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Dicionário de Filosofia de                              Mário Ferreira dos Santos

              

               FILOSOFIA CONCRETA

 

  Chamamos de filosofia concreta, em oposição à filosofia predominantemente abstratista, o nosso modo de filosofar, exposto em nossas obras, no qual devotamos o máximo cuidado em retornar ao conjunto, do qual faz parte, todo aspecto abstraído, separado mentalmente, e que se dá na mesma realidade. Contudo, este seria apenas um aspecto metodológico do que chamamos de filosofia concreta, pois esta realiza uma construção e alcança uma sistematização, fundada em teses, que são demonstradas apoditicamente, no sentido kantiano; ou seja, através de juízos universalmente válidos. O ponto de partida da filosofia concreta são os seguintes juízos universalmente válidos: alguma coisa (algo) há; o nada absoluto total não há; alguma coisa não há (nada relatívo) não contradíz que alguma coisa há. Partindo-se de tais postulados, devidamente demonstrados, verifica-se que, obedecendo a rigorosas ilações lógico-dialéticas, é possível construir toda uma visão rigorosamente apoditica, e alcançar a várias centenas de postulados absolutamente verdadeiros, que permitem, com eles, estabelecer o ponto de partida para um filosofar seguro e liberto do axioantropológico, bem como servir de ponto de referência e de aferição para julgar da validez de qualquer posição filosófica. Na construção dessa filosofia, que realizamos em nosso «Filosofia Concreta», em 3 vols., verifica-se que grande parte dos postulados expressos no decorrer do processo filosófico humano são válidos e se identificam com os que decorrem rigorosamente da filosofia concreta. E pode-se dizer ainda mais, que o pensamento dos maiores filósofos, aqueles que revelaram a mais sólida mens philosophica se identifica muitas vezes com a nossa filosofia.

   Os postulados fundamentais da filosofia concreta têm de ser aceitos por todos, inclusive pelos sistemáticos, pois estes partem, inevitàvelmente, de uma afirmação. O cético de certo modo afirma, porque afirma uma recusa apenas.   

   Imaginemos que o cético negue a tese do dogmatismo moderado de que «nós, por introspecção, somos cônscios de que em nós existe um estado de certeza, de dúvida, ou de opinião, pois nós, ora temos certeza (alguns), ora duvidamos, ora opinamos. Esses estados se dão.» Contudo, o cético sistemático suspende seu juízo, considerando que nada pode afirmar.

   A certeza, para os dogmáticos moderados, é a adesão firme do entendimento ao objeto conhecido, fundada em um motivo evidente, que exclui todo temor de errar.

   Há verdade lógica, quando há conformidade entre o esquema eidético-noético, com o qual conhecemos, e a realidade da coisa conhecida. E diz-se que há verdade metafisica ou ontológica, quando a coisa conhecida é adequada ao nosso esquema.

   A verdade ontológica de um juízo decorre da perfeita adequação do que se predica ao sujeito, cuja relação ou é necessária ou é da própria natureza da coisa. Assim, a prioridade indica a anterioridade de algo em vetor ou ordem ou espécie a outro do mesmo vetor ou ordem ou espécie, necessàriamente. A anterioridade está, necessàriamente, inclusa na estrutura ontológica da prioridade. Assim qualquer ato do espírito é, em si, afirmativo, porque onde há uma ação, há afirmação, embora a ação seja negadora, que, neste caso, é a afirmação da não presença, da ausência de alguma coisa ou da recusa de algo.

  Os dogmáticos moderados fundam em geral sua posição na certeza, que é humana. E esta surge, para eles, apoditicamente (apoditicidade lógica), pela reflexão ou pela observação subjetiva, que revela muitos atos psíquicos heterogêneos, entre eles os representativos, nos quais se distinguem vários estados, tais como:

  a dúvida - quando não damos nenhuma adesão firme do entendimento e a mente permanece suspensa com temor de erro;

   a opinião, quando há adesão da mente, mas com a admissão de poder estar ena êrro e de ser possivelmente verdadeira a opinião contrária;

   a certeza, quando há essa adesão da mente sem temor de errar.

   Ora, a verdade lógica está no juízo, enquanto, a verdade ontológica está na essência da própria coisa. A certeza ontológica é firme. O que tem prioridade é de certo modo anterior. Se a prioridade é cronológica, tem anterioridade no tempo; se axiológica, tem-na como valor, etc.

