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Dicionário de Filosofia de                              Mario Ferreira dos Santos

ESPIRITUALISMO

 

   a) É espiritualista toda posição filosófica que admite a existência de seres outros que os materiais; ou sejam, imateriais, ativos e criadores.

   b) Contudo, o termo tem tomado o sentido de uma posição sistemática, que atribui a um principio espiritual toda atividade psiquica do homem, o que é combatido pelos escolásticos, os quais consideram a alma humana (anima rationalis) a forma do corpo.

   Para os espiritualistas, a Psicologia não pode ser reduzida à Fisiologia, e os fatos fisiológicos, por si sós, não são suficientes para explicar os fatos psicológicos.

   O espiritualista afirma a espiritualidade da alma, cuja atividade, bem como sua existência, são independentes da matéria.

   Cabe ao espiritualista responder a um conjunto de perguntas que desde logo se colocam:

   1) Qual é a natureza dessa alma?

   2) Quais as relações entre a alma e o corpo?

   3) Qual a origem e o destino da alma?

  Muitas têm sido as respostas a essas perguntas fundamentais. Sintetizaremos apenas as mais importantes.

   1) A alma é uma substância espiritual, imaterial, incorpórea. Não apresenta as caracteristicas dos corpos que se dão no complexo tempo-espacial, que são extensistas com a tridimensionalidade própria do espaço. A alma, incorpórea, não tem a tridimensionalidade do espaço, embora atue no tempo. Como é simples, não é decomponível; portanto, não conhece a morte, que é decomposição. É imortal, conseqüentemente. Esta é a opinião dos espiritualistas em geral.

   2) A alma é uma coleção de fenômenos e de sensações. Não tem ela materialidade, mas é apenas um relacionamento coordenado de funções psíquicas. Esta opinião, acusada por muitos de materialista, tomou o nome geral de fenomenismo, e foi defendida por Taine, que fazia questão de que não o chamassem de materialista, mas podemos encontrá-la já esboçada em Hume.

   «Quando penetro mais intimamente no que se chama eu mesmo, caio sempre sobre alguma percepção particular ou alguma outra, de calor ou de frio, de luz ou de obscuridade... Não posso, nunca, tomar a mim mesmo numa percepção, e pode-se dizer seguramente que eu não existo'! (Hume).

   Não alcançamos nosso eu se­não através de seus atos. É um fato observável. Conclui pela inexistência do eu, pelo fato de não ser alcançado. Mas, como concluir daí a sua inexistência?

   3) A explicação escolástica:

Para os escolásticos, a substân­cia e os acidentes (o que acontece à substância), não são dois seres, mas dois princípios de um mesmo ser.

   Todo acidente, que pode sur­gir e pode desaparecer, supõe um suppositum, um suporte, o sujeito, uma realidade permanente, na qual se produzem tais modificações. Como conceber a cor, o ca­lor, sem corpos coloridos, quen­tes?

   Os fenômenos psicológicos são apenas acidentes, pois são transitórios, mutáveis. Ora estou triste, ora alegre, etc. Há, consequentemente, uma substância subjacente a esses fenômenos, a esses acidentes psicológicos.

   Nós captamos a unidade do nosso eu. A memória atribui ao mesmo eu fatos passados. Sem essa permanência, como haver memorização daqueles? Haveria, ao contrário, apenas fatos atuais.

   O acidente não é um ser com uma existência independente; ele dá-se na substância. O seu ser consiste em ser num ser (inesse). Também as relações. que são seres assistenciais, implicam os seus suportes. Mas a substância não é um ser sem acidentes, pois tudo quanto acontece à substância é acidente.

   A substância é essencial aos acidentes, mas estes não o são de modo determinado à substância. Os fatos psíquicos implicam portanto uma substância, que realiza atos psíquicos.

   Essa alma é simples, imate­rial. Se fosse composta de partes, e portanto material, cada parte simples teria um conhecimento do todo. Teríamos, então, uma multiplicidade de almas. tendo cada uma um conhecimento próprio, o que é contrário à experiência que temos da unicidade do conhecimento. Ainda poderíamos observar que cada parte do principio cognoscente conhe­ceria uma parte do objeto, mas o próprio objeto não seria conhecido em seu conjunto, o que também é contrário aos fatos. A idéia de espiritualidade supõe a simplicidade, a imaterialidade.

Os estudos sobre a memória mostram-nos que não se pode explicá-la como uma mera função do cérebro, como já o provaram tanto filósofos como fisiologistas.

A capacidade de construir idéias abstratas e gerais não se pode explicar apenas pelo que é singular. Uma imagem pode ser uma cópia da matéria, mas como concluir que o seja uma idéia abstrata? A idéia de justiça, de bem, de perfeição são puramente intelectuais, e não dadas pela experiêcia.

Ora, há um axioma ontológico que nos diz que cada ser atua segundo o que é (agere sequitur esse). O espírito humano tem representações intelectuais; por­tanto, é uma inteligência pura.

Se por meio do material o espírito realiza o imaterial, espiritual, é porque ele, sem dúvida, é espiritual. Quidquid recipitur ad mudun recipientis recipitur, cada um recebe a ação que sofre segundo o que é. A fotografia de um triângulo, que o geômetra traça no papel, não é o pensamento sobre o triângulo. O homem intui do concreto e do particular o abstrato e o geral. O homem tem intuições eidéticas.

