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Dicionário de Filosofia de                                Mario Ferreira dos Santos

Ato

   a) Segundo Aristóteles, o ato é o principio do agente, pois um agente o é tal, enquanto em ato. O ato, portanto, só se dá no que está. em ato; êste antecede ao que está. em potência. O que está em ato é necessário ao que está em potência, pois é aquêle o sustentáculo do que é potencial. Aquêle naturalmente move (realiza uma moção). Tudo quanto está em ato ou é uma forma subsistente ou tem sua forma em outro.
   b) Um enunciado psicológico dessa palavra diz que um ato é um movimento de um ser vivo, bastante rápido para ser percebido como tal (excluindo, p. ex. o crescimento) e dirigido a um fim, que pode ser desejado voluntàriamente pelo individuo (atos voluntários) ou não (atos reflexos, instintivos, automáticos). Mas, embora o ato não seja voluntário em sua causa, a aparência externa deve configurá-lo com analogia aos atos voluntários, para corresponder à concepção psicológica dêsse têrmo.

   c) Na Ética, chama-se ato um acontecimento que não se explica pelas meras leis fisicas naturais, mas que é causado por um ser susceptível de qualificação moral. Esse ato não precisa necessàriamente exteriorizar-se em um movimento perceptível; ao contrário, pode consistir exatamente em uma inibição de tal movimento, permanecendo o ato ético puramente intrínseco.
   d) No Direito, ato é considerado uma determinação voluntária, que tem um efeito, exterior. Também se fala em «ato de legislação (um estatuto), distinguindo-se: a) atos públicos, que visam regularizar um assunto de interêsse geral e que todos os sujeitos são obrigados a conhecer, e b) atos particulares, concernentes a interêsses particulares e a respeito dos quais não se impõe, geralmente, ao público oonhecê-los.
   e) Na Metafisica, ato figura como tradução do têrmo escolástico actus, que por sua vez é a tradução dos termos aristotélicos (enérgeia e entelékheia). Aristóteles chama ato ao resultado do advento ao ser da potência, dynamis, da matéria, mas enquanto vir-a-ser. A mesma relação entre o possível e o real e entre a matéria e a forma, é a relação existente entre potência e ato. Mas a matéria está em uma relação estática com a forma. Enquanto uma coisa está em potência não é ato; quando em ato, não é mais potência. O ato não é, no entanto, a realização da potência, mas o fim da potência que se realiza. A realização da potência é a passagem desta para o ato, o que Aristóteles chama moção. (Vide potência e ação). Como a ação é uma espécie de moção, participa da triplice modalidade de cada moção, que sempre pode ser considerada como: a) uma moção possivel (potencial), b) a moção no próprio processo de realizar-se, e c) a moção realizada ou a nova realização, criada por meio dessa moção. Aristóteles serve-se, em geral, do têrmo enérgeia. para significar a segunda modalidade, e de enteláquia (entelékheia), para a terceira. Enérgeia também aparece como sinônimo daquelas palavras que significam o elemento da forma que tem especial relação com a modalidade primeira.
   Essa última afirmação exige uma explicação: em que sentido um movimento possivel (ou um ao possivel) é relacionado com a forma? - Cada possibilidade reside em um ente já atualmente existente. Se em um ser há possibilidade de uma moção, então reside nele, já preformada, a forma dessa moção. porque as determinações ontológicas da própria natureza desse ente são também o fundamento formal da natureza daquela moção. Assim a moção ou ato de um artista ao confeccionar uma obra de arte é preformada na natureza do artista, que, abstraindo-se ainda da particular aptidão artística, tem, pelo menos, que ser uma natureza humana, já que a mesma moção ( atuação artistica) não se devia esperar de uma pedra, porque a natureza de pedra não é capaz de abrigar a forma em que consiste essa aptidão de criar obras artisticas. Dai resu!ta que a forma da moção se acha em intima conexão com a natureza do movido, de sorte que todo elemento formal da própria moção ou ato já se acha predeterminado pela natureza ou qualquer organização adicional (conhecimento) do movido. Por isso, tendo cada moção ou ato o seu elemento formal, preformado naquele ente, que é capaz de efetuar a respectiva moção, é comum aplicar-se o termo ato a um ato possivel.
    Há mais um elemento intermediário entre a mera possibilidade, potência de efetuar um ato, e a sua realização efetiva. Isto é o que Aristóteles chama de éxis (lat. habitus). O hábito é mais do que a mera possibilidade, porque ele já siginifica uma inclinação (não mera tendência) para certos atos e uma habilidade especila para efetuá-los.

