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Crônica canina

 

                Os cachorros

                                                                         Luis Fernando Veríssimo

O primeiro a chegar é o general aposentado com o seu cachorro policial, Atlas. O general solta Atlas que dá três voltas em alta velocidade pela pracinha, faz pipi, com alguma solenidade, contra a mesma árvore e depois senta junto ao banco do general. Sempre o mesmo banco.

Quando começam a chegar as babás e as crianças, Atlas fica inquieto. Dá alguns latidos e ameaça levantar. O general o adverte:

- Quieto.

Atlas treme, mas se controla. Só sairá do lugar com uma ordem do dono. Uma vez desobedeceu. Uma bola de borracha chegou ao alcance dos seus dentes e ele a estraçalhou diante do olhar horrorizado das crianças e das babás. Houve protestos mas o general assegurou que aquilo não se repetiria. Agora, sempre que uma bola chega perto de Atlas há um silêncio de expectativa na pracinha. Atlas treme, mas se controla.

Depois de Atlas e do general chegam Rex, um Boxer, e o comendador. O comendador deixa Rex solto. De vez em quando levanta do banco que compartilhará, durante toda a manhã, com o general e procura Rex com o olhar. Rex é brincalhão e nervoso. Não tem lugar certo para fazer pipi. O general e o comendador conversam. O comendador afaga a cabeça de Atlas.

-Como vai essa fera?

O general responde por Atlas. - Vai bem. E Rex?

- Ótimo.

Os dois trocam histórias dos cachorros. Quando ouve falar o seu nome, Atlas empina as orelhas.

Vive na esperança de uma ordem do general. Atacar! Mas a ordem nunca vem.

- O Rex anda um pouco rebelde. É a vida em apartamento ...

- O Atlas não tem esse problema. Ou, se tem, não demonstra. Disciplina.

O comendador suspira. Rex não é mais o mesmo. Tudo começou depois do acasalamento. Rex não se acostumou mais com a vida pacata da casa. Vive sonhando com aventuras. O comendador não sabe o que fazer.

Chega Frufru, um Pequinês e Dona Romária. O general e o comendador não se-sentem à vontade com aquele pequeno animal dado a ataques de histeria. Dona Romária fala com Frujru sem parar.

- O que é, minha negra? Conta pra mamãe, conta. Está contente, não é, biju? Vai brincar com o Atlas, vai. Conta pra ele o que você andou fazendo dentro de casa, conta, sua sem-vergonha. Vai, lindeza.

Frufru corre para brincar com Atlas. O policial fica impassível. Olha para seu dono como que implorando uma ordem para acabar com o tormento. Frufru pula em redor de Atlas e late, esganiçada.

Baixinho, para que Dona Romária não ouça, o comendador comenta para o general:

-Frufru ...

-O que a gente tem que agüentar ...

-E esse não é dos piores.

-O que eu não agüento é cachorro com nome diferente.

-Sei o que você quer dizer.

- Outro dia apareceu uma dona aqui com um Basset chamado Édipo. Édipo!

-Não dá. Nome engraçadinho, não dá.

O comendador levanta para procurar Rex. Onde andará se cachorro? O general continua:

-Cachorro tem que ter nome de cachorro. Atlas. Tupi.

-Rex ...

-Rex. Tapir.

-Tapir, não sei não.

- No máximo Tapir.

Chega um par de Cocker Spaniel, novos na praça. Com eles um homem estranho. Alto, de barba bem aparada, a camiseta colada ao corpo e calças jeans muito justas. Senta no mesmo banco com o comendador e o general.

-Bons-dias!

O comendador e o general se entreolham. O recém-chegado solta seus cachorros da coleira dupla e recomenda.

- Allez, allez. A vida social é muito importante. Misturem-se.

Para o general e o comendador, ele explica: - Os dois são muito tímidos. Os dois saem trotando, sem muito entusiasmo. - Não são umas graças?

Só Dona Romária concorda. O general, o comendador e Atlas ficam mudos. O recém-chegado continua:

- É uma luta para tirá-Ios de casa. Se pudessem ficariam atirados no tapete persa o dia inteiro. São uns lânguidos! Uns lânguidos!

O general limpa a garganta. Pergunta: - Como é o nome deles?

- Um se chama Rimbaud e o outro Verlaine.

- Sim.

Alguma coisa no tom de voz do seu dono faz Atlas ficar alerta. Talvez agora venha a ordem que ele espera há tanto tempo. Atacar! Estraçalhar! Mas quem fala é o comendador.

-Onde é que está o Rex?

O Boxer desapareceu. O comendador sai a procurá-Io por toda a praça. Rex foi visto pela última vez seguindo uma cadela vira-lata, rua acima. O dqno dos Cocker Spaniel comenta:

- Quem me dera que os meus fossem assim, despachados. Mas são uns bobocas. O Rimbaud ainda tem personalidade, mas o Verlaine ...

O general murmura:

- Atlas ...

Atlas prepara-se. É só receber a ordem. Liquidará primeiro a Frufru e depois sairá na caça a Verlaine e Rimbaud. Por um instante a pracinha paira à beira da tragédia. Finalmente, o general recua.

- Quieto.

Rex é recuperado e levado para casa, arrastado. O general também volta para casa mais cedo, descrente de tudo. Atlas vai na frente. Até chegar à beira da calçada ainda terá que agüentar Frufru pulando nas suas patas.

Fonte: VERÍSSIMO, Luis Fernando. O analista de Bagé. 43ed. L & PM, 1982.