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Clássicos da gastronomia

Para iniciar a seção de clássicos da gastronomia, haveria de ser um clássico da literatura francesa. E a intenção é exatamente esta: divulgar textos célebres sobre a culinária de um modo geral. Assim solicitamos dos leitores apreciadores do bom prato e das belas letras que nos envie, ou sugira, textos e trechos de obras para que possamos degustar ao mesmo tempo em que entretemos o espírito.

Banquete romano

Marguerite Yourcenar

     Comer em excesso é hábito romano. Eu, porém, fui sóbrio por volúpia. Hermógenes nada teve que modificar em meu regime a não ser talvez a impaciência que me obrigava a devorar, não importa onde fosse e a qualquer hora, a primeira iguaria servida para saciar de uma só vez as exigências da minha fome. Não seria próprio do homem rico, que não conhece jamais senão privação voluntária e disso não fez mais do que uma experiência a título provisório, como um dos incidentes mais ou menos excitantes da guerra e da viagem, vangloriar-se de não se exceder à mesa. Embriagar-se em certos dias de festa foi sempre a ambição, a alegria e o orgulho dos pobres. Agradava-me o odor das carnes assadas e o ruído das marmitas raspadas nas festas do exército, e que os banquetes de acampamento (ou o que num acampamento se pode chamar de banquete) fossem o que deveriam ser sempre: um alegre e grosseiro contrapeso às privações dos dias de trabalho. Tolerava bastante bem o odor das frituras nas praças públicas no tempo das Saturnais. Entretanto, os festins romanos causavam-me uma repugnância e tanto tédio que, acreditando às vezes morrer no curso de uma exploração ou de uma expedição, dizia a mim mesmo para reconfortar-me: pelo menos nunca mais jantarei! Não me faças a injustiça de tomar-me por vulgar renunciador: uma operação que tem lugar duas vezes por dia, e cuja finalidade é alimentar a vida, merece certamente todas as nossas atenções. Comer um fruto é fazer entrar em si mesmo um belo objeto vivo, estranho e nutrido como nós pela terra. É consumar um sacrifício no qual nós nos preferimos ao objeto. Jamais mastiguei a crosta do pão das casernas sem maravilhar-me de que essa massa pesada e grosseira pudesse transformar-se em sangue, calor e, talvez, em coragem. Ah! por que o meu espírito, nos seus melhores momentos, não possui senão uma pequena parte dos poderes assimiladores do meu corpo?

     Foi em Roma, durante os longos banquetes oficiais, que me aconteceu meditar nas origens relativamente recentes do nosso luxo e naquela raça de fazendeiros parcimoniosos e de soldados frugais, acostumados a nutrir-se de alho e cevada, subitamente deslumbrados pela conquita,devorando as iguarias complicadas da cozinha asiática com a rusticidade de camponeses esfomeados. Nossos Romanos empanturram-se agora de aves delicadas, afogam-se em molhos e envenenam-se com especiarias. Um gastrônomo, um discípulo de Apácio, orgulha-se da sucessão dos serviços, da série de pratos doces ou picantes, leves ou pesados que compõem a magnífica sequência dos seus banquetes. Seria mais desejável que cada iguaria fosse servida separadamente, assimilada em jejum, sabiamente desgustada por um apreciador de papilas intactas. Apresentadas confusamente, numa profusão banal e cotidiana, elas formam no paladar e no estômago uma mistura detestável, na qual o odor, o gosto e a própria substância essencial pedem seu valor peculiar e sua deliciosa identidade. O pobre Lúcio comprazia-se outrora em preparar-me pratos raros; suas tortas de faisão, com a sábia dosagem de presunto e especiarias, revelam uma arte tão consumada como a do músico ou do pintor. Entretanto, eu deplorava secretamente a carne pura da linda ave. A Grécia era bastante superior nesse sentido: seu vinho resinoso, seu pão salpicado de sementes de gergelim, seus peixes assados na grelha, à beira-mar, escurecidos aqui e ali pelo fogo e temperados de quando em quando pelo estalido de um grão de areia, satisfaziam simplesmente o apetite sem cercar de excessivas complicações a mais pura das nossas alegrias. Saboreei numa sórdida espelunca da Egina ou de Falera alimentos tão frescos, que se convervavam divinamente puros a despeito dos dedos imundos do moço da taverna. Eram escassos, mas tão suficientes que pareciam conter sob a forma mais resumida, uma certa essência de imortalidade. A carne cozida nas noites das caçadas possuía uma espécie de qualidade sacramental que nos levava muito longe, quase além dos origens selvagens das raças. O vinho inicia-nos nos mistérios vulcânicos do solo e nas riquezas minerais ocultas. Uma taça de Samos, degustada ao meio-dia, em pleno sol, ou, ao contra´rio, saboreada numa noite de inverno, num estado de fadiga tal que nos permita sentir no fundo do diafragma seu fluxo quente, sua abrasadora dispersão ao longo das artérias, é uma sensação quase sagrada e, por vezes, demasiado forte para um cérebro humano. Não reencontro essa sensação no mesmo estado de pureza nos vinhos numerados das adegas de Roma, e impacienta-me o pedantismo dos grandes conhecedores de vinhos. Mais primitivamente ainda, a água bebida na concha da mão ou na própria fonte fa correr em nós o sal mais secreto da terra e toda a chuva do céu. A água, ela mesma, é uma delícia da qual o doente que sou aogra não deve usar senão com parcimônia. Não importa, mesmo na agonia e ainda que de mistura com o amargor das últimas poções, tentarei sentir sua fresca insipidez nos meus lábios.

