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Tese

 

A beleza das mulheres de graça

Rubem Braga

 

Logo que recebi seu livro, escrevi uma carta longa e emocionada agradecendo, mas a carta rolou por aqui nas gavetas da redação e acabou rasgada por engano. Quero lhe agradecer,  não por simples obrigação de bem educado, mas porque de fato isso me comoveu, v. me mandar o livro. Lembrei-me de uma vez que lhe escrevi em 1933, aqui mesmo de São Paulo, de outra redação, pedindo suas Poesias. Nesses sete anos, mudei muitíssimo, mas meu fervor pela sua poesia palavra que me seguiu engrossando através de tantas reviravoltas de toda espécie, em que deixei para trás tanta admiração, tanta ternura eterna. Pretendo desde rapazinho escrever uma longa coisa que nunca tive coragem de escrever a respeito da beleza das mulheres. Atrapalhadamente minha tese é isso: uma repulsa por tudo que o cristianismo fez com as mulheres bonitas, com toda essa miséria monstruosa do cristianismo contra as mulheres bonitas. Minha tese era declarar pateticamente a benemerência pública e universal da mulher bonita pelo bem enorme, inapreciável que ela faz. Sustentaria esta tese com argumentos e evidências de toda espécie, inclusive esse de que na vida diária, na rua, a visão de uma mulher bonita desconhecida, a simples e passageira visão que ela nos oferece nos faz um bem tão grande e tão grátis que é um absurdo feroz não conceder a uma passagem assim todas as espécies de privilégios neste mundo e no outro. Se gastamos dinheiro e portanto, em geral, esforços para adquirir coisas que nos dão prazer, as quais coisas nunca nos dão um prazer sequer comparável com a visão da beleza feminina, e se essa visão é grátis, então a mulher bonita é de uma benemerência profunda. Já me aconteceu estar desesperado, atormentado com problemas às vezes (não estou dramatizando, você pode acreditar) bem cruéis, duros, urgentes, insolúveis e nesse estado a simples visão de uma mulher bonita me dá um ânimo tão grande, um perdão tão completo para a toda estupidez da vida que em certa época eu talvez tivesse me matado se não fosse isso. Agora, que estou pacato, com problemas menos horríveis e prementes, em geral apenas crônicos com crises de agudez suportáveis, tenho tempo para pensar nessa benemerência tão injustamente esquecida da beleza física da mulher, nessa benemerência que estupidamente o cristianismo desconhece. A mais boa mulher feia não pode fazer tanto bem como a mais ruim mulher bonita. Não é humano, mas sim desumano querer dar uma espécie de preferência moral à mulher feia, como faz o cristianismo, que sempre está em guarda contra a beleza. De toda a monstruosa filosofia do cristianismo, de todo o seu repugnante e falso “espiritualismo”, que é uma negação de tudo que é mais puro e alto na vida, poucas coisas me irritam tão constantemente como isso. E se eu ainda acredito na Grécia com grande ardor é por causa do julgamento de Frinéa. Aquilo foi a coisa mais alta e compreensiva que se fez na Grécia. Você deve estar chateado e rindo dessa minha longa dissertação confusa sobre mulher bonita, mas o que eu queria dizer é que experimento pelos poetas como você uma gratidão semelhante. Quanta gente vê, não ajuda, não enriquece com a sua simples poesia! Que bem faz! Digo por mim, que lhe devo mil coisas, mil serviços íntimos. Muito obrigado pelo livro (que pena o “vulto” no lugar daquela tão doce e lírica “bunda”) e pelo que ele tem dentro, é o que lhe diz este

Amigo, devedor, obrigado.    

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Carta de Rubem Braga ao poeta Manuel Bandeira, em 12/10/1940

Fonte: O Estado de São Paulo,02/07/2000

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