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Bibliofilia

Em nome do livro

Umberto Eco

O mundo do colecionar abrange toda sorte de objetos díspares. Patrícios romanos colecionavam antiguidades gregas (até mesmo falsas). Catálogos modernos de casas de leilão exibem de tudo, de pinturas de artistas de renome internacional até meias que já pertenceram ao duque de Windsor. Os mercados de pulgas estão repletos de entusiastas à procura de cartões de telefone, objetos maçônicos, cartões postais, adesivos, chaves, garrafas de Coca-Cola, lâminas de barbear, diplomas, garrafas em miniatura de bebidas alcoólicas, pacotes de açúcar --e assim por diante.

É óbvio que esse tipo de coleção beira a mania. Colecionar livros antigos, por outro lado, é uma busca totalmente defensável, independentemente de os objetos cobiçados serem obras raras e caras do século 15 ou primeiras edições do século 20. Além disso, há um gênero editorial conhecido como "livros sobre livros", que, na prática, é outra forma de colecionar livros --compilando, comparando e dando sentido a eles.

No século 19, os maiores especialistas no gênero livros sobre livros eram os franceses: pode-se pensar, por exemplo, no bibliófilo Charles Nodier, que, como diretor de uma divisão da biblioteca nacional
da França, influenciou enormemente alguns dos escritores mais notáveis de sua época. Desde o século 20, entretanto, o gênero livros sobre livros prosperou principalmente nos países de língua inglesa. É claro, muitos livros falam sobre outros livros, como no caso de histórias da literatura, mas, de modo geral, o gênero trata da história dos livros. Também inclui alguns exemplos de nicho, como estudos sobre dedicatórias e prefácios nos livros do século 17.

Recentemente, eu também notei um renascimento do gênero livros sobre livros na Itália. Para se ter uma ideia do escopo dessa tendência, bastaria consultar o catálogo da meritória (e, a propósito, em risco) editora Edizioni Sylvestre Bonnard --que leva o nome do bibliófilo no centro de "O Crime de Sylvestre Bonnard", de Anatole France, fundada e dirigida por Vittorio di Giuro.

O catálogo inclui mais de cem títulos, que vão de "The Footnote: A Curious History" (A nota de rodapé: uma história curiosa, em tradução livre), de Anthony Grafton, até livros de Hans Tuzzi, que não apenas escreveu a obra seminal "Collezionare Libri Antichi, Rari, di Pregio" (Colecionando livros antigos, raros e valiosos, em tradução livre), como também inventou uma espécie de subgênero dos livros sobre livros: investigações policiais que mergulham no mundo dos vendedores de livros antigos.

Nos últimos dois anos foram publicados "Collezionismo Librario e Biblioteche d"Autore: Viaggio Negli Archivi Culturali" (Coleção de livros e bibliotecas de autor: uma jornada pelos arquivos culturais, em tradução livre), uma compilação que examina discernimentos culturais sobre o que as bibliotecas e coleções pessoais de livros têm a oferecer; assim como "Lo Scaffale Infinito: Storie di Uomini Pazzi per i Libri" (A Prateleira infinita: histórias de homens loucos por livros, em tradução livre), de Andrea Kerbaker, que mostra bibliófilos ao longo das eras, de Petrarca a Jorge Luis Borges, do cardeal Mazarino à madame de Pompadour.

Outra obra recente, "Per Hobby e per Passione" (Por hobby ou por paixão, em tradução livre), de Giulietta Rovera, não se limita aos colecionadores de livros, mas, como seu subtítulo promete, cobre grande parte do universo dos colecionadores: "De fanáticos por Barbies a ladrões de manuscritos, de adoradores do sexo a colecionadores de borboletas".

Por que todo esse interesse por colecionar livros em uma época em que a mídia parece insaciavelmente ávida em citar qualquer um argumentando que o livro impresso está caindo em desuso e logo será substituído pelos livros eletrônicos? Uma resposta é: porque tão logo um objeto começa a desaparecer do mercado, as pessoas começam a colecionar os exemplares sobreviventes.

Mas essa não pode ser toda a explicação, pois colecionar livros já era uma atividade que prosperava muito antes do surgimento dos livros eletrônicos e das pessoas começarem a prever o fim da palavra impressa. Talvez a resposta seja simplesmente a de que, diante da previsão da extinção do livro impresso --mesmo sendo uma previsão apocalíptica absurda--, nós experimentamos um novo despertar, um reacender de nosso amor por esse objeto mágico que existe há muito mais tempo que o prelo. Os calafrios que percorrem nossas espinhas diante do simples pensamento de que os livros possam algum dia desaparecer é o que nos leva a escrever sobre eles, nos concentrarmos neles, colecioná-los. Eles estavam aqui muito antes de você ou eu; que eles vivam por muito mais tempo que todos nós.


Tradutor: George El Khouri Andolfato

Fonte: http://www.brasilquele.com.br (2705/2013)

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