisa. Vou te esperar acordado, hem? Tem um presente no seu sapato ... - acrescentou num sussurro, com a boca encostada na orelha do cachorro. Apertou-lhe a pata. - Te espero acordado, Biru ... Mas não demore muito!

      O patrão já estava na direção do carro. Alonso aproximou-se.

      - O Biruta, doutor...

     O homem voltou-se ligeiramente. Baixou os olhos.

     - Está bem, está bem. Pode deixá-lo ai atrás.

     Alonso ainda beijou furtivamente o focinho do cachorro. Em seguida, fêz·lhe uma última carícia, colocou-o no assento do automóvel e afastou-se correndo.

     - Biruta vai adorar a festa! - exclamou assim que entrou na cozinha. - E lá tem doces, tem crianças, ele não quer outra coisa! - Fez uma pausa. Sentou-se. - Hoje tem festa em teda parte, não, Leduina?

     A mulher já se preparava para sair.

     - Decerto.

     Alonso pôs-se a mastigar pensativamente.

     - Foi hoje que Nossa Senhora fugiu no burrinho?

    - Não, menino. Foi hoje que Jesus nasceu. Depois então é

que aquele rei manda prender os três.

     Alonso concentrou-se, apreensivo:

    - Sabe, Leduina, se algum rei malvado quisesse matar o Biruta, eu me escondia com ele no meio do mato e ficava morando lá a vida inteira, só nós dois!... - Riu-se metendo uma batata na boca. E de repente ficou sério, ouvindo o ruido do carro que já saia. - Dona Zulu estava linda, não?

      - Estava.

     - E tão boazinha também. Você não achou que hoje ela estava boazinha?

    - Estava, estava muito boazinha, sim... - concordou a empregada. E riu-se.

     - Por que você está rindo?

     - Nada - respondeu ela pegando a sacola. Dirigiu-se à porta.      

    Mas antes, parecia querer dizer qualquer coisa de desagradável e por isso hesitava, contraindo a boca.

      Alonso observou-a. E julgou adivinhar o que a preocupava.

     - Sabe, Leduína, você não precisa dizer para Dona Zulu que ele mordeu sua carteirinha, eu já falei com ele, já surrei ele, ele não vai fazer mais isso nunca mais, eu prometo que não.

     A mulher voltou-se para o menino. Pela primeira vez encarou-o. E após vacilar ainda um instante, decidiu-se:

     - Olha aqui, se êles gostam de enganar os outros, eu não gosto, entendeu? Ela mentiu para você, Biruta não vai mais voltar.

      - Não vai o quê? - perguntou Alonso pondo a caçarola em cima da mesa. Engoliu com dificuldade o pedaço de batata que ainda tinha na boca e levantou-se. - Não vai o quê, Leduína?

    - Não vai mais voltar. Hoje cedo ele foi no quarto dela e rasgou um pé de meia que estava no chão. Ela ficou daquele jeito. Mas não te disse nada e agora de tardinha, enquanto você lavava a louça, escutei toda a conversa dela com o doutor: que não queria mais esse vira-lata, que ele tinha que ir embora hoje mesmo, e mais isso, e mais aquilo... O doutor pediu para ela esperar, que amanhã dava um jeito, você ia sentir muito, hoje era Natal... Não adiantou. Vão soltar o cachorro bem longe daqui e depois seguem para a festa. Amanhã ela vinha dizer que o cachorro fugiu da casa do tal menino. Mas eu não gosto dessa história de enganar os outros, não gosto. É melhor que você fique sabendo desde já, o Biruta não vai voltar.

       Alonso fixou na  mulher  o olhar  inexpressivo. Abriu   a boca.

A voz era um sopro quase inaudível:

     - Não? ..

     Ela perturbou-se.

     - Que gente também! - explodiu. Bateu desajeitadamente no ombro do menino. - Não se importe, não, filho. Vai, vai jantar...

