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Dicionário de Filosofia de                              Mario Ferreira dos Santos

 

PARTICIPAÇÃO

     Participar vem do latim participare, e de participatio, participação. Etimologicamente, vem de capio, capere, que dá cipere e de partis, parte, parte cipere, sinônimo de recipere. Em seu sentido etimológico, participar é receber de outrem algo. Mas o que é recebido é recebido não totalmente (totaliter), pois totaliter recipere seria receber em totalidade algo (áliquid) É intuitivo que o conceito de participar implica um receber parcial de algo (áliquid) de outro (ab alio). O que participa é o participante, o qual participa do participável (participabile = o que pode ser recebido) de outro, o participado.
      Participação seria o fato de participar o participante do participável do participado.

     Estabeleciam os neo-platônicos um adágio, que foi posteriormente muito usado pelos escolásticos: «o que é recebido o é segundo o modo de ser do recipiente» (quidquid recipitur ad modum recipientis recipitur), que poder-se-ia, como na verdade foi feito, dizer do seguinte modo: «Tudo quanto é participado em algo, o é, nele, segundo o modo de ser do participante, pois nada pode receber acima de sua medida» (Omne quod est participatum in aliquo est in eo per modum participantis; quia nihil potest recipere ultra mensuram suam).
     Em suma, se alguém participa de alguma perfeição, dela participa segundo o seu modo de ser; isto é, na medida em que é capaz de participar, no grau que é capaz de receber. E o que marca esse grau, essa capacidade, é o próprio recipiente, o participante. Um exemplo permite esclarecer. Numa sala, onde é exposta uma conferência sobre determinado tema, os ouvintes participarão do mesmo na proporção da sua capacidade de participantes. Desse modo, a participação, como fato de receber, será proporcionada ao participante. O participado pode ser de maior grau de perfeição, mas a participação, por parte do participante, dependerá do grau deste.
      Esse modo de entender do neoplatonismo foi aceito por Tomás de Aquino, e nenhuma objeção se poderia fazer aqui.
      Por outro lado, evidencia-se desde logo que o conceito de participação aponta que o participante recebe ou participa de um participável, que pertence a outro em grau mais elevado, do qual o participante apenas participa.
      Neste caso, o participável não é do ser do participante, mas sim do ser do participado. Apenas o participante participa de algo que participado tem em plenitude.

      Na filosofia medieval, o que é por essência é causa de tudo o que é por participação. Assim, o que é por essência do gênero é participado pela espécie. Na definição clássica «homem: animal racional», este participa da animalidade. A primeira é gênero, e a segunda, diferença especifica, que é da essência humana, mas que não é exclusivamente dela, pois racionalidade é, por sua vez, atribuída a outros seres, como os anjos, ou a divindade, que a teriam em graus mais elevados, e em grau absoluto, a última.
      Entre as diversas espécies de participação que se possam estabelecer, teríamos a participação por composição. Esta participação se fundaria na dualidade de um recebedor (participante), e de um elemento recebido (participável). Neste caso, participar seria possuir algo que foi recebido. Em tal caso, o recebido toma a modalidade do sujeito recebedor. Se o recebedor é menos perfeito do que o elemento que ele recebe, este terá os limites próprios do recebedor.
      Portanto, na participação por composição, há uma limitação. Esta limitação, ao primeiro olhar, parece verificar-se em todas as espécies de participação, porque há participações sem esta limitação.
    O conceito de limite, desde que não seja considerado dialeticamente, pode colocar-nos em uma verdadeira aporia, pois ao considerarmos que, na participação por composição, há uma limitação, esta é por sua vez participada, o que nos obrigaria a desdobrar esta participação em duas: participação por limitação e participação por recepção.
      Então, na participação por composição, o recipiente é menos perfeito do que o que é por êle recebido, e o recebe apenas como parte, pois não pode recebê-lo sem limitá-lo.

       Vê-se claramente que é distinguível a composição de a limitação, embora a composição seja um elemento essencial dessa participação. O que é importante salientar aqui é que a limitação não surge propriamente da composição, mas do sujeito receptor, porque nem toda composição é uma participação.
       Outra espécie de participação é a participação por similitude ou por hierarquia formal. Neste caso, a essência, que é participada, não se encontra no participante na plenitude absoluta do seu conteúdo formal.
      Essas duas espécies de participação, que têm sido objeto de estudo por parte dos escolásticos, na verdade não se excluem totalmente.
      Aristóteles admitia que a espécie participa do gênero, e que o gênero é atribuído à espécie por participação. Esta afirmativa nos vem de Tomás de Aquino. Na verdade, Aristóteles sempre recusou admitir que a espécie participasse do gênero, pois só admitia
participação quando se desse a união de elementos distintos, o que o levava a recusar uma relação de participação entre o gênero e a espécie, pois, fundado numa participação apenas de composição, não se daria a unidade da substância, a qual seria, em tal caso, apenas uma composição de gênero e espécie.
      Este aspecto é de capital importância nos estudos teológicos, pois o homem não é concebido apenas como uma composição de animalidade e racionalidade. como se no homem se desse a conjunção de dois elementos, o animal e o racional. O racional já contém a animalidade, e a essência humana é considerada como uma unidade de simplicidade, e assim Tomás de Aquino empresta identidade substancial entre gênero e espécie.
      E como surgem aqui diversas dificuldades, Tomás de Aquino explica da seguinte maneira: «participar é, por assim dizer, receber uma parte. Quando um ser recebe de maneira particular o que pertence a outro de maneira universal, diz-se que dele participa. Assim diz-se que o homem participa do animal, porque ele não possui a razão de animal, segundo toda a sua generalidade. Pelo mesmo motivo, Sócrates participa do homem. Da mesma forma o sujeito participa do acidente; e a matéria, da forma; pois a forma substancial ou a forma acidental que, de per si, são comuns, encontram-se determinadas a tal ou a tal sujeito. Diz-se, finalmente, que o efeito participa de sua causa, sobretudo quando ele não iguala a virtude da causa. Dizemos, por ex., que o ar participa da luz do sol, porque não a recebe com todo o brilho que ela possui no sol»
      Temos aqui bem claramente exposto que Tomás de Aquino aceita a participação por similitude ou por hierarquia formal, não propriamente a de composição, que era aceita anteriormente por Boécio.
      Não se deve concluir que Tomás de Aquino aceitasse a composição na participação, mas aceitava-a como um dos seus elementos. Deste modo, a participação, para ele, teria dois elementos: a composição entre o sujeito, que ele participa e o de que ele participa.
      Assim a espécie participa do gênero, não, porém, em toda riqueza do gênero. As participações podem se dar de quatro modos diferentes:
      1) participação de um sujeito concreto a uma forma qualquer;
      2) participação entre os elementos de uma essência composta;
      3) participação entre termos abstratos, estranhos uns aos outros em seu conteúdo formal;
      4) participação entre termos abstratos, mais ou menos universais, compreendidos em uma mesma linha formal.

     Na simbólica das religiões, vemos que os símbolos são participantes das perfeições do Ser Supremo, segundo o seu modo de ser. Dai haver uma hierarquia de símbolos, que são superiores, à proporção que participem mais da perfeição atribuída ao ser supremo, que, nas religiões, é a divindade.

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