    (Vide em Acidente predicamental: Qualidade)

   Assim a possibilidade de um ato artístico, da criação de uma obra de arte, reside em principio em cada homem, mas só o artista possui o hábito relativo a tal espécie de atos.

    O ponto de vista unificador, portanto, das três citadas modalidades de ato, aumentado ainda pelo conceito do "hábito", constitui o "elemento formal", a unidade de organização intrínseca, que faz aparecer a mera possibilidade e o hábito como um ato incipiente, que se realiza no próprio processo da moção, e que, sendo realizado, não termina ainda, mas continua como uma realização do próprio processo e como um resultado arquitetônico de todos os fatores que tomam parte nele.
   O estabelecimento dessa unidade entre as diversas modalidades do ato não tem qualquer carácter arbitrário ou forçado. Pois como o ato tende a um fim (enteléquia), o elemento formal unificador identifica-se com o próprio fim. A causa, que constitui o fim ao qual aspira a construção, contém em si mesma a construção.
   Tratando-se, porém, não como neste caso, de um fim exterior, mas de um ato, que é ele mesmo o seu próprio fim (distinção que faz Aristóteles para fazer jus a fenômenos como a visão ou o pensamento), vale, não obstante, a mesma identificação entre forma e fim, visto que o intelecto se confunde com o material informante inteligivel e o pensamento. O fim em si não é outra coisa senão a informação do intelecto.
   Na fenomenologia de Husserl, não são os atos "atividades psiquicas, mas vivências intencionais". Deve-se, portanto, excluir dele toda a idéia de aividade, com a qual o ato (Akt) distingue-se tanto da ação (Tat) como do atus no sentido clássico.
    ACTO ECONôMICO - A vida econômica é um conjunto de atos custosos, onerosos, empregados sobre o meio exterior, pelo homem, para manter a sua subsistência.
    A característica fundamental e simples do ato econômico é o esforço inteligente do homem para a obtenção dos meios exteriores, que possam permitir a manutenção da sua subsistência. Nesse aspecto particular, funda-se a economia. Essa onerosidade é invariante, enquanto as formas em que ela se apresenta na História, isto é, o seu conteúdo, são variantes.
    Para executar essa apreensão dos meios que lhe fornece o ambiente, esse esfôrço pesa, é penoso, portanto custoso, oneroso, porque lhe exige esforço. Atá aqui permanecemos dentro de atos econômicos de uma economia individual, de uma economia que se processa entre um indivíduo e o meio ambiente. Mas. sucede que o homem não é um animal isolado. Ele vive em sociedade. E essa sociedade, à proporção que se heterogeneíza, condiciona, ainda, uma complexidade nesse esforço, que tem seus graus de intensidade, como também trocas de bens entre os homens.
    Nota-se, assim, que os aspectos econôicos não são os únicos. mas alguns dos numerosos que compõem a vida humana, a ativídade do homem vivo na sociedade. Mas esses aspectos crescem de importância, impõem-se de tal maneira, que são naturalmente notados, salientados, embora nunca se dêem isolados, autônomos dos outros. Não são absolutamente autônomos; não há, desse modo, uma atividade econômica rigorosamente pura. São êles separados pela mente humana, separados pela análise de nosso espírito, que assim procede, porque é o meio indispensável para estudá-las racionalmente.
