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Futebol & Literatura
Bibliografia

Resenha

WISNIK, José Miguel. Veneno remédio: o futebol e o Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
                                                         

                                                                                                                                                                Idelber Avelar

Afirmo sem medo de errar: chega às livrarias esta semana o melhor e mais sofisticado livro já escrito sobre o futebol na terra do futebol. Recebi a pérola ainda em estágio de provas, não pela minha amizade com o autor, mas graças ao Jornal do Brasil, que me encomendou uma resenha. Veneno remédio: O futebol e o Brasil (Cia. das Letras, 2008), de José Miguel Wisnik, é um livro sobre o futebol como jamais foi feito no Brasil. Não é uma história do esporte no país. Não é um estudo sociológico. Não é uma biografia de jogadores. Não é uma análise da política do futebol. É tudo isso e muito, muito mais. Acima de tudo, é um minucioso poema sobre o que o futebol diz sobre nós, sobre quem somos, sobre a fatalidade e a delícia de ser brasileiro.

Fico sem jeito de escrever o post, porque não quero antecipar e atrapalhar a resenha. Vou dizer algumas coisas que só posso dizer no blog e não no jornal: devorei as 430 páginas numa noite. Caramba, há quantos anos eu não lia 430 páginas numa noite! Acho que a última vez foi com Irmãos Karamazov.

Zé tem aquela qualidade maravilhosa: é um dos maiores intelectuais do país e gosta de futebol. Os livros de sociologia do futebol, em geral, são escritos por gente que não sabe diferenciar um meia-armador de um centroavante. Os que conhecem as minúcias do jogo e das arquibancadas, em geral, não escrevem livros. Zé é a indispensável ponte entre esses dois mundos. O cabra nasceu em 1948 em São Vicente e lá morou até 1966. Ia ver Pelé na Vila Belmiro todo fim de semana. Imaginem o que acontece com uma pessoa dessas. Há um momento do livro em que ele faz alusão a esse fato. Página 39: Um amigo dez anos mais novo, e também torcedor do Santos, ao ver filmes do auge da era Pelé, afirmou sem hesitar que o fato de eu ter sido exposto, em tenra idade, à força daqueles fatos, como se isso fosse normal, produziu danos irreparáveis à minha personalidade. Ele não foi mais explícito que isso, mas a frase me atinge. Na melhor das hipóteses, ela se refere à minha incurável tendência a ver sentido em tudo. Este livro é o resultado mais direto da resistência, longamente ruminada, dessa síndrome.

Há uma magistral leitura da diferença entre Pelé e Garrincha a partir de uma cisão chave: Garrincha, o que não tem pai, aquele que escapa à função paterna. Pelé, aquele sujeito inserido na estrutura edípica, prometendo, em 1950, ao pai que chorava – seu Dondinho, brilhante, mas fracassado craque – que um dia ele traria uma Copa para o Brasil. Há uma brilhante interpretação da pré-história do futebol, incluindo-se aí uma bela análise da função do tlachtli entre os aztecas. Há toda uma reflexão sobre a codificação das regras do futebol, pelos ingleses na segunda metade do século XIX, como a racionalização do que ameaçava ser puro jogo, mero ludismo. E há, acima de tudo, uma pergunta insistente: o que o modo brasileiro de jogar futebol – a nossa radicalização daquilo que o jogo tem de mais próprio, por oposição ao produtivismo e à matematicidade dos outros esportes – diz sobre quem somos. Tudo isso é o começo do livro. O seu miolo é a análise refinadíssima de todos os grandes momentos do esporte entre nós, de Marcos de Mendonça e Friedenreich até Ronaldinho Gaúcho e Robinho.

A leitura que faz Zé Miguel dos dois antológicos não-gols de Pelé na Copa de 70 (o chute do meio-campo contra a Tchecoslováquia e o corta-luz assombroso em Mazurkiewicz) estão entre as páginas mais poéticas já publicadas pelo ensaísmo brasileiro. Lembram-se das jogadas, não é? Na segunda, quando o duríssimo jogo contra o Uruguai já havia sido resolvido com a virada brasileira por 3 x 1, Tostão faz um passe em diagonal da esquerda para a direita, criando um vazio na defesa como só ele sabia fazer. Pelé vem correndo na diagonal oposta. No momento em que Pelé e a bola se encontrariam, acontece o absurdo, o imprevisível: Pelé recusa-se a tocá-la, passa direto, e sua trajetória forma, com a bola, um X que abraça Mazurka – um dos maiores goleiros de todos os tempos – para que o Divino Negão a recolha do outro lado, tocando-a para o gol. Mazurka, impotente, permanece congelado, no tempo dos humanos. A bola passa a centímetros da trave direita. Lendo o livro de Zé Miguel, você entende tudo o que essa finta diz sobre o Brasil.

Chega. Se não, eu fico sem nada para dizer ao JB. Veneno Remédio, de Zé Miguel, chega às livrarias esta semana. Pare de ler blogs e vá lá comprar. É sério candidato a livro do ano.

Fonte: http://www.idelberavelar.com/archives/2008/05/veneno_remedio_o_futebol_e_o_brasil_de_jose_miguel_wisnik.php

Resumo

Os estudos de grande abrangência sobre o futebol, ao abordar as questões políticas, sociais, econômicas e comportamentais em torno do esporte, costumam deixar de lado o essencial: o jogo em si, aquilo que faz dele uma atividade capaz de apaixonar bilhões de pessoas dos mais remotos cantos do mundo.
O futebol, tal como foi incorporado e praticamente reinventado no Brasil, tem muito a dizer, com sua linguagem não-verbal, sobre algumas de nossas forças e fraquezas mais profundas, ajudando a ver sob outra luz questões centrais da nossa formação e identidade.


Temas recorrentes na melhor ensaística brasileira, como a "democracia racial", o "homem cordial" e a deglutição antropofágica do influxo cultural estrangeiro, encontram aqui um viés inesperado e original como um corta-luz, um drible de corpo, um lançamento com efeito ou uma folha-seca - jogadas que os craques brasileiros inventaram ou desenvolveram, encontrando novos caminhos para chegar ao gol e à vitória.


Lançando mão de um sofisticado instrumental crítico que bebe na filosofia, na sociologia, na psicanálise e na crítica estética, José Miguel Wisnik desce às minúcias do jogo da bola e de sua evolução ao longo das décadas. Nas páginas deste ensaio, craques como Domingos da Guia, Pelé, Garrincha e Romário põem à prova, com sua linguagem não-verbal, idéias sobre o país de escritores como Machado de Assis, Mário e Oswald de Andrade, sociólogos como Gilberto Freyre, historiadores como Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior.


O futebol, em Veneno remédio, não é mero "reflexo" da sociedade, mas tampouco se desenvolve à margem dela. É, como mostra Wisnik, uma instância em que as linhas de força e de fuga do embate social e da construção do imaginário se apresentam de modo ao mesmo tempo claro e cifrado, como costuma acontecer com as expressões artísticas.

Fonte: http://www.companhiadasletras.com.br/detalhe.php?codigo=11050

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