   Na certeza ontológica, há uma evidência intrínseca. Colocando-nos do ângulo antropológico, o que engendra a certeza na mente deve ser um motivo supremo, o último porque de toda certeza. E esse motivo supremo deve ter as seguintes condições:

   a) Ser primário na ordem cognoscitiva, de maneira que não suponha outro do qual dependa. Conseqüentemente, será indemonstrável, e o mais fácil de ser conhecido por todos.

    b) Terá de ser universal, isto é, há de extender-se a todos os conhecimentos certos, e deve estar incluído em todos os outros critérios.

   c) Há de ser necessário, de maneira que sena ele não tenham va­lor os outros motivos de certeza.

   d) Há de ser o último, no sentido de que nele venham, finalmente, resolver-se todos os outros.

   O que tem tais condições é a evidência objetiva. Assina a evidência objetiva de que o todo é quantitativamente maior que cada uma de suas partes é suficiente para obrigar qualquer mente a assentir firmemente com a verdade que tal principio encerra.

   A certeza é subjetiva, mas a evidência é objetiva. É a segunda que engendra a primeira. A luz da evidência é bastante para si mesma e nada mais se poderia pedir, porque é ela suficiente. É evidência que encerra em si todos os requisitos anteriormente apontados. Poder-se-ia objetar que a evidência pode levar ao erro. Se alguns são levados a «evidências», que são erradas, deve-se a não terem usado devidamente a razão.

   Não é essa, porém, a evidência que empregamos para assegurar a validez apoditica das teses. Não precisamos, aqui, repetir a longa polêmica em torno deste tema, que está dispersa nas obras de filosofia, porque não é dela que lançamos não, sem que por isso lhe neguemos validez.

   Se na verdade lógica há a adequação entre o intelecto e a coisa; na verdade ontológica, a da coisa com o intelecto, em ambas, há, portanto, a adequada assimilação entre o esquema noético-eidético e a coisa. Numa, daquele com esta, noutro, desta com aquele.

  Mas a verdade dialético-ontológica exclui o esquema eidético-noético do homem. Não parte dele, mas da razão do próprio ser. Quem dá a solidez aos nossos esquemas noético-eidéticos é a razão ontológica, é o logos do ontos.

   A prioridade da afirmação é necessária, e ela afirma que alguma coisa há. Essa verdade dispensa adequação. É verdade em si mesma. O que construímos noeticamente vale na proporção que corresponde ao que é ontologicamente verdadeiro. Nossa verdade é dada pelo conteúdo ontológico, por isso a Lógica tena de ser, afinal, subordinada à análise ontológica.

   É o fundamento ontológico que dá solidez e validez ao lógico, e não o inverso.

   A validez das idéias está na proporção em que o ontológico lhes dá conteúdo. E por essa razão pode-se dai partir para toda uma revisão dos nossos juízos lógicos.

  Nossos esquemas (species) constituem o que, pelo qual, é conhecido o objeto, não o que é conhecido (species est id objec­tum cognoscitur, non id quod cog­noscitur.) Esta afirmação escolástica é de grande valor. O esquema eidético-noético expressado representa o objeto corno nós o entendemos. Mas a validez de tais esquemas é dada pela validez dialético-ontológica. Ao partirmos do lógico, só deduzimos o que já está nas premissas; só deduzimos o que nas premissas já pusemos. Por essa razão, apenas com o uso da Lógica, pode o homem perder-se no erro. Mas, na captação ontológica há outro modo de proceder. Por meio dela, não extraímos o que pomos, mas o que já está na razão da coisa. Desse modo, pode o ser humano errar quando usa a Lógica, não quando usa a via dialético-onto­lógica. Podiam-se apresentar ar­gumentos contra os antípodas, porque todos os corpos pesados caem, e se houvesse seres abaixo de nós, cairiam, mas ontologica­mente nada impediria que hou­vesse antípodas. Posteriormente, se conclui, graças aos conheci­mentos científicos, que os corpos pesados caem em direção ao cen­tro da Terra (como se dá em nosso planeta). Já nesse enuncia­do os antípodas não são mais ab­surdos.

  São motivos, como tais, que nos levam a afirmar que a via dialético-ontológica supera a via lógica para alcançarmos a evidência. sem que se despreze o valor inestimável que esta. oferece para o filosofar. Mas o que queremos estabelecer, nesse nosso intuito de matematizar no bom sentido a Filosofia, é que devemos sempre submeter as premissas lógicas à análise ontológica por nós preconizada, a fim de evitar os erros que a deficiência humana fatal­mente provoca.