     Experimentei rapidamente a abstinência de carne nas escolas de filosofia onde acontece provarmos, um a um, todos os métodos de conduta. Mais tarde, na Ásia, vi gimnosofistas indianos desviarem a cabeça dos quartos de gazela e dos cordeiros fumegantes servidos na tenda de Osroés. Mas essa prática, na qual tua jovem austeridade descobre tamanho encanto, exige cuidados mil vezes mais complicados do que os da própria gastronomia. Ela nos afasta com exagero ostensivo do comum dos homens, numa função quase sempre pública e à qual preside geralmente a amizade ou a pompa. Prefiro nutrir-me por toda a vida de patos gordos e galinhas-d'angola, a ser acusado por meus convidados de ostentação de ascetismo. Muitas vezes, valendo-me de alguns frutos secos, ou do conteúdo de um copo lentamente absorvido, tentei evitar que meus convidados percebessem que os pratos elaborados por meus chefes o eram sobretudo para eles e que a minha curiosidade por essas iguarias há muito se esgotara. Falta ao príncipe a latitude de que goza o filósofo: não pode permitir-se discordar dos demais ao mesmo tempo. E os deuses sabem que meus pontos de discordância eram numerosos, embora estivesse persuadido de que muitos deles eram invisíveis. Os escrúpulos religiosos dos gimnosofistas e sua repugnância pelas carnes sangrentas ter-me-iam impressionado, se não perguntasse a mim mesmo em que o sofrimento da erva que se corta diferia essencialmente do sofrimento dos carneiros que se degolam. E refletia se nosso horror ante os animais assassinados não estaria condicionado ao fato de nossa sensibilidade pertencer ao mesmo reino. Mas em certos momentos da vida, nos períodos de jejum ritual por exemplo, ou no curso das iniciações religiosas, conheci as vantagens espirituais e também os perigos das diferentes formas de abstinência e até da inanição voluntária. Falo desses estados próximos da vertigem em que o corpo, em parte alijado do seu peso, penetra num mundo para o qual não foi feito e que prefigura a fria leveza da morte. Em outros momentos, essas experiências permitiram-me brincar com a idéia de suicídio progressivo, da morte por inanição como a de certos filósofos, espécie de deboche ao inverso, no qual se vai até o esgotamento da substância humana. Mas desagradou-me sempre aderir totalmente a um sistema: jamais teria permitido que um escúpulo me privase do direito de empanturrar-me de salsichas se acaso me apetecessem ou se este fosse o único alimento disponível.

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Extraído de: YOURCENAR, Marguerite. Memórias de Adriano. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980. pp. 17-20.

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