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Literatura Epistolar

 

Mário de Andrade x Clarice Lispector

 

Mademoiselle Clarice,

     Escrever é um ato de provocação, mesmo se o que escrevemos não tem intenção ou utilidade alguma. Esse ato transfigurador é como a brisa suave do Zéfiro que sem propósito algum participa da erosão das formas, cria a cegueira ou alivia a secura do tempo. Digo isto porque és, sem desejar, o movimento que fez hoje eu ser o que nunca fui. És também responsável pelas olheiras que trago agora em minha insônia de arrebatamento, pétalas de rosas escuras de inodoro perfume. Comecei a ler Atrás do coração selvagem ontem à noite e não parei até que tivesse sorvido o último gole. Estou embriagado e o espelho mostra minha face cansada, mas realizada, como se eu próprio acordasse na caverna de Hypnos cercado por suas papoulas do eterno sono.

     Depois, já de manhã, fui vencido novamente pelo sono e ao acordar, já quase meio-dia, de chofre pensei: tenho que escrever a ela! E pensei várias vezes, ainda, como saudá-la: Senhorita ou Senhora? Soube que tens entre dezenove ou vinte e poucos anos, e sou daqueles que acredita que relacionar a obra à idade do autor nos dá pistas para predizer o futuro. Sabemos se o escritor está no ponto ou se nunca vai atingir o ponto. Isso não quer dizer que a fórmula é apenas questão de tempo, pois vinho mal feito o envelhecimento não melhora, mas a idade do autor é mais um parâmetro a ser utilizado dentre tantos. Por isso a dúvida: Qual saudação apropriada para esta carta? Senhorita ou senhora? Ainda trago o cansaço da leitura que me exigiu desprendimento. É como aquelas árduas tarefas de identificar códigos subterrâneos, tesouros submersos, onde o terreno ornado de dissimulação nos diz: é mais profundo. Escrita madura de uma jovem escritora. Então como devo cumprimentá-la: senhorita ou senhora? Ou até menina!

     A menina Joana parece adulta demais, precoce. A adulta Joana às vezes reage como  menina. A memória dessa única personagem, cuja onipresença enche as páginas do inicio ao fim, me confirma um pensamento vadio que reza: a memória é a única grande religião de toda a humanidade, dos crentes ou descrentes, ou talvez é a mais verdadeira, pois é a única que realmente nos ata a tudo que existe, esquecer é desligar, desatar. Pode parecer estranho para você que teu despretensioso romance me leva a isso, se pensar que é um ledo engano não importa quando publicamos perdemos qualquer autoridade sobre o que escrevemos. Continuemos (...)

     Rio de Janeiro, 13 de fevereiro de 1944

     Vosso súdito, Mário de Andrade

                                                    x.x.x

Nota:

Carta encontrada por Hermes Cardoso, "perdida" no Café Central. A carta que o escritor Mário de Andrade enviou para Clarice Lispector, quando esta morava em Belém do Pará e que por motivos ignorados nunca chegou a sua destinatária. A carta celebra entusiasticamente o pirmeiro livro de Clarice - Atrás do coração selvagem. O também escritor Fernando Sabino, em passagem por Belém, tentou reaver a carta no Central Hotel, onde Clarice morou por seis meses, mas não obteve sucesso. A carta teve o destino que o acaso lhe reservara: Nunca chegar a seu destino. O destino de toda literatura. Pertencer a ninguém, destinada a um lugar nunca preciso...

Fonte: Cardoso, Nonato. Pequena história de Hermes Cardoso, o pragmático carteiro e escritor não publicado. Polichinelo, Revista Literária. Belém, PA. nº 12, agosto de 2010.

 

 

 

 

 

 

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