     Ele deixou cair os braços ao longo do corpo. E arrastando os pés, num andar de velho, foi saindo para o quintal. Dirigiu­se à garagem. A porta de ferro estava erguida. A luz do luar, uma luz branca e fria, chegava até a borda do colchão desmantelado.

     Alonso cravou os olhos brilhantes e secos num pedaço de osso roído, meio encoberto sob um rasgão do lençol. Ajoelhou­se. E estendeu a mão tateante. Tirou debaixo do travesseiro uma bola de borracha.

     - Biruta - chamou baixinho. - Biruta... - repetiu. E desta vez só os lábios se moveram e não saiu som algum.

     Muito tempo ele ficou ali ajoelhado, imóvel, segurando a bola.

Depois apertou-a fortemente contra o peito, como se quisesse enterrá-la no coração.

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Conto extraído de: TELLES, Lygia Fagundes. Histórias escolhidas. São Paulo: Boa Leitura Editora, 1961.

 

                                                     x.x.xm no mesmo nível, murchas, as pontas quase tocando o chão. Seu olhar interrogativo parecia perguntar:

O cão e o homem  

Carlos Heitor Cony

     Já vi a mesma cena, aqui e no exterior. E acredito que todos nós já vimos coisa igual, em qualquer parte do mundo.

     Em Frankfurt, ainda no tempo em que havia o Muro de Berlim (na Alemanha havia disso), vi o mendigo de Primeiro Mundo estendido na calçada, cozinhando vasta bebedeira – havia umas 30 latas vazias de cerveja em volta dele.

     Esparramado na calçada, ele atrapalhava o movimento dos passantes. Mas ninguém, nem mesmo os policiais, se atreva a mexer nele, a recolher as latinhas de cerveja. Não era piedade nem cochilo na tradicional vocação à ordem dos alemães.

     É que o mendigo tinha um cão ao lado, que nem precisava latir para guardar o dono. Parecia um vira-lata, talvez o fosse. Tomava conta daquele pedaço de calçada, protegendo o sono do homem que com ele repartia os restos de comida arranjados nos restaurantes em volta.

     Semana passada, em São Paulo, saindo do hotel, na avenida Ipiranga, vi a mesma cena, o mendigo emborcado num canto do edifício Copan, e o cão ao lado, velando pelo dono.

     Se um milionário o chamasse, oferecesse incenso, ouro e mirra, o cão não se afastaria de sua guarda. Se um santo passasse e o atraísse para um monastério habitado por anjos e atapetado de flores, o cão nem se mexeria dali.

      E o dono podia ser um desclassificado, um homem repudiado pela sociedade, pela família. Nem os pais nem os filhos nem os amigos querem saber dele, acham que o miserável está tendo o que merecia.

      Para o cão, nada disso tem importância. O dono pode ser rei ou mendigo, santo ou criminoso. Fica ao seu lado, sem esperar outra recompensa a não ser a de sentir o cheiro e a onipotência do homem, o homem frágil, tombado na rua, que o protege daqueles que o abandonaram.

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Fonte: Folha de São Paulo, 12/06/2001

"Mas o que foi que eu fiz, Alonso? Não me lembro de nada..."

  - Lembra sim senhor! E não adianta ficar aí com essa cara de doente, que não acredito, ouviu? Ouviu, Biruta?! - repetiu Alonso lavando furiosamente os pratos. Com um gesto irritado, arregaçou as mangas que já escorregavam sobre os pulsos finos. Sacudiu as mãos cheias de espuma. Tinha as mãos de velho

  - Alonso, anda ligeiro com essa louça! - gritou Leduína, aparecendo por um momento na janela da cozinha. - Já está escurecendo, tenho que sair!