  E aqui encontramos, ademais, uma justificação a favor de nossa posição filosófica. Chamamos a nossa filosofia de concreta, precisamente por que se funda ela no ontológico, e este é a realidade última da coisa, é a realidade fundamental da coisa. Não surgem as estruturas ontológicas de elaborações mentais. Elas não são impostas pela nossa mente, mas se lhe impõem,

   As estruturas ontológicas são válidas de per si, e justificam a sua própria validez, mostrando-se a nós. O que construímos logica­mente, temos de demonstrar, mas o fundamento dessa demonstra­ção está na mostração da raiz ontológica. Por isso, a via dialético-ontológica é concreta, e só pode levar à construção de uma filosofia concreta.

   Não seguimos, assim, o caminho usado pelos filósofos de todos os tempos, sem que tal im­peça que muitas das nossas afirmativas e das teses por nós demonstradas coincidam com o pensamento exposto por outros. Não, é, porém, o pensamento alheio que fundamenta a nossa posição, é o nosso método dialético-ontológico que lhes fundamenta os postulados. A Filosofia Concreta não é, assim, uma construção sincrética do que há de mais seguro no filosofar. Mas, o que há de mais seguro no filosofar, através dos tempos, é o fundamental concreto, no sentido que damos. A Filosofia Concreta forma, assim, uma unidade, e a sua validez é dada por si mesma. Para mostrar a diferença entre o filosofar, submetido apenas ao lógico, e o filosofar dialético-ontológico, podemos apresentar diversas diferenças. Vamos, contudo, apresentar outro exemplo.

  Não devemos confundir a gênese noética do conceito com o conteúdo lógico, nem com a sua estrutura ontológica. Tomemos, como exemplo, o conceito de infinito.

   Combatendo os argumentos escotistas, os suarezistas, que são filósofos tão grandes como aqueles e tão grandes como os maiores de todos os tempos, repelem a afirmativa destes de que a primeira diferença de Deus é constituída pela infinitude. Para estes, Deus é o ente simpliciter in­finitum, absolutamente infinito. Ora, tal não procede, afirmam, porque infinito é algo negativo, e o negativo funda-se em algo positivo. E se fundado em algo positivo, então, este seria a diferença primeira e constitutiva de Deus. O infinito seria, pois, um acidente, e não poderia constituir a diferença primeira.

   Pode-se, através de uma análise dialético-ontológica, responder do seguinte modo:

   Segundo o nosso modo de conceber, a gênese do conceito de infinito surge da negação da infinitude, infinito. Mas se etimologicamente o conceito é negativo, não o é em sua estrutura ontológica, como não é o conceito de Não-eu, o conceito de átomo (átomos), porque se referem a conteúdos positivos. Mas o conteúdo positivo de infinito é a absoluta independência: o ser absolutamente necessário. Se a mente humana percorre um longo caminho para alcançar o conteúdo concreto-ontológico do conceito de infinito, o seu verdadeiro conteúdo é o final, e não o que é dado aos primeiros ensaios. Neste caso, se tomarmos infinito em sentido lógico, o argumento dos escotistas é inaceitável, mas se tomarmos em seu conteúdo ontológico, é ele válido.

   O céptico poderá dizer que nada sabe sobre o que há, mas terá de concordar que há alguma coisa, e também o agnóstico e o relativista; pois, para este último, há, pelo menos, a relação, e o ser é para ele relativo. Ademais, a relação é alguma coisa e não nada. É uma entitas, uma entidade.

   Os principais argumentos cépticos, na Criteriologia, podem ser simplificados em dois: um a prio­ri e outro a posteriori. Aprioristicamente afirma a impossibilidade de um critério seguro e inapelável da verdade por parte da razão, porque esta terá de demonstrar, não por si, mas por outrem, sendo impossível alcançar um primeiro critério, base certa e segura de toda demonstração.