    No ato econômico, há ora uma troca entre o homem e o meio ambiente, ora entre diversos sêres humanos, mas essa troca não é a mesma que se dá, por exemplo, entre dois vasos comunicantes, ou «entre duas matérias que reagem quimicamente uma sôbre a outra». Esse esforço empregado é coordenado com atos psicológicos, pessoais ou adquiridos. Nele penetram disposições psicológicas individuais ou coletivas, e também o passado condensado na educação, na repetição, na instrução, etc. O trabalho, assim, não é apenas um acto físico, mas psicológico e cultural.
    Os economistas liberais e também os marxistas tratam o ato econômico como algo abstrato, como autônomo. Confundem as análises abstratas que dele se fizeram (quando o acto é tomado isoladamente pela mente humana), como se essa abstração se desse na realidade. Transformam essa autonomia puramente especulativa em uma autonomia real. Os marxistas, através desse abstratismo, acabam por distinguir uma super-estructura e uma infra-estructura, esta formada pelo conjunto dos fatos e relações econômicas, enquanto a super-estructura inclui todas as outras atividades já do espirito, culturais, como o Direito, a Politica, as crenças, a atividade religiosa. Estes procedem daqueles, são determinados por aqueles
    A colocação abstrata do fato econômico levou-os a uma unilateralidade prejudicial à compreensão da Economia, como a posição diametralmente contrária dos liberais não impediu que também estes aceitassem a autonomia do fato econômico. A atividade econômica é um aspecto das actividades humanas (do homem enquanto indivíduo, e não pessoa), mas coordenada a estas, formando com estas um todo, que nós separamos, para, sôbre elas, especular, estudar, analisar.
    Dissemos enquanto indivlduo o não pessoa, e esclarecemos: como indlviduo, o homem é um organismo, um conjunto de células, com uma vida psicológica. Como pessoa, é uma síntese da consciência psicológica, com seus valores culturais, de aspecto espiritual, etc. Os atos, que pratica como pessoa, ultrapassam o campo do econômico, são gratuitos. Quando dá, não pretende receber em troca um equivalente. Não se dirige a uma utilidade, porque não perde o que dá. A pessoa, enquanto tal, enriquece-se quando dá, enquanto, no terreno econômico, o que se dá, sai, é tirado do patrimônio. (Vide Ato Humano).
    ANALISE DO ACTO ECONôMICO - Se não houvesse raridade econômica nem limitações de bens e de tempo, não haveria nenhum custo, nenhuma onerosidade para a satisfação das necessidades humanas. Aproveitando um estudo de Ropke, economista moderno alemão, há em todo ato econômico uma luta contra uma raridade, contra uma insuficiência, um combate contra um deficit de meios (ein Nitteldeflzit).
    Essa luta pode revestir três formas:
    a) pelo emprego da violência ou da astúcia. Ex.: o roubo ou a guerra para submissão de outros povos;
    b) pelos actos desinteressados (desinteressados aqui é empregado em sentido econômico), corno os atos humanitários, de fraternidade, de caridade, etc.;
    c) pela troca de prestações contra prestações, os chamados atos da vida dos negócios.
    Essas três formas muitas vezes se combinam. Por exemplo, pode haver combinação da violência com a troca, como vemos na história do colonialismo, na ação da metrópole com a colônia. Aquela, sob a proteção das armas, tem uma posição privilegiada como parte contratante. O mesmo também pode dar-se no contato entre civilizados e povos primitivos, em que aqueles levam uma superioridade sobre os últimos, como nas trocas entre civilizados e tribos primitivas.