  - Já vou indo - respondeu o menino enquanto removia a água da boca. Voltou-se para o cachorro. E seu rostinho pálido se confrangeu de tristeza. Por que Biruta não se emendava, por que? Por que razão não se esforçava um pouco para ser melhorzinho? Dona Zulu já andava impaciente. Leduína também. Biruta fez isso, Biruta fez aquilo...

  Lembrou-se do dia em que o cachorro entrou na geladeira e tirou de lá a carne. Leduína ficou desesperada, vinham visitas para o jantar, precisava encher os pastéis, "Alonso, você não viu onde deixei a carne?" Ele estremeceu. Biruta! Disfarçadamente, foi à garagem no fundo do quintal, onde dormia com o cachorro num velho colchão metido num ângulo de parede. Biruta estava lá deitado bem em cima do travesseiro, com a posta de carne entre as patas, comendo tranquilamente. Alonso arrancou-lhe a carne, escondeu-a dentro da camisa e voltou à cozinha. Deteve-se na porta ao ouvir Leduína queixar-se à dona Zulu que a carne desaparecera, aproximava-se a hora do jantar e o açougue já estava fechado, "o que é que eu faço, dona Zulu?"

  Ambas estavam na sala. Podia entrever a patroa a escovar freneticamente os cabelos. Ele então tirou a carne de dentro da camisa, ajeitou o papel já todo roto que a envolvia e entrou com a posta na mão

  - Está aqui Leduína.

  - Mas falta um pedaço!

  - Esse pedaço eu tirei pra mim. Eu estava com vontade de comer um bife e aproveitei quando você foi na quitanda.

  - Mas por que você escondeu o resto? - perguntou a patroa, aproximando-se

  - Por que fiquei com medo.

Ele ainda tinha bem viva na memória a dor brutal que sentira nas mãos corajosamente abertas para os golpes da escova. Lágrimas saltaram-lhe dos olhos. Os dedos foram ficando roxos, mas ela continuava batendo com aquele mesmo vigor obstinado com que escovara os cabelos, batendo, batendo, como se não pudesse parar mais.

  - Atrevido! Ainda te devolvo pro asilo, seu ladrãzinho!

  Quando ele voltou à garagem, Biruta já estava lá, as duas orelhas caídas, o focinho entre as patas, piscando, piscando os olhinhos ternos. "Biruta, Biruta, apanhei por sua causa, mas não faz mal."

  Biruta então ganiu sentidamente. Lambeu-lhe as lágrimas. Lambeu-lhe as mãos.

  Isso tinha acontecido há duas semanas. E agora Biruta mordera a carteirinha de Leduína. E se fosse a carteira de dona Zulu?

  - Hem, Biruta?! E se fosse a carteira de dona Zulu?

  Já desinteressado, Biruta mascava uma folha seca.

  - Por que você não arrebenta minhas coisas? - prosseguiu o menino elevado a voz. - Você sabe que tem todas as minhas pra morder, não sabe? Pois agora não te dou presente de Natal, está acabado. você vai ver se ganha alguma coisa. Você vai ver!...

  Girou sobre os calcanhares, dando as costas ao cachorro. Resmungou ainda enquanto empilhava a louça na bacia. Em seguida, calou-se, esperando qualquer reação por parte do cachorro. Como a reação tardasse, lançou-lhe um olhar furtivo. Biruta dormia profundamente.

  Alonso então sorriu. Biruta era como uma criança. Por que não entendiam isso? Não fazia nada por mal, queria só brincar... Por que dona Zulu tinha tanta raiva dele? Ele só queria brincar, como as crianças. Por que dona Zulu tinha tanta raiva de crianças?

  Uma expressão desolada amarfanhou o rostinho do menino. "Por que dona Zulu tem que ser assim? O doutor é bom, quer dizer, nunca se importou nem comigo nem com você, é como se a gente não existisse, Leduína tem aquele jeitão dela, mas duas vezes já me protegeu. Só dona Zulu não entende que você é que nem uma criancinha. Ah Biruta, Biruta, cresça logo, pelo amor de Deus! Cresça logo e fique um cachorro sossegado, com bastante pêlo e as duas orelhas de pé! Você vai ficar lindo quando crescer, Biruta, eu sei que vai!"