  O defeito fundamental dessa objeção consiste em afirmar, gratuitamente, que tudo é demonstrável, e que nada poder-se-á ter por certo e seguro sem uma demonstração. Como a primeira deveria ser certa e segura, e como exige demonstração, essa seria indefinidamente levada avante. Estamos no dialelo. Mas já evidenciamos que não se prova apenas demonstrando, mas mostrando. Há um critério de evidência, que não necessita de, nem pode ser justificado por outro, e que se justifica por si mesmo: alguma coisa há. Esta verdade é ontologicamente perfeita, porque a sua proposição encerra em si a verdade. Não há possibilidade de uma ficção absoluta, porque a sua mera enunciação afirma que alguma coisa há. Na proposição alguma coisa há, o sujeito é suprido perfeitamente pelo predica­do. Essa evidência é objetiva. Se é o homem que a pronuncia, a evi­dência subjetiva apóia-se numa evidência objetiva. Alguma coisa há para que o homem possa afir­mar que alguma coisa há.

   O segundo argumento dos cépticos está no fato de nos enganarmos quanto à verdade das coisas. E por que nos enganamos algumas vezes, concluem que nos enganamos sempre. Quod nimis probat, nihil probat (o que prova em demasia não prova) afirmavam os escolásticos, e com fundamento, porque a conclusão desse argumento aposteriorístico dos cépticos é dogmático, exageradamente dogmático, além de exten­er a conclusão além das premissas.

   Que nos enganamos algumas vezes, é procedente a afirmativa, mas que nos enganamos sempre é uma afirmativa que excede e refuta o próprio cepticismo, pois saberíamos, então, com certeza, como verdade, que sempre nos enganamos. No entanto, alguma coisa há refuta que nos enganamos sempre, porque o próprio engano afirmaria que «alguma coisa há». Nossa tese, portanto, é válida também para os cépticos.

  O cepticismo tornar-se-ia ainda mais absurdo se negasse que alguma coisa há, pois a sua negação seria a afirmação de que alguma coisa há. Gonzalez sintetiza sua objeção ao cepticismo com estas palavras, onde mostra a contradição fundamental que o anima: "ou sabes que não sabes nada, ou não o sabes. Se não o sabes, porque o afirmas? E se sabes, já sabes algo, e é prova de que se pode saber alguma coisa". Repete, assim, as palavras de Santo Agostinho: «Quem pode duvidar que vive e entende, e que julga? se duvida, vive; se duvida, entende que duvida; se duvida, é porque quer ter certeza; se duvida, pensa; se duvida, sabe que não sabe; se duvida, julga que convém não prestar um assentimento temerário» (De Trinitate, lib, X, capo 10, n. 14: Xv, 12):

   Ademais o cepticismo aplicado à prática seria destrutivo, e tornaria impossível a vida humana, pois o céptico, para o ser integralmente, teria de excluir toda prática.

   Tal não impede que haja um cepticismo até certo ponto benéfico para o progresso do saber humano. Se paira aqui uma grande polêmica na filosofia, certa dúvida metódica poderá levar o homem a investigações mais longas e mais profundas, e corresponderia, perfeitamente, a um desejo mais amplo de saber. Contudo, conviria estabelecer os limites desse cepticismo relativo, pois a dúvida metódica de Descartes deu frutos ácidos para a filosofia, embora não fosse essa a sua verdadeira intenção. Entre os escolásticos modernos, há muitos que a admitem, como Sentroul. Monaco, Monnot, Noldin, Maquart, Geny, Jeannière, Guzzetti, Maréchal, Montagne, Jolivet, Noel, d'Aquarparta, Kleutgen, Li­beratori, Palmieri, etc. Admitem-na apenas metódicamente, mais em face do estado de cepticismo que avassala certas camadas intelectuais, e a necessidade de par­tir dela para estabelecer as bases firmes de um critério gnosiológico.

   A posição agnóstica é fundamentalmente céptica, e padece dos mesmos defeitos do cepticismo e a sua refutação se faz pelo mesmo caminho.

   Já o relativismo tem encontrado na época moderna seus cultores. Protágoras é considerado o fundador dessa posição, e a tese fundamental do relativismo consiste em afirmar que a nossa verdade é relativa ao sujeito cognoscente. Não conhecemos o objeto como ele o é em si, afirma, bem como nega possamos adequadamente distinguir entre cognição absolutamente verdadeira e cognição falsa, já que a coisa não pode ser captada, senão segundo as nossas medidas. Se há um relativismo absoluto, há, ademais, um relativismo moderado. Este afirma que nossas verdades são relativas ao sujeito cognoscente, segundo o seu modo de conhecer, aceitando, portanto, que há um conhecimento verdadeiro do que a coisa é em si, mas proporcionado ao sujeito cognoscente.