   No capitalismo atual, temos ainda os casos dos monopólios, os quais por sua posição privilegiada, têm uma situação preferecial. Nesses casos, não temos trocas puras, mas combinadas com pressão.

   Também podem dar-se combinações das trocas com móveis considerados desinteressados ou altruístas. Temos os exemplos nos médicos, que aliam uma obra social e altruistica (nos casos de vocação) e também nos sacerdotes, pioneiros quando vocacionais.

   Tais combinações são variáveis e tem graus correspondentes às estruturas em que se realizllJll, quanto à familia, à classe, à nação, etc.

   Encontramos nessas estructuras principios morais diferentes. Há freqüentemente mais solidariedade, mais cooperação numa família, menor numa classe, e muito menor, quase sempre, quando a estrutura é "nacional". Há uma moral em relação aos membros que as compõem, e outra a para os membros exteriores. Mesmo dentro dessas estruturas, segundo as componentes, há diferenciações, por ex., entre mulher e marido, entre mãe e filhos, entre pai e filhos, etc.

   São menores as restrições quando se trata com elementos de estruturas estranhas. Explorar um elemento de uma classe estranha ou de um pais estranho causa menos indignação do que quando se trata de elemento de uma comunidade, (estrutura que tem maior coerência). Tais fatos criam restrições às concepções de moral humanista, universalista. Estamos aqui apenas formulando juizos de existência, e não juizos de valor. Vemos o que é e não o que devera ser.
    A moral humanista dirige-se para um dever ser. Pode ela verificar o que é, mas deseja transcendeê-lo. Sentimos que aqui estejamos palmilhando um tema que é mais de Filosofia que de Economia, porque, para uma boa compreensão deste tópico, precisariamos expor nossa teoria das tensões estruturais, que nos mostram um pluralismo intenso e extenso da sociedade humana. As estruturas sociais (comunidades, grupos, famílias, etc.) formam tensões próprias, têm uma ética que lhes é imanente (dentro delas), que lhes é peculiar. As ações, que prejudiquem a terceiros, quando da mesma estrutura, são consideradas de um valor negativo maior, do que quando se trata de elementos estranhos à comunidade.
    Uma observação da História nos mostra que, no entanto, têm havido modificações na intensidade dessa moral interna. Nas épocas mais atrasadas, havia maior solidariedade e respeito interno, enquanto a violência era maior quanto aos elementos estranhos à estrutura. Da pilhagem primitiva chegamos ao mercado. Mas, em compensação, até o espirito comercial penetrou no âmbito da família. Houve, dessa forma, uma diminuição da tensão defensiva das estruturas, como também da agressividade entre elas, que foi substituida mais pela astúcia.
    Por isso se torna muito difícil precisar a relação das combinações entre os métodos que acima citamos,
    Analisemos a crítica dos socialistas.

