Volta para a capa
Dicionário de Filosofia de Mario Ferreira dos Santos

 

MEMÓRIA

 

   Consciência e memória são inseparáveis, pois a consciência implica memória, e a memória, consciência. Ao tomarmos consciência de alguma coisa, perduramos nessa atividade. Há memorização no mesmo lapso de tempo, pois, do contrário, a consciência, se fosse fluente como o tempo, não se daria.

   O instante que passa é substituído por outro instante e não teria eu consciência, neste momento, de que estou escrevendo, se não fosse, do momento anterior, alguma coisa memorizada.

   Ademais, a consciência é uma faculdade elevada, que exige memorizações, pois ter consciência de algo exige atenção, a tensão ad, para..., portanto interesse, e conseqüentemente memória, recordação. Eis aqui por que Leibnitz definiu o inconsciente como uma consciência instantânea, uma consciência sem memória, por passar com a fluência do próprio tempo. Entretanto, o sentido da memória, como empregamos acima, é um sentido geral, um tanto vago. O que frequentemente se considera memória é a faculdade ou operação de poder renascer um estado que já atravessou a nossa consciência, que já desapareceu dela, e que é considerado como um elemento de nossa experiência passada. Há, na memória, consciência. pois memória não é apenas uma repetição, como, a que se dá com uma frase já pronunciada.

   Toda a vida é fundada, garantida na memória. Mas é uma memória espontânea, natural. A memória de que falamos é aquela em que há consciência, aquela que, ao recordar, sabe que recorda, sabe que tal fato se deu no passado, e que ele faz parte de sua experiência passada.

   É importante distinguir a memória da reminiscência. A reminiscência é uma recordação incompleta, uma recordação que não é reconstruída, da qual temos vagas lembranças. O tema da memória coloca quatro importantes problemas de que tratam os psicólogos. São eles:

   a) como se dá a conservação da memória;

   b) a evocação, a capacidade de poder trazer à consciência os factos passados, de recordá-los;

   c) o reconhecimento do que é recordado; e

   d) localização, quando os colocamos perfeitamente no tempo e no espaço.

   Conservação da recordação: Duas são as respostas clássicas à pergunta de como conservamos estados que desapareceram da consciência:

   1) a fisiológica ou materialista, que afirma que um estado, que atravessou a consciência e dela saiu, persiste em forma de modificação fisiológica, especialmente de modificação cerebral. As percepções são gravadas no sistema nervoso e nele permanecem conservadas.

   2) A outra resposta consiste em afirmar que o que atravessou a consciência, e dela saiu, permanece no que chamamos de inconsciente.

   A teoria fisiológica pretende ser a mais cientifica. O percebido, ou a recordação, fica gravada numa célula ou num grupo de células cerebrais. Há, assim, uma modificação em  alguns elementos anatômicos, que permanecem nesse estado, depois de passada pela consciência.

   Quando excitada a mesma região cerebral, o estado de consciência é reproduzido. Por essa teoria, a vida psicológica não passa de um reflexo da vida cerebral. Essa teoria tem sido poderosamente combatida.

   A evocação das recordações. Estabelecida a existência de duas espécies de memória a física e a intelectual, há, portanto, duas espécies de recordação. A recordação dos mesmos gestos, das mesmas atitudes, que foram apreendidas através da experiência, são da primeira memória, como os passos de quem dança, etc.

   Noutros casos, um estado psicológico retoma em consequência de outro estado com o qual se aliou. É o que se dá com a associação de idéias. A memória motriz funciona diferentemente da memória propriamente dita, a segunda. Quase sempre exige uma redução de movimentos, certa atenção para que ela se produza mais fàcilmente. Há uma certa contradição entre uma e outra. Tanto que, muitas vezes, temos dificuldade de descrever uma memória apenas motriz, mas sabemos como realizá-la, como quem dança teria dificuldade de descrever os passos, um após outro e, no entanto, ao dançar, sabe como realizá-los.

   Reconhecimento das recordações. Há um reconhecimento motor de que só é capaz o corpo. Mas esse reconhecimento é incompleto. Exige a recordação de imagens que nos permitem formar um saber de como podemos servir-nos dele. Esse segundo reconhecimento enriquece o primeiro.

A localização da recordação: A execução de um hábito motor não nos leva a um momento preciso do passado. A localização de uma recordação só se dá com a verdadeira memória.

   Taine e Ribot estudaram a localização das recordações no tempo, e a das percepções, no espaço. Assim, para nós apreciarmos a distância de um objeto longínquo, consideramos os objetos interpostos. Para localizá-lo no tempo, procuramos colocá-lo entre dois acontecimentos importantes da nossa vida passada, um anterior e outro posterior a ele. Depois se procede, procurando os acontecimentos interpostos entre os pontos de referência, até localizar a recordação. No entanto, não procedemos propriamente assim. O que se faz, frequentemente, é atentar para o fato recordado, e a penetração, que nele se faça, permite fixá-lo melhor, torná-lo mais nítido, completá-lo e, dai, localizá-lo.

   Toda a vida intelectual seria impossível sem a memória, logo a memorização é uma função fundamental do espírito.

  O notar o diferente ou o semelhante implica a memória, como implica a memória a consciência. E é a memorização que vai permitir ao homem a formação do conceito e da noção do que é tem­po. Assim espírito é também memória.

   Ter consciência de algum fato é demorar-se sobre ele. Por rápida que seja a consciência de alguma coisa, ela é um fixar alguma coisa, é um memorizar. Esse fixar-se do espírito é a memória, em sua fase embrionária, primitiva. O repetir, o comparar, o deter-se mais longamente sobre o fato passado é a função da memorização.