   Ora, quer o agnosticismo, quer o relativismo universal como o moderado não podem por em dúvida a tese fundamental da filosofia concreta, pois se o agnóstico declara não podermos saber o que a coisa é em si, não nega que algo há e, por sua vez, o relativismo afirmaria que a relação há, e que a relação não é um puro e absoluto nada.

  Os relativistas intelectualistas. como os idealistas e os fenomenistas, que chegam a negar a existência da coisa em si, e apenas afirmam a das nossas idéias e representações não negam, conseqüentemente, que algo há.

   No fundo, a relativismo é cético, e sobre ele cai a mesma refutação. Pode-se, de certo modo, considerar o agnosticismo um relativismo fenomenístico, sobretu­o o agnosticismo científico, bem como também o psicologismo e o historicismo, o pragmatismo, pois todas essas doutrinas fundamentam-se nos mesmos postuladas.

   O idealismo, em geral, ao afirmar que o objeto conhecido é totalmente imanente ao cognos­ente, chegando até à negação do mundo exterior, e o idealismo fenomenistico afirmam, portanto, que algo há.

   Se os acosmísticos negam a existência real do mundo corpóreo, não afirmam uma negação absoluta de que algo há, nem os fenomenísticos, ao afirmarem que nosso único conhecimento é aparente, nem os idealistas monisticos, nem os pluralistas negam tal postulado. O idealismo é, em suma, relativismo, e conseqüentemente, cético.

   Em oposição ao idealismo, poder-se-ia dizer que o intelecto humano é naturalmente ordenado à verdade e que a verdade objetiva existe independentemente da cognição humana. O que, no entanto, fica afirmado, ante essas posições, é que algo há.

   Também entre os filósofos anti-intelectualistas, como Bergson, Nietzsche, e os existencialistas, que afirmam serem insuficientes os meios intelectuais de conhecimento, e que a realidade concreta nós a atingimos através de uma experiência vital e alógica, apesar da fraqueza dos seus postulados, aceitam também que algo há.

  Para a fenomenologia moderna, em todos os seus aspectos e escolas, não se nega validez ao postulado fundamental da Filosofia Concreta.

  Restaria apenas a posição nihilista absoluta, que negaria terminantemente que algo há, e afirmaria que nada absolutamente não há. Tudo seria mera e absoluta ficção. Mas tal posição ainda afirmaria que a ficção é algo, e, canseqüentemente, que algo há.

  Portanto, sob nenhum dos aspectos do filosofar, sob nenhum dos seus ângulos, em nenhuma das posições filosóficas consideradas em todos os tempos, nenhuma sequer nega a validez do postulado fundamental da filosofia concreta, o que prova também a sua universal validez.

   Poder-se-ia, ainda, discutir a vali dez dos conceitos alguma coisa (áliquid) e o haver (há). Mas, que apontam tais conceitos? Aliquid diz-se do que tem positividade de qualquer modo, do que se afirma. Haver indica presença simplesmente. O predicado afirma que se pode predicar a presença de algo (ser, devir, ficção, não importa), e que essa presença tem uma positividade, pois não se pode predicar a absoluta ausência. Entre os conceitos de presença e de ausência total e absoluta, a mente não pode vacilar, pois a afirmação da segunda seria negada pela própria afirmação.

   Consequentemente, prova-se, ainda, que é verdadeiro o postulado: é absolutamente falsa a predicação da ausência total e absoluta. Conseqüentemente: é absolutamente verdadeira a predicação de uma presença.

  Tem, assim, o filosofar um ponto arquimédico de partida, sobre o qual nenhuma objeção pode ser feita; ou seja: há um juízo universalmente válido e absolutamente verdadeiro, sobre o qual se podem construir os fundamentos de um filosofar coerente, que era o que a Filosofia Concreta desejava mostrar e demonstrar.

   Fundada nesses postulados, apoditicamente demonstrados, constrói ela, de modo unitário, a visão geral concreta filosófica com validez, por ser rigorosamente encadeada em teses universalmente válidas.

   Em suma: A filosofia concreta opõe-se à filosofia da doxa (a filodoxia), das meras asserções, e pretende instaurar uma metamatematização da filosofia, fundando-se, não em juizos assertóricos, mas em juízos necessários, portanto apoditicamente válidos.

