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Ensaio biográfico

 

Valêncio Xavier e

a Cultura Paranaense



         Conheci o Valêncio em 1973. Morava em São Paulo e li uma nota no Jornal da Tarde. Estava programada uma segunda edição da Expoesia, criada pelo professor da UERJ, o poeta Affonso Romano de Sant'Anna na PUC do Rio de Janeiro em 1973. A segunda versão seria em Curitiba, naquele ano, patrocinado pela Fundação Cultural de Curitiba e coordenada por Valêncio Xavier. Na época formávamos um grupo de artistas de várias áreas. Nosso ponto de encontro nas manhãs de domingo era a Praça da República – onde artistas plásticos expunham suas obras. Naqueles anos 70 divulgávamos nossos poemas em varais improvisados. Havia o Miltinho, que arranhava o violão, o Richard Kohout, fotógrafo, o Manoel Frota com suas histórias em quadrinhos – uma delas tinha um índio que trafegava pelos quadrinhos em sua nave espacial. E também o jovem Aparecido Mazagão, que gostava de música clássica e ensaiava seus passos de dança. Mesmo naqueles anos de autoritarismo, sob a sombra do Ato Institucional n° 5, fazíamos na praça nossas manifestações. Declamávamos poemas de cima de uma caixa de madeira enquanto outros amigos se expressavam, cada um à sua maneira. Falei com eles da Expoesia 2, de Curitiba. Resolvemos participar de uma forma diferente. Juntamos a fotografia de Richard, projetada em slides, a dança do Mazagão aos acordes das Quatro Estações, de Vivaldi e a declamação do poema Formas – no clima lisérgico da época e apresentado pela segunda vez no Centro de Criatividade de Curitiba Participei também com outros poemas visuais – um deles Fotopsicotrópicos exposto num quadro onde inseri imagens entre os versos – incluindo um visor monóculo onde o leitor, ao olhar através dele, deparava com uma criança famélica da guerra em Biafra.
         O Valêncio nos recebeu em sua casa, onde ficamos hospedados dois dias – pois o dinheiro era curto. Sua esposa, Luci, além de cuidar de seu bebê, Ana Cristina e seu menino Carlos, preparava lanches para os artistas novatos advindos da paulicéia.
        Desde então fiquei amigo da família. Dois anos depois a hospitalidade do Valêncio abria suas portas com sorriso franco. Eu trabalhava no departamento editorial da Alcântara Machado Empreendimentos, em São Paulo, e fui demitido. Aproveitei o dinheiro para publicar meu primeiro livro de poemas – onde havia muitos versos e pouca poesia, confesso.