  - Alonso! - Era a voz de Leduína. - Deixe de falar sozinho e traga logo essa bacia. Já está quase noite, menino.

  Alonso ergueu-se afobadamente. Mas antes de pegar a bacia meteu a mão na água e espargiu-a no focinho do cachorro.

  - Chega de dormir, seu vagabundo!

  Biruta abriu os olhos, bocejou com um ganido e levantou-se, estirando as patas dianteiras, num longo espreguiçamento.

  O menino equilibrou penosamente a bacia na cabeça. Biruta seguiu-o aos pulos, mordendo-lhe os tornozelos, dependurando-se com os dentes na barra do seu avental.

  - Aproveita, seu bandidinho! - riu-se Alonso. - Aproveita que eu estou com a mão ocupada, aproveita!

  Assim que colocou a bacia na mesa, ele inclinou-se para agarrar o cachorro. Mas Biruta esquivou-se, latindo. O menino vergou o corpo sacudido pelo riso.

  - Aí, Leduína que o Biruta judiou de mim!...

  A empregada pôs-se guardar rapidamente a louça. Estendeu-lhe uma caçarola com batatas:

  - Olhaí para o seu jantar. Tem ainda arroz e carne no forno.

  - Mas só eu vou jantar? - surpreendeu-se Alonso ajeitando a caçarola no colo.

  - Hoje é dia de Natal, menino. Eles vão jantar fora, eu também tenho a minha festa. Você vai jantar sozinho.

  Alonso inclinou-se. E espiou apreensivo para debaixo do fogão. Dois olhinhos brilharam no escuro: Biruta estava lá. Alonso suspirou. Era bom quando Biruta resolvia se sentar! Melhor ainda quando dormia. Tinha então a certeza de que não estava acontecendo nada. A

trégua. Voltou-se para Leduína.

  - O que o seu filho vai ganhar?

  - Um cavalinho - disse a mulher. A voz suavizou. - Quando ele acordar amanhã, vai encontrar o cavalinho dentro do sapato dele. Vivia me atormentado que queria um cavalinho, que queria um cavalinho...

  Alonso pegou uma batata cozida, morna ainda. Fechou-a nas mãos arroxeadas.

- Lá no asilo, no Natal, apareciam umas moços com uns saquinhos debalas e roupas. Tinha uma que já me conhecia, me dava sempre dois pacotinhos em lugar de um. A madrinha. Um dia, me deu sapato, um casaquinho de malhae uma camisa.

  - Por que ela não ficou com você?

  - Ela disse uma vez que ia me levar, ela disse. Depois, não sei por que ela não apareceu mais...

  Deixou cair na caçarola a batata já fria. E ficou em silêncio, as mãos abertas em torno a vasilha. Apertou os olhos. Deles, irradiou-se para todo o rosto uma expressão dura. Dois anos seguidos esperou por ela. Pois não prometera levá-lo? Não prometera? Nem lhe sabia o nome, não sabia nada a seu respeito, era apenas " a madrinha". Intilmente a preocurava entre as moças que apareciam no fim do ano com os pacotes de pesentes. Inutilmente cantava mais alto do que todos no fim da festa, quando então se reunia aos meninos da capela. Ah, se ela pudesse ouvi-lo!

                              "... O bom jesus é quem nos traz

                                A mensagem de amor e alegria"...

- Também é muita responsabilidade tirar crianças para criar! - disse Leduína desamarrando o avental. - Já chega os que a gente tem...

