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Dicionário de Filosofia de                                  Mario Ferreira dos Santos

MAL

 

     Vide Bem. O conceito de Bem, para os escolásticos, expressa tudo aquilo que tem ou pode ter caráter de apetecível, e todo ser é apetecivel, pelo menos para o seu sujeito. Mal é um conceito oposto, e em geral se entende tudo quanto se opõe, contraria os desejos e exigências ou necessidades dos seres e que, no homem, origina o sofrimento e a dor.

     Podemos colocar o bem e o mal no sujeito, desde que o universalizemos, no sentido de todos os entes, e temos:

     1) o Bem e o Mal no sujeito;

     2) o Bem e o Mal para o sujeito (isto é, como o sujeito apetece ou não; como o considera);  

     3) como os outros entes o consideram em suas relações.

     Toda existência tem uma intencionalidade, pois todo ente, como parte e como todo, tende para algo, um fim. É nessa intencionalidade de todo o existir que nos é revelada pela moção do devir. Há em toda espécie de moção os três termos: a quo, quod e ad quem, ponto de partida, o que se move e o ponto de chegada. Quod, o que se move, é um bem enquanto ser, pois, como se vê na Ontologia, ser e bem se conver­tem. Mas como se move numa via, essa via é composta das coordenadas, que constituem, com ele, a realidade do móvel. E para ele (quod), as coordenadas da via podem permitir a plena realização do fim a que tende ou não. E ser-lhe-á um bem o que favorece a realização plena; e um mal, o que a obstaculiza.

    Na «Axiologia», estudam-se esses três aspectos, que são importantes na construção da teoria dos valores, mas suficientes, no nosso caso, para julgar-se o problema do bem e do mal, que é, na Teologia, ponto de tanta con­trovérsia e de indiscutíveis dificuldades.

     Muitos consideram que o mal consiste no fato de um ser não realizar o fim para o qual tende. Nesse caso, o mal seria pertencente ao mundo da ação; o mal se revelaria no  acional, ao mal estaria sujeito quem realiza um fim.

     Fundado nessa concepção é que Leibnitz nos fala do mal metafísico, o mal de toda existência.

     «Podemos considerar o mal metafísica, fisica e moralmente. o mal metafísico consíste na imperfeição; o mal físico no sofrimento, e o mal moral no peca­do.» (Leibnitz, «Theodicée, § 21).

     O mal metafísico, decorreria da imperfeição, da ausência de uma perfeição.

    Os escolásticos chamam de negatio perfectionis debitae, privação da perfeição  devida, aquela de que um ser é privado, quando ela faz parte da sua natureza, como a visão no homem, as asas nos pássaros. Não tê-las é um mal. Mas um homem não ter asas ou uma pedra não ter visão, não são privações da natureza desses entes. Mas Leibnitz considera que se o homem tivesse asas, por exemplo, ou sentidos para perceber outras vibrações da natureza, seria mais perfeito do que é. Nes­te caso, há uma privação, e há um mal, e este é precisamente o que ele considera de mal metafísico. Neste caso, todas as criaturas sofrem do mal metafísico.

    Mas o mal físico, que consiste na dor, pertence aos seres vivos, em graus diferentes. Este mal só se dá quando sofremos.

   O mal moral consíste na pri­vação de um bem moral que de­veriamos atingir, como se dá no pecado.

     Os escolásticos consideram como as principais divisões do mal as seguintes: a) mal em si, ou absoluto, e mal para outro, ou re­lativo; b) mal físico e mal moral; c) mal de culpa  e mal de pena.

    O mal absoluto é uma privação que não é boa em nenhum aspecto, para nenhum sujeito; mal relativo é uma entidade, que leva consigo a privação de algum bem, ou é um  mal para algum sujeito, distinto daquele no qual se acha. Tomás de Aquino exemplifica com o ser coxo, que consiste em ter uma das pernas mais comprida que a outra. :m uma en­tidade positiva, e, como tal, boa, mas que priva a devida proporção. Assim a agilidade e voracídade do lobo são boas para ele, mas más para a ovelha. O mal físico é a privação de qualquer bem nos seres que carecem de razão ou no homem, considerado independentemente de suas rela­ções de ordem moral. O mal moral é uma desviação ou falta de ordem, devido à vontade livre, e em sua ação correspondente a respeito das normas de ordem moral. Mal de culpa é a transgressão de uma lei que a criatura comete, com advertência e liberdade. O mal de pena é o mal inflingido à criatura como castigo pelo mal de culpa.