    Para estes, o sistema capitalista é um sistema de violência. O empresário (cujo estudo fazemos na Empresa é imperialista, é expansista. Seu imperialismo se exerce contra os trabalhadores. A luta de classes se manifesta ai num combate constante. A troca é sempre prejudicial ao trabalhador, que dá mais do que recebe.
    O capitalista responde negando tais afirmativas e justificando a sua posição como classe, assegurando que sua função social é útil e necessária, que também presta serviços e fermenta, como 'ninguém, a criação de riquezas.
    Toda economia tende ao máximo de utilidade, à maior satisfação das necessidades.
    Esse é o móvel de toda a economia, de todo sistema, seja de economia fechada, artesanal, capitalista ou socialista.
    As disputas se travam, no entanto, em saber ou justificar como se dá essa satisfação; se essas utilidades são correspondentes aos esforços, se sua distribuição é justa, ou não.
    A visão e a análise de tais fatos estão condicionadas à perspectiva das diversas estruturas e variam segundo estas. O comerciante, que aumenta descabeladamente os preços das utilidades, vê com maus olhos quando adquire outras por preços elevados, que não constituem, naturalmente, bens da sua esfera de actividade.
    Estudemos agora os móveis que impulsionam o capitalismo.
    a) A busca de maior ganho monetário possível. Nas economias, como a fechada e a artesanal em parte, é a satisfação direta das necessidades que leva aos maiores esforços. Não os move o maior ganho, mas a maior satisfação das necessidades. Na economia capitalista, o ganho é expresso em moeda, por isso tende à maior soma de ganho em moeda. Os exemplos filantrópicos não negam essa lógica do capitalismo, que é predominante e avassalante quando do seu dominio como sistema.
    A moeda, de meio, transforma-se em fim. Tudo é calculado em moeda   O capitalismo desenvolve certos aspectos da economia e delimita claramente outros. Numa sociedade pré-capitalista, o camponês, por exemplo, não sabe, no fim do ano, o que ganhou ou perdeu de forma certa, segura. Com a moeda é permitido saber-se seguramente. Essa capacidade de medir, de saber quanto é certo e delimitadamente, estimula o capitalista ao lucro, pela possibilidade de aumentá-lo, porque revela como ele se dá e como foi alcançado, permitindo, assim, impulsioná-lo para que procure mais.
    Numa economia fechada, precapitalista, o trabalhador aspira apenas a satisfazer as suas necessidades. Satisfeitas estas, não julga que deva trabalhar mais. Por outro lado, as passagens de uma classe para outra são obstaculizadas.
    Na economia capitalista, a possibilidade de enriquecimento é pràticamente ilimitada, não havendo, em regra, restrições a esse aumento do patrimônio. O próprio ganho é estimulante, excitante para conseguir maior ganho.
    O ganho estabelece o poder, além de ser uma promessa de ganho futuro. Assim o operário que ganha, que tem reservas, vê a possibilidade de passar de sua classe para outra. São fatos como tais que permitem a confusão entre os meios e os fins. A moeda, que é um meio, torna-se, por isso, um fim, porque por meio da moeda, é possivel obter, serviços, bens, satisfações.
    O capitalismo, por seu espirito de medida, por sua necessidade de medir, é essencialmente racionalista e racionaliza, por isso a vida. A razão é a deusa do capitalista. Todo seu raciocinio é cálculo, medida.
    Convém anotar as relações entre o capitalismo e o liberalismo. Na verdade, o capitalismo exige certa «liberdade» de acão, contudo não se pode dai concluir que o capitalismo e o libel'alismo estejam fatalmente entrosados, como se fôssem equivalentes. Na verdade, o liberalismo permite o desenvolvimento do capitalismo, por afastar as barreiras e resistências ao seu desenvolvimento, mas o liberalismo, para surgir, implica, previamente, que já existam organizações capitalistas.
    É o mercado (a concorrência) essencial ao capitalismo. Essa concorrência, útil até certo período, gera também o monopólio que procura destruí-la, contorná-la.
    Não impede o capitalismo, com seu espirito de ganho in infinitum (ao infinito), que se dêem também atos gratuitos, filantrópicos, bem como manifestações de gratuidade, de paternalismo, da parte de elementos capitalistas.
    Revela-nos ainda o capitalismo que a produtividade não coincide sempre com a rentabllidade. O ganho não corresponde à utilidade e o maior ganho não coincide com o maior serviço. Basta que atentemos ao aumento de preços em consequência da retenção de certas mercadorias, que podem oferecer ganhos maiores.
    Uma anotação torna-se importante aqui. Discutem os economistas se a utilidade social não é apenas uma soma das utilidades individuais. Na verdade, a soma é sempre qualitativamente diferente das suas partes ou do conjunto das suas partes. Um muro não é apenas um conjunto de cal, pedra e areia. E se entrarmos no terreno do homem, no orgânico, onde predomina a ordem dinâmica da intensidade, o qualitativo apresenta maior heterogeneidade.
    O interesse coletivo e social não é apenas a soma dos interesses individuais.
    A coletividade forma uma estrutura diferente. O maior ganho possivel não é o melhor impulso para o desenvolvimento social. Temos muitos exemplos que provam plenamente o que afirmamos. Esses exemplos nos são ministrados pelas experiências cooperacionais e pelas criações de comunidades construídas sob base não capitalista. O fundamento econômico do capitalismo não é tão firme como julgavam e julgam os defensores deste sistema.