  Alonso baixou o olhar. E de repente sua fisionomia iluminou-se. Puxou o cachorro pelo rabo. Riu-se:

  -Eh, Biruta! Está com fome, Biruta? Seu vagabundo! Vagabundo!... Sabe, Leduína, Biruta também vai ganhar um presente que está escondido lá debaixo do meu travesseiro. Com aquele dinheirinho que você me deu, lembra? Comprei uma bolinha de borracha, uma beleza de bola! Agora dele não vai precisar mais morder suas coisas, tem a bolinha só pra isso. Ele não vai mais mexer em nda, sabe, Ledeuína?

  - Hoje cedo ele não esteve no quarto da dona Zulu?

  O menino empalideceu.

  - Só se foi na hora em que fui lavar o automóvel... Por que Leduína? Por quê? Que foi que aconteceu?

  Ela hesitou. E encolheu os ombros.

  - Nada. Perguntei à toa.

  A porta abriu-se bruscamente e a patroa apareceu. Alonso encolheu-se um pouco. Sondou a fisionomia da mulher. Mas ela estava sorridente. O menino sorriu também.

- Ainda não foi pra sua festa, Leduína? - perguntou a moça num tom afável. Abotoava os punhos do vestido de renda. - Pensei que você já estivesse saído... - E antes que a empregada respondesse, ela voltou-se para Alonso: - Então? Preparando seu jantarzinho?

  O menino baixou a cabeça. Quando ela lhe falava assim mansamente, ele não sabia o que dizer.

  - O Biruta está limpo, não está? - Prosseguiu a mulher, inclinando-se para fazer uma carícia na cabeça do cachorro. Biruta baixou as orelhas, ganiu dolorido e escondeu-se debaixo do fogão.

  Alonso tentou encobrir-lhe a fuga:

  - Biruta, Biruta! Cachorro mais bobo, deu agora de se esconder... - Voltou-se para a patroa. E sorriu desculpando-se: - Até de mim ele se esconde.

  A mulher passou mão no ombro do menino:

  - Vou a uma festa onde tem um menino assim do seu tamanho. Ele adora cachorros. Então me lembrei de levar o Biruta emprestado só por esta noite. O pequeno está doente, vai ficar radiante, o pobrezinho. Você empresta seu Biruta só por hoje, não emnpresta? O automóvel ja está na porta. Ponha ele lá que já estamos de saída.

  O rosto do menino resplandeceu num sorriso. Mas então era isso?!... Dona Zulu pedido o Biruta emprestado, precisando do Biruta!... Abriu a boca para dizer-lhe que sim, que o Biruta estava limpinho, e que ficaria contente de emprestá-lo para o menino doente, estava muito contente com isso... Mas sem dar-lhe tempo de responder, a mulher saiu apressadamente da cozinha.

  - Viu, Biruta? Você vai numa festal - exclamou Alonso, beijando repetidas vêzes o focinho do cachorro. - Você vai numa festa, seu sem-vergonha! Numa festa com crianças, com doces. com tudo! Mas pelo amor de Deus, tenha juizo, nada de desordens! Se você se comportar, amanhã cedinho te dou uma coisa. Vou te esperar acordado, hem? Tem um presente no seu sapato ... - acrescentou num sussurro, com a boca encostada na orelha do cachorro. Apertou-lhe a pata. - Te espero acordado, Biru ... Mas não demore muito!

  O patrão já estava na direção do carro. Alonso aproximou-se.

  - O Biruta, doutor...

  O homem voltou-se ligeiramente. Baixou os olhos.

  - Está bem, está bem. Pode deixá-lo ai atrás.

  Alonso ainda beijou furtivamente o focinho do cachorro. Em seguida, fêz·lhe uma última carícia, colocou-o no assento do automóvel e afastou-se correndo.

  - Biruta vai adorar a festa! - exclamou assim que entrou na cozinha. - E lá tem doces, tem crianças, ele não quer outra coisa! - Fez uma pausa. Sentou-se. - Hoje tem festa em teda parte, não, Leduina?

  A mulher já se preparava para sair.

- Decerto.