        Quem conviveu com o Valêncio poderá traçar seu perfil humano e generoso. Não amava apenas a cultura, também acolhia seus amigos com espontaneidade. Foi na sua casa que tive a oportunidade de conhecer artistas como Túlio de Lemos, já idoso. Ele era ator de teatro, cantor de ópera e produtor de TV, que fez sucesso em São Paulo, nos anos sessenta; o genial Poty Lazarotto e o artista plástico Rones Dumke, entre outros.
         Valêncio viveu na França nos primeiros anos da juventude, onde trabalhou como fotógrafo de uma galeria de arte. Foi também auxiliar do famoso Marcel Duchamp (1887-1968), iconoclasta que ficou célebre ao expor um vaso sanitário como arte (o qual Valêncio garantiu que utilizou segundo sua primitiva utilidade); uma roda de bicicleta acoplada a uma escada – além de botar um bigodinho e barbicha em Mona Lisa.
         Nasceu em São Paulo em 1933, filho do topógrafo russo Timóteo Niculitcheff, e chegou a Curitiba em 1954. Seu pai era um refugiado da revolução de 1917 que implantou o bolchevismo na Rússia. Sua mãe, Maria Xavier, faleceu quando tinha apenas 13 anos de idade – fato que marcou profundamente seu destino. Sua criatividade logo impactou a então provinciana Curitiba – e nunca foi difícil para ele atrair artistas de várias expressões da cultura – tanto da capital paranaense como de outros rincões. Creio que sua genialidade começou com traços de desenho, mas seus interesses não conheciam limites – atraído pela história, jornalismo, televisão, teatro, cinema. Sua arte não se manifestava apenas de forma criativa, contemplativamente – buscava também a verdade, amava a justiça e tinha sede em conhecer mais profundamente a alm a humana em seus labirintos e comportamentos. Tinha estatura mediana, olhos de um azul intenso emoldurados por espessas sobrancelhas. Seus cabelos foram embranquecendo como a flor da amendoeira, com o passar dos anos.
         Sua primeira publicação literária foi em 1973 com Desembrulhando as Balas Zequinha – um personagem camaleônico que era estampado nas mais diversas situações e profissões nos papéis das balas, e era a alegria de gerações de crianças paranaenses.
         Em 1975 publicou Curitiba de todos nós - memória, com ilustrações de seu amigo Napoleon Potyguara Lazzaroto, o “Poty” – cuja obra pode ser admirada nos painéis gigantes em ruas e praças de Curitiba. Foi reconhecido nacionalmente com a publicação do livro O Mez da Grippe, de 1981, com o qual ganhou o cobiçado Prêmio Jabuti de Literatura. Valencio ousou e inovou com esse romance que pode ser lido nas entrelinhas, nas imagens e recortes de jornais e revistas que noticiavam sobre a febre amarela, no Paraná.
         Sua obra foi motivo da tese de mestrado de Maria Salete Borba (2005), que escreveu: “Em Valêncio Xavier é a montagem que convida o leitor a aliar imagens e tipos gráficos no momento da leitura. Percebemos que Valêncio se espelhou em poetas, escritores e artistas que se preocuparam com a visualidade da página, e, dos símbolos da escrita para falar, através de um clima de provocação, de acontecimentos que envolvem história, sociedade, arte e literatura”
        Também foi autor da biografia de seu amigo Napoleon Potyguara
Lazzaroto: Poty – Trilhas, Trilhos e Traços, editado em 1994 pela Fundação Cultural de Curitiba.
        Valêncio também fez parte dos primórdios da televisão paranaense: A inauguração da TV Paraná, em 1960, teve como destaque o documentário Nós, o Paraná – História de um Povo produzido e dirigido por Valêncio Xavier. O filme, mudo e branco e preto, mostrava imagens de ruas, estradas, fazendas e outras cenas garimpadas em museus, bibliotecas e de colecionadores. O texto foi escrito por Luiz Geraldo Massa e Aderbal Fortes de Sá Jr, com imagens do fotógrafo Salomão Scliar. Anos depois participou também da inauguração da TV Coroados de Londrina, como diretor, autor e ator na peça Num Quarto de Hotel Longe de Casa, quando contracenou com Lala Schneider, Glauco Sá Brito, Florisval Gomes e Rosana França.
         Ainda em 1975, como funcionário da Fundação Cultural de Curitiba,
idealizou e criou a Cinemateca do Museu Guido Viaro – com a colaboração de Francisco Alves dos Santos, ex-seminarista e um de seus aprendizes.