    Ante o espetáculo do mundo, os homens ou atualizam exageradamente a presença do mal ou a presença do bem, o que fundamenta as atitudes dos pessimistas e as dos otimistas.

     Há um pessimismo sentimental e poético, que encontramos na literatura, por exemplo, em Vigny, em Leopardi, em Machado, ete., e um pessimismo filosófico, muito  comum na Filosofia, como a de Epicuro, Schopenhauer, Hartmann, e modernamente nos filósofos chamados existencialistas.

     O otimismo opõe-se ao pessimismo e chega à afirmação de que o mundo é o mais perfeito possível. Mas, em sentido mais freqüente, é otimista a posição que afirma a predominância do bem sobre o mal, no mundo.

     O mal na Teologia - É neste plano que nos interessa agora o problema do mal.

     O mal foi sempre esgrimido como o grande argumento contra a divindade.

     Ou Deus quer suprimir os males e não o pode, ou o quer e pode; se quer e não o pode, seria impotente, o que repugna a Deus; se pode e não o quer, é que nos odeia, o que  também é contrário a Deus; se não pode nem o quer, nem tem forças nem amor, não é portanto Deus; se quer e pode, é a única solução que lhe convém de onde vêm os males e por que não os suprime? ( Cícero).

     Analisemos as diversas respos­tas a esse argumento.

     A resposta mais geral que se oferece é que o mal não é uma coisa ou um ser criado por Deus, para o qual tendessem os homens. O mal seria a ausência de um bem maior, e  quando o homem deseja o mal, o faz em busca de um bem de qualidade menor, desprezando um bem superior que ele deveria preferir.

     Dionisio Areopagita, por influência platônica, dizia que é em vista do bem que se realiza toda a ação, quer boa ou quer opondo-se ao bem, pois estas mesmas realizamos por  amor ao bem, pois ninguém efetua nenhuma operação com os olhos voltados para o mal. O mal não nasce de uma tendência dirigida para ele mesmo, mas de uma tendência dirigida para o bem.

     Vejamos agora a resposta de Leibnitz. O mal metafísico não é um verdadeiro mal, mas apenas quando de uma comparação com a perfeição, sentimos o que nos falta ou o que  seria melhor se tivéssemos.

     Leibnitz percebeu que todo o ser ôntico tem um ímpeto para a perfeição, por isso sentimos que tudo quanto não temos, se o tivéssemos, seriamos mais e melhores. É tal  perspectiva que leva à construção da idéia do mal metafísico.

     O mal físico surge das desordens físicas. Não é um mal absoluto, pois pode ser um meio para alcançar um bem maior. A dor é útil, como já nos mostrava Nietzsche, e a incapacidade de sofrer é muitas vezes um mal maior. Um mal físico surge de nossa finitude. Mas o que causa maior escândalo é a injustiça na retribuição, pois encontramos muitas vezes o crime triunfante e a virtude oprimida, o bem desprezado e o mal exaltado.

     Mas tais injustiças são da natureza do homem e não da de Deus. É o homem que se afasta do bem, e sofrerá as conseqüências, embora não sejam fàcilmente percebidas por todos. As religiões sabem e afirmam que a virtude não encontra infalivelmente na terra a sua recompensa, nem o vício o seu castigo.

    É a falta de uma justiça re­tributiva nesta vida que leva os teólogos a especularem sobre uma outra vida, onde se dê tal retribuição. Quanto ao mal moral, cabe ao homem, pela sua liberdade, pois ele tem a possibilidade de fazer o bem e o mal. Mas há quem pergunte: por que deu Deus liberdade ao homem? Por que não o fez um autômato, evitando assim o mal moral?

    A liberdade do homem não é um mal, mas um bem; o mal es­tá no uso desta liberdade para fins afastados do bem superior. O que não se pode deixar de considerar é que toda e qualquer posição, que negue a possibilidade de uma retribuição extra-terrena, coloca o homem em situação de máxima perplexidade, que só o pode levar do pessimismo ao desespero.

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