  Alonso pôs-se a mastigar pensativamente.

  - Foi hoje que Nossa Senhora fugiu no burrinho?

  - Não, menino. Foi hoje que Jesus nasceu. Depois então é

que aquele rei manda prender os três.

  Alonso concentrou-se, apreensivo:

  - Sabe, Leduina, se algum rei malvado quisesse matar o Biruta, eu me escondia com ele no meio do mato e ficava morando lá a vida inteira, só nós dois!... - Riu-se metendo uma batata na boca. E de repente ficou sério, ouvindo o ruido do carro que já saia. - Dona Zulu estava linda, não?

  - Estava.

  - E tão boazinha também. Você não achou que hoje ela estava boazinha?

  - Estava, estava muito boazinha, sim... - concordou a empregada. E riu-se.

  - Por que você está rindo?

  - Nada - respondeu ela pegando a sacola. Dirigiu-se à porta. Mas antes, parecia querer dizer qualquer coisa de desagradável e por isso hesitava, contraindo a boca.

  Alonso observou-a. E julgou adivinhar o que a preocupava.

  - Sabe, Leduína, você não precisa dizer para Dona Zulu que ele mordeu sua carteirinha, eu já falei com ele, já surrei ele, ele não vai fazer mais isso nunca mais, eu prometo que não.

  A mulher voltou-se para o menino. Pela primeira vez encarou-o. E após vacilar ainda um instante, decidiu-se:

  - Olha aqui, se êles gostam de enganar os outros, eu não gosto, entendeu? Ela mentiu para você, Biruta não vai mais voltar.

  - Não vai o quê? - perguntou Alonso pondo a caçarola em cima da mesa. Engoliu com dificuldade o pedaço de batata que ainda tinha na boca e levantou-se. - Não vai o quê, Leduína?

  - Não vai mais voltar. Hoje cedo ele foi no quarto dela e rasgou um pé de meia que estava no chão. Ela ficou daquele jeito. Mas não te disse nada e agora de tardinha, enquanto você lavava a louça, escutei toda a conversa dela com o doutor: que não queria mais esse vira-lata, que ele tinha que ir embora hoje mesmo, e mais isso, e mais aquilo... O doutor pediu para ela esperar, que amanhã dava um jeito, você ia sentir muito, hoje era Natal... Não adiantou. Vão soltar o cachorro bem longe daqui e depois seguem para a festa. Amanhã ela vinha dizer que o cachorro fugiu da casa do tal menino. Mas eu não gosto dessa história de enganar os outros, não gosto. É melhor que você fique sabendo desde já, o Biruta não vai voltar.

  Alonso fixou na mulher o olhar inexpressivo. Abriu a boca.

A voz era um sopro quase inaudível:

  - Não? ..

  Ela perturbou-se.

  - Que gente também! - explodiu. Bateu desajeitadamente no ombro do menino. - Não se importe, não, filho. Vai, vai jantar...

  Ele deixou cair os braços ao longo do corpo. E arrastando os pés, num andar de velho, foi saindo para o quintal. Dirigiu­se à garagem. A porta de ferro estava erguida. A luz do luar, uma luz branca e fria, chegava até a borda do colchão desmantelado.

   Alonso cravou os olhos brilhantes e secos num pedaço de osso roído, meio encoberto sob um rasgão do lençol. Ajoelhou­se. E estendeu a mão tateante. Tirou debaixo do travesseiro uma bola de borracha.

    - Biruta - chamou baixinho. - Biruta... - repetiu. E desta vez só os lábios se moveram e não saiu som algum.

     Muito tempo ele ficou ali ajoelhado, imóvel, segurando a bola.

Depois apertou-a fortemente contra o peito, como se quisesse enterrá-la no coração.

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Conto extraído de: TELLES, Lygia Fagundes. Histórias escolhidas. São Paulo: Boa Leitura Editora, 1961.

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