 

   SÍNTESE FINAL - Procede distintamente a filosofo concreta em relação ao significado dos termos, de modo outro que o proceder clássico, no qual, partindo-se do termo, buscam-se as suas noções. Prefere-se, naquela, par­tir primeiramente das noções pa­ra, depois, buscarem-se os termos apropriados.

   É comum tomarem-se as famosas polaridades aristotélicas, como ato e potência, forma e matéria, essência e existência e substância e acidente, e procurar-se o nexo de tais conceitos. Mais avisados andaremos, contudo, se procurarmos reexaminar as noções para, finalmente, verificarmos se tais termos são adequados ou se não é mister buscar outros que melhor condigam com o que pretendemos expressar. Ao examinarmos a grande controvérsia que se verifica na filosofia em torno de tais conceitos, e das diversidades a que chegam vários filósofos, que partem do aristotelismo, como se verifica em todo o processo da escolástica, chegamos à conclusão que se impõe uma revisão das polaridades aristotélicas. Não que a filosofia concreta queira fazer o que é mais do sabor dos eruditos exegetas, que desejam penetrar nos verdadeiros sentidos que emprestou a tais termos o grande estagirita. Achamos essa providência própria de eruditos e exegetas, útil, sem dúvida, aos que desejam na filosofia, ser repositório da maior soma de conhecimentos vários. Como essa não é a nossa finalidade, dispensamos essa providência, porque o que nos interessa é saber como concretamente poderemos chegar a tais conceitos, e não saber por que caminhos, muitas vezes tortuosos, outros até lá chegaram. Procuramos, sim, saber qual a única maneira concreta, ou seja, apoditicamente válida, no campo ontológico, pela qual se pode considerar substância e acidente, forma e matéria, ato e potência, essência e existência. Como a consideraram este ou aquele filósofo, quais as opiniões que foram apresentadas por um ou outro, quais as distinções que se podem estabelecer entre um pensador e outro pertencem ao campo da história do pensamento filosófico, não ao da filosofia concreta, que segue outra orientação. Não se trata mais de opinar na filosofia. Trata-se de estabelecer a única maneira ontológicamente verdadeira de expressar alguma coisa, mas fundando-se a afirmativa em bases apodíticas, com o rigor que desejamos dar à filosofia. Não queremos com isso fazer uma religião da filosofia concreta, como pretendeu afirmar um escritor de ensaios filosóficos, que não percebeu bem a distinção que há entre filosofia, religião e ciência e teologia natural, racional e religiosa.

   Ora, já sabemos o que é ciência, e em toda a ciência opera o homem com a luz natural da sua inteligência. Dispõe ele da sua mente e dos processos judicativos para, empregando determinados meios, alcançar um conhecimento. Se esses meios são os naturais, temos a ciência natural; se apenas trabalha com a luz natural da sua inteligência, temos a filosofia. A teologia como ciência das coisas divinas, se é fundada na luz na­tural da inteligência, constrói a teologia natural e a racional, se ademais se funda na revelação, temos a teologia religiosa. Ora, a filosofia concreta não se funda numa revelação. Não é, portanto, uma religião. Ela se funda na luz natural da inteligência e busca concrecionar os conteúdos eidéticos que a nossa inteligência é capaz de captar, conexionados com, rigor ontológico. Jamais poderia ser confundida com a religião. Só o poderiam fazer aqueles que têm uma vi­são primária do que seja a religião, ciência, filosofia.

   Por outro lado, o que chamamos filosofia concreta não é uma sistematização de opiniões mais ou menos bem concatenadas. É ela avessa, desde a base, e fundamentalmente, ao opinativo, ao meramente assertivo.

  Busca-se nela alcançar conteúdos eidéticos rigorosamente apoditicos, em base estritamente ontológica. É, assim, uma metafilosofia, porque, alcançados tais fundamentos rigorosos, é ela capaz não só de fazer a critica precisiva do pensamento vário na filosofia, como, também, de estabelecer a procedência ou não de qualquer tese esboçada através dos tempos.

   Não é, desse modo, um filosofar eclético, porque no ecletismo há uma seleção, uma escolha de postulados coordenados numa construção mais ou menos feliz. Não trata ela de escolher as melhores passagens do pensamento filosófico. Ela é inteiriça em sua construção. Realiza sucessivamente a captação do que se dá simultaneamente. Busca reunir pelas operações mentais o que é rigorosamente já dado.