Além do mais, o homem capta idéias normativas, o ethos. Elas não nascem da experiência sensível, afirmam os espiritualistas. A idéia do bem e do belo não sur­gem da nossa experiência, elas afirmam uma participação nossa em outro mundo que não este, onde tais valores se dão numa perfeição superior à que nós te­mos deles.

A vontade mostra-nos uma atividade espiritual. P. Lamy analisa o exemplo do soldado que, na guerra, tem um membro infeccionado. Não há anestésicos. É preciso amputá-lo. Todo o seu corpo diz não. Mas sua vontade diz sim, e aceita a proposta do médico. Como explicar tal ato, quando todo organismo se rebela à dor que o ameaça?

Ante as relações entre o corpo e a alma, explica o espiritualista: o homem não é um puro espirito, e é também corpo. É o espirito que anima esse corpo, um principio imaterial que o anima.

Mas como realidades tão heterogêneas podem agir uma sobre a outra? Os idealistas absolutos, que negam a matéria, resolvem este problema pela aceitação de um monismo espiritualista.

O paralelismo psico-fisiológico procura explicar, sem no entanto resolver, o problema da ação recíproca entre corpo e alma.

O problema coloca-se, portanto, deste modo:

a) enquanto os idealistas não são capazes de explicar o problema da sensação, também não são os materialistas capazes de explicar o pensamento.

b) A aceitação de um dualis­mo não nos explica a ação recíproca.

Vejamos a resposta de Tomás de Aquino:

A alma é a forma do corpo. É a alma que dá ao corpo o ser, a vida, o sentimento, e é ao mes­mo tempo o instrumento do pensamento. Ela pode atuar e existir independentemente da matéria. A alma não é uma forma como a dos seres corpóreos, como a da flor, que precisa da matéria para existir. A alma é uma for­ma subsistente, e pode subsistir sem a matéria.

Qual a origem, e o destino da alma? A esta pergunta são dadas, pelos espiritualistas, as seguintes respostas principais:

Pondo-se de lado as opiniões evolucionistas, que não são acei­tas por todos os espiritualistas, senão sob certo aspecto, a opinião predominante, no Ocidente, é a criacionista.

Os evolucionistas, quando são espiritualistas, dizem que Deus atua por causas primeiras e causas segundas (e aqui aproveitam o raciocinio tomista). Se o homem é portador de uma alma, é porque Deus providenciou (pro­videre, viu com antecedência), ordenou o mundo de tal modo que se dessem tais ou quais consequências para que ela surgisse. A evolução processou-se pela conjunção de causas segundas favoráveis, que, atuando como predisponentes, permitiram a emergência da alma, que nos animais é simplesmente vegetativa ou animal, mas que, no homem, é racional.

Esta posição realiza um com­promisso entre o evolucionismo e o espiritualismo, e empresta à matéria uma virtualidade espiritual. No  entanto, poderiam argumentar os defensores de tais idéias que não se empresta à matéria essa virtualidade, enquanto matéria. O material é um modo de ser, como o espiritual é outro modo de ser O ser, que as antecede em dignidade e poder, é que se atualiza como espiritual, quando um conjunto de condições favoráveis permitiram que a matéria fosse receptáculo de outro ser, o espiritual, que não é um desenvolvimento daquela enquanto tal, mas do ser, que a antecede.

O ser animal, graças à providência divina, alcançou um estado em que podia receber a alma; isto é, ter funções espirituais, afirmam os evolucionistas espiritualistas, ou a receber uma alma, afirmam os criacionistas, que admitem a evolução, que é um ponto intermédio entre os primeiros e os criacionistas puros.

Uma pergunta impõe-se aos criacionistas puros, que não admitem nenhuma procedência da animalidade: por que Deus preferiu a forma animal, aparentada aos primatas, e não outra para ser receptáculo de uma forma espiritual? Não deveria cor­responder fisiolôgicamente ao psicológico?

Outras perguntas se impõem: ou a alma vem dos pais, ou foi criada por Deus? E quando surge a alma da criança? Se ela preexistia, onde estava? Num animal, numa coisa, ou pairava em um mundo imaterial à espera da sua informação material?

A Igreja quanto à passagem bíblica que diz: «E Deus criou a homem à sua imagem; criou-o à imagem de Deus. Fê-lo do barro. e insuflou-lhe nas narinas um sopro de vida e o homem tornou-se um ser vivo» (II, 17), dá liberdade às investigações dos filósofos católicos. Reconhece que este texto não pode ser tomado ao pé da letra. A Enciclica «Divino affiante Spirito» permite que se considere essa passagem como uma exposição popular (exotérica), a fim de ser melhor compreendida pelo homem do povo.

Às perguntas que acima alinhamos, os espiritualistas afirmam preferentemente que a alma veio de Deus. Outros, porém, admitem que seja transmitida pelos pais, o que explicaria o pecado original, que é transmitido deste modo, por geração.

Admitem outros que a alma animal é transmitida por geração. Mas o espirito não é. Se se admite essa explicação, como surgiriam as funções espirituais? É esta dificuldade que leva construir a idéia de espírito.

Quanto aa seu destino, afirmam os espiritualistas a imortalidade da alma, por ser imaterial e espiritual, a qual não sofre a disassociação dos elementos, pois é simples. Desligada do corpo, não pode sofrer o destino do corpo.

Para os espiritualistas mais conseqüentes, a alma é espiritual. O espiritual é o modo de ser imaterial (não material), ativa, portanto, capaz de criar, criador.

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