    Há, na Palestina, como em muitas outras partes, experiências tão eloqüentes, que anulam completamente as afirmativas fundadas nos grandes argumentos do capitalismo.
    No momento atual, quando o capitalismo enfrenta a sua transformação mais profunda e mais estrepitosa do que uma observação superficial poderia nos mostrar, muitos economistas, na sua maior parte saídos da classe capitalista, procuram, por todos os meios, justificar esse regime e querer mostrar que as suas possibilidades não estão esgotadas. Procuram ainda mostrar que o móvel do ganho, o espirito de competição de que está imbuido não realizou contudo, na hist6ria, todo o seu papel, e que ainda tem muito a realizar. Dá-nos a impressão que o capitalista é um ator que, no fim do espetáculo, depois de cair o pano, e o público se ter retirado, pensa que tem ainda uma cena a representar. Absolutamente não. Nem se julgue tampouco que o socialismo, como os socialistas o consideram, será um substituto do capitalismo, porque esse socialismo é o capitalismo da última etapa.
    O que está sendo gerado na sociedade atual, e que substituirá o capitalismo é outra forma que implica um uso geral cultural, em vias de formação e delineamento.
    Se examinamos a formação do sindicalismo, notamos que o proletariado se forma, aumenta, cresce, desenvolve-se ao lado do capitalismo. Existe, coexiste com este. Ao se dar a dissolução das comunidades, corporações, acorrem à cidade onde se tornam proletários. Vê o marxismo, na liquidação do capitalismo, na abolição do capitalismo, a redenção do proletariado. Tanto o liberalismo como o marxismo manifestam profunda aversão aos elementos sociais intermediários. Tanto o liberalismo como o marxismo são naturalistas e excluem toda transcendência, se olharmos do ponto de vista filosófico.
    A sociedade humana é regida pelas leis que, regem a natureza. Lembremo-nos da definição de Guesde: «O homem é o último termo da série animal» ou as concepções materialistas do marxismo. Tanto os liberalistas como os marxistas subordinam a pessoa humana à ordem natural econômico e inspiram-se no cientismo (sistematização do saber, fundada numa visão apenas científica do mundo).
    O objeto dirige o sujeito, o homem subordina-se às coisas. (Esta a nota mais importante do capitalismo que se dirige sempre para as coisas, objetivando, isto, é tornando objetivo até o que é subjectivo.)
    O liberal subordina o homem ao determinismo do mercado, o marxista ao determinismo da classe e da luta de classes. Ambos reivindicam para o indivíduo a maior soma de bem-estar e suas reivindicações de classe são condicionadas por esse desejo. Joseph Dietzgen proclamava: "Nós procuramos a liberdade, não na metafisica, não na liberação da alma da prisão do corpo, mas numa ampla satisfação de todas as nossas necessidades materiais e morais que, umas e outras, são corporais."
    Essa afirmativa também poderia ser feita por um capitalista.
    A idéia de liberdade é relativizada pelo socialismo autoritário. Os liberais, como os socialistas autoritários, querem uma igualdade social e econômica, pois os liberais afirmam que essa é conseguida progressivamente pelo desenvolvimento econômico, enquanto os socialistas autoritários, em sua maior parte, afirmam que essa só será obtida pela revolução violenta. Tanto uns como outros afirmam que essa liberdade só poderá ser obtida pelos que trabalham e não pelos que são ociosos. Tanto uns como outros reverenciam a industrialização e aceitam a filosofia do progresso. Todos sonham com a produtividade indefinidamente crescente, crêem na ciência não como ciência, mas devotamente como sacralidade, e anunciam a vinda do bem-estar social. Tanto uns como outros crêem na vinda de uma raça superior de homens novos, crêem na marcha retilínea da humanidade e não acreditam em retrocessos. A mesma obsessão do econômico e do maior proveito domina a ambos.
    Quanto à prática, o socialismo autoritário exibe em relação ao proletariado, a mesma submissão às dependências de que já estudamos ao tratar do trabalho, agravadas ainda pela presença do Estado todo-poderoso. O assalariado é sempre dependente técnica, jurídica, econômica e socialmente.
    Há no capitalismo alguns indicios que revelam certas modificações do seu espírito. Podemos citar os exemplos de grandes empresários capitalistas, que tinham mais um desejo de realização do que de ganho, isto é, que eram movidos mais pelo renome, pelas grandes conquistas, pelas vitórias, pela realização de obras que beneficiassem os povos em que viviam do que propriamente o enriquecimento.
    Tais exemplos não são tão raros como se pensa, pois é fácil ver-se uma grande quantidade de capitalistas que dão a totalidade de esforços em benefício do trabalho, não dispondo propriamente de horas para seu gozo e prazer. Tal não implica que a maioria dos empresários capitalistas procure apenas o ganho.
    Por outro lado, o capitalismo procura explorar, modernamente, certos sentimentos nacionalistas, impulsionar os homens à realizacão de obras em benefício social.
    Dentro do capitalismo, desenvolve-se hoje uma aspiração a uma sociedade de homens livres ou às comunidades em base de apoio-mútuo, que repelem totalmente as soluções simplistas de nacionalização e estatização, cujos resultados são mais desastrosos que benéficos.

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