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Crônica canina

               Sonhos de um cachorro

 

                                                                        Jorge Fernando dos Santos

Toda vez que passo em determinada rua do Caiçara vejo um enorme cachorro peludo esquentando sol na janela de um apartamento, espremido entre o vidro e a grade de proteção. Ele usa um par de marias-chiquinhas no alto da cabeça e tem o olhar triste de cachorro que caiu da mudança.

Trata-se de um cão da raça old inglês sheepdog. Sua dona é uma mulher idosa que o mantém como única companhia e o trata com todo o mimo do mundo, como se ele fosse uma criança desprotegida. No entanto, os olhos do bicho estão sempre vazios e revelam uma angústia quase humana. É de partir o coração!

Às vezes tento imaginar o que se passa na cabeça do pobre animal, cuja raça foi forjada para pastorear ovelhas e que, por isso mesmo, mais parece um carneiro coberto de lã. Na certa, seus genes preservam a memória pastoril dos ancestrais que habitaram lugares de grandes altitudes e temperaturas frias, onde cuidavam de ovelhas.

Por isso mesmo, talvez no seu imaginário canino persista uma paisagem primaveril, com jeito de cartão postal, na qual um rebanho branco igual a novelos de nuvem passa os dias pastando a relva verde e macia, sob o seu olhar de bom pastor.

Ao primeiro sinal de ameaça, o cachorro começa a latir, conduzindo o rebanho de estúpidas criaturas murmurantes para fora da zona de perigo. Isso acontece toda vez que um lobo uiva na montanha ou um enorme falcão cruza o céu feito um avião de combate, com mira certeira e garras afiadas feito navalhas.

Vida de cachorro não é fácil. Pior ainda quando o bicho é tratado igual gente, obrigado a usar roupas e enfeites ridículos para regozijo da dona, que o arrasta pela coleira a cansativas caminhadas pelas ruas do bairro ou em volta da subestação da Cemig, onde os moradores que fazem cooper reclamam quando pisam no seu cocô.

Por mais feliz que pudesse parecer, o bicho não deixaria de ter suas frustrações. Obrigado a comer a ração rica em proteína, vitaminas e sais minerais, ele sonha com um osso que possa roer à vontade e enterrar no jardim do prédio para a hora mais urgente.

Cachorro que se preza reivindica o direito às pulgas e a perseguir os gatos da vizinhança, pois esse tipo de necessidade faz parte do seu instinto quase selvagem. Àqueles que reclamam do seu latido, ele diria que não sabe falar a língua dos homens, embora muitas vezes lhes adivinhe o pensamento.

Imagino que o simpático sheepdog, que passa as manhãs na janela daquele confortável apartamento do Caiçara, daria tudo para ser um simples vira-lata igual àquele que espalha o lixo na porta do seu prédio e que sempre o insulta com latidos sem pedigree.

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Extraído do livro: Caiçara, da coleção BH - a cidade de cada um, publicado pela Conceito Editorial, em 2008.

Jorge Fernando dos Santos

Jornalista, escritor e compositor, tem 27 livros publicados, dentre os quais: Palmeira seca (Prêmio Guimarães Rosa, 1989) e Sumidouro das almas. Site: www.jorgefernandosantos.com.br

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