   Já vimos que a função seletiva da vida tem um caráter de oposição, de aproveitamento disto e de repulsa daquilo, e funciona pela comparação instintiva, pela escolha.

   O espírito repete, num plano mais elevado, a própria vida. Ele seleciona, ele repete, ele procura no diferente separar o mesmo, o parecido, o semelhante, em suma: memoriza. E essa função cabe à tensão psíquica (alma, espírito, etc., mas essa tensão aumenta, cresce de intensidade, demora-se (por isso é intensiva), sobre o que é semelhante, o mesmo. Não haveria vida sem memória.

   No caso das afasias, a perda da memória é progressiva: primeiro perdem-se os nomes próprios, isto é, o do indivíduo, o único; depois os nomes comuns, o geral, o universal, posteriormente os verbos, o que indica a ação ativa ou passiva, o tempo, porque toda ação é um processar-se no tempo. Vemos, assim, que o que indicamos acima é corroborado pela patologia. É a memorização que vai dar a noção do tempo.

   Mas o ser vivo, antes de pensar, age ou padece (verbo), depois compara, identifica, denomina, conceitua (nomes comuns). A individualização como pessoa (nomes próprios) é já de uma fase mais elevada, social.

   Quando a memória está enferma, o processo de perda segue o mesmo cuminho da reversibilidade; inverte-se. A tensão nervosa é contemporânea do corpo, do sistema nervoso. Atua com ele. Quando este está enfermo, ela sofre, porque ele é o meio que ela utiliza.

  O enfraquecimento das suas funções traz o enfraquecimento das funções mais altas e mais complexas, até as mais simples. Assim a razão, em sua fase mais alta, vai perdendo, no campo da afasia, a pouco e pouco, as suas funções mais altas até as mais simples.

   Ter consciência de um fato é demorar-se sobre aquele, é fixar­se. A consciência implica a memória em sua fase elementar; memória, como fixação dos caracteres do percebido. Vimos a divisão de Bergson entre as duas memórias: a física e a intelectual. A memorização intelectual pertence a uma fase posterior do ser vivo, à fase da razão.

   No ato de memorização intelectual há um conflito, e a memória intelectual é esse conflito que penetra na consciência, pois nesse ato, há um duplo movimento de irreversibilidade e de reversibilidade. A consciência, para reconhecer que há memória intelectual, necessita ter o sentido do presente e o sentido do pas­sado; tem de distinguir o estado mnemônico do estado que não o é. Assim o passado reverte ao presente irreversível, pois, quando memorizamos algum fato ou idéia ou imagem, sentimo-nos como permanentes, como persistentes, como espectadores estáticos do que trazemos do passado. Assim conflue uma reversão do passado para o presente estático, subjetivamente estático. Vimos que em toda a vida há memorização no primeiro sentido de Bergson, do contrário ela seria impossivel.

   A memória pode ser considerada:

   a) em sentido amplo - como persistência do passado no presente;

   b) em sentido restrito – memória do homem, como representante do passado como passado.

   A primeira memória pertencente ao homem, como a do pianista, mas também aos seres vivos, como as chamadas memórias-hábitos dos animais e das flores, como a do cão caçador, que se alegra ao ver o dono vestido para a caça. A segunda é a representação dos fatos passados.

   A memória pode ser:

  a) muscular comumente chamada hábito: a que nos parece localizada, por exemplo, nas pernas, braços;

   b) a sensorial - as visuais das cores, formas, sons, etc.;

   c) a intelectual - relações de causalidade, etc.;

   d) a afetiva - memória do temperamento, de certas emoções.

Esta última é aceita por uns e negadas por outros. Quando recordamos certos fatos revivemos a agradabilidade ou a desagradabilidade que eles nos provocaram, embora revivamos mas facilmente as desagradabilidades.

Esta última é aceita por uns! e negada por outros. Quando recordamos certos factos, revivemos a agradabilidade ou a desagradabilidade que êIes nos provocaram, embora revivamos mais fàcilmente as desagradabilidade que as agradabilidades.

    Fixam-se as memorizações:

a) pela repetição: 1) metódica; 2) voluntária; 3) intercalada com repousos;

   b) pelo interesse: 1) intelectual; 2) coletivo.

   A recordação pode ser:

   a) espontânea;

   b) refletida.

   O esquecimento (o fato não recordado ou que não pode ser recordado) pode ser:

   a) voluntário;

   b) espontâneo.

  O esquecimento constrói a boa memória, pois esquecemos para fortalecer a memorização. Virtualizamos o que nos desinteressa para atualizar o que nos interessa.

   Casos patológicos:

    a) amnésia - dificuldade externa de recordar;

   b) paramnésia - ilusão da memória, que consiste em crer reconhecer no último pormenor, com todas as circunstâncias de lugar, de tempo, de estado afetivo e intelectual, o conteúdo total e atual da consciência num momento dado, como se se vivesse integralmente um instante já vivido. (Lalande, "Vocabulaire");

   c) hipermnésia - evocação de fatos considerados já esquecidos, comum de observar-se em estados de febre, ou em momentos de perigo de vida;

  d) a obsessão - caso de hipermnésia, que consiste na "presença, no espírito, de uma representação, de uma associação de idéias, ou de uma preocupação que aparece sem cessar, à qual vêm reunir-se todas as associações, e que a vontade não consegue afastar senão momentanea­mente" (Lalande, "Vocabulaire").

__________________

 

                          

- Link1
- Link2
- Link3