   Há uma verdade ontológica e sobretudo dialética, no sentido que se deve empregar o termo, que se nos revela parcial e sucessivamente. As nossas operações servem apenas para desvelar o que já é em toda a sua glória, mas que exige de nossa fraqueza um processo de desvelamento demorado. Todos os juízos mais profundos da filosofia já estão virtualmente contidos no juízo fundamental de que parte toda filosofia concreta: «alguma coisa há». O trabalho de desdobramento, de desvelamento posterior se deve apenas à impossibilidade de nossa mente captar simultaneamente todas as verdades já contidas nos juízos virtuais para nós, contidos na verdade daquele juízo, já que a nossa mente é discursiva. A simples captação do ser, que é primordial em toda e qualquer experiência de um ser consciente e inteligente, encerra em si toda a gama judicativa possível. A verdade já está dada de todo o sempre. Essa é também a grande revelação. Não, porém, uma revelação expressada claramente à mente humana, mas um desafio que se lhe faz para que ela busque e encontre.

  É, porém, com a luz natural da nossa inteligência, graças à construção de um método proveitoso, como o é a dialética concreta, que nos é possível construir a filosofia concreta. E se nos diversos pontos ela se identifica com esta ou aquela posição, é que esta ou aquela tem fundamentos concretos. Tomada como um todo, é ela obra original, embora não seja, sob certos aspectos, em suas particularidades. Nem o poderia ser. A nossa capacidade criadora de ficções não cabe ao campo da filosofia, mas ao da estética. Na filosofia não criamos ficções, Nesta, desvelamos, descobrimos verdades. Os que procederam de outro modo não foram filósofos, mas artistas. Impõe-se separá-los de uma vez, para que o meramente assertivo, de uma vez por todas, seja expulso do âmbito filosófico. Se querem fazer estética que o façam no campo da arte, da literatura, não no da filosofia. Já bastam as inúmeras construções precipitadas ou mal acabadas, que geraram tantos erros, tantas confusões e tantas personalidades famosas que gozam de um prestigio que não merecem.

   Por não ter compreendido a riqueza que há de juízos virtuais num mero juízo analítico, poderia Kant fazer o que fêz com a sua obra, e gerar as monstruosidades do pensamento moderno, como são o positivismo, o pragmatismo, o agnosticismo, o cepticismo moderno, o materialismo histórico, o materialismo moderno, o nihilismo, o ficcionalismo e o desesperismo, o satanismo, a loucura em suma.

  Também do erro palmar dos racionalistas desde Descartes não poderia surgir outra coisa que a monstruosidade do espiritualismo exagerado, o racionalismo, o idealismo de toda espécie. Tudo isso, que ensombreia o pensamento moderno, embora para muitos seja um espetáculo de pujança filosófica, precisa de uma vez por todas ser relegado apenas ao campo da história, que sirva de pasto aos famintos de exegese, aos famintos de erudição viciosa, aos pescadores de águas turvas, que só serv­ram para lançar a dúvida sobre o valor da filosofia, que tem sido desprezada por tantos espíritos de escol que dela se afastam, porque pensam que a filosofia é opinar à maneira primária de tantos famosos escritores, na maior parte falhos das mais elementares regras de lógica.

  Tudo isso deve pertencer ao passado e constituir apenas elementos do historial da filosofia. Partimos para uma nova era, para uma nova maneira de compreender o mundo e as coisas, não no sentido particularista dos tempos passados, submetido às condições e aos fatores históricos e aos fatores caracterológicos dos seus seguidores. Podem um retraído de base e um dilatado ter duas maneiras diversas de visualizar o mesmo fato, pode um introvertido e um extrovertido verem diferentemente dois acontecimentos e apreciá-los de modo diverso, com valorações diferentes. Podem; não podem, porém, modificar ao sabor de suas apreciações condicionadamente submetidas ao seu caráter e ao seu temperamento, as leis da geometria, nem da matemática, nem da lógica. Um sofisma será sempre um sofisma, como uma operação matemática será sempre a mesma.

  O que queremos fazer, e o temos feito, na filosofia concreta, é libertarmo-nos do condicionalismo caracterológico e temperamental, é divorciarmo-nos das apreciações ao sabor da afetividade, e construir a filosofia com juizos rigorosos e ontológicamente apodíticos. Outro caminho só pode dar o que deu. Não queremos mais experimentar. Queremos construir com solidez tais caminhos e suas veredas.


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