         Foi com essas palavras que anunciou ao público a inauguração da sonhada cinemateca: “FAN DO BOM CINEMA! Temos uma notícia que vai lhe agradar: no dia 23.04 a Fundação Cultural de Curitiba inaugura a Cinemateca do Museu Guido Viaro, na rua São Francisco, 319”: Seu gosto pela cinema abarcava vários temas, desde que houvesse arte e inovação: Orson Welles, Allan Resnais, Peter Bogadonovitch, Osvaldo Caldeira, etc. A programação da cinemateca contava também com produções paranaenses, como Lance Maior, de Silvio Back, Os índios Xetas da Serra dos Dourados, do Prof° Loureiro Fernandes, etc. Fez um documentário posteriormente adaptado pelo Globo Repórter: “Cacique Kretã” – líder de uma tribo Caingang assassinado por pistoleiros a mando de grileiros de terras.
         Foi nesse período que viabilizou a restauração de importantes filmes
históricos paranaenses, como Despedida do 19° Batalhão (1910), de Paschoal Segretto; Pátria Redimida (1930), de João Batista Groff e Panorama de Curitiba (1909), de Annibal Requião. Interessou-se também pelo cinema de animação e chegou a dar um curso de iniciação a alunos de escolas públicas, para que fizessem seus próprios curtas de desenhos animados.
         Foi colaborador do cineasta Silvio Tendler no filme Jango; no Revolução de 30, de Sylvio Back; Entrando no Século XX, de Fernando Severo e Ulisses Cidadão, de Eduardo Escorel.
         Sua filmografia, além dos citados, compreende também: “O Mate, de 1963; A Visita do Velho Senhor, 1975, com direção de Ozualdo Candeias; O Monge da Lapa, de 1979; Caro Signore Felini, de 1980; O Corvo, baseado no poema de Edgar Allan Poe, em 1982. Sua direção mais arrojada, creio eu, foi O Pão Negro – Um episódio da Colônia Cecília – tendo como tema uma colônia de italianos anarquistas, no Município de Palmeira-PR. Esse filme ganhou o Prêmio Paraná, em 1993. Outra obra significativa é Os 11 de Curitiba, todos nós, de 1995 – que registra fatos e personagens perseguidos pelo regime militar, no Paraná. Apaixonado pela arte cinematográfica ministrou um curso prático de Roteiro para Cinema e Vídeo, em 1994 e um Workshop sobre a História do Cinema. Durante anos foi colaborador do Caderno G, do jornal Gazeta do Povo – ao ficou vinculado até mesmo em sua enfermidade, em 2003. Nesse espaço ele comentou cem obras por ocasião do centenário da história do cinema.
         Valêncio Xavier, personalidade inquieta e instigante, se definia como
anarquista.Sua vasta biblioteca abrigava parte do chamado canone ocidental, que colecionava à partir do interesse imediato ao assunto sobre o qual se debruçava, seja para escrever, filmar ou pesquisar. Hospedado no quarto, ao lado da mesma, tive oportunidade de ler obras de Jorge Luiz Borges, James Joyce, Michel Foucault, entre outros. Porém o espaço era vasto para obras de cinema, revistas especializadas da sétima arte, artes plásticas, além de vários livros importantes da História do Paraná e do Brasil. Sua coleção VHS de filmes significativos – marcos da história do cinema – passava de quinhentos. Grande parte deles, hoje, perdidos para o bolor. Seu projeto de transformá-los em DVDs foi apenas começado pois o custo era caro.
         Sua saúde foi sendo minada por um eczema cerebral que desencadeou o Alzheimer, à partir de 2003. Valêncio Xavier faleceu em 5 de dezembro de 2008. Suas cinzas navegaram num rio que amava, após meses do coma induzido. Sua memória, por certo, ficará nos recantos afetivos de familiares e amigos que desfrutaram de sua amizade, seu labor e sua paixão pela vida – mesmo quando percorrida nos meandros, desencontros, amores, perversões, desejos e obscuros caminhos de alguns de seus personagens.
         Luci, sua esposa, conheceu Valêncio, através do irmão médico, quando vivia em Mandaguaçú. Ele visitava o irmão e paquerava a jovem, treze anos mais jovem. A família, a principio, rejeitou o namoro. Porém foi logo cativada por ele. Não demorou muito teve festa de casamento! Sob a luz do dia 22 de Janeiro de 1966 os dois se uniram. Viveram intensamente o matrimonio, até a morte.
         Conta Luci:
         - “O Valêncio era legal, muito hospitaleiro, bom de coração. Nossa casa era um abrigo para amigos que estavam de passagem, ou em dificuldade. Lembro que um deles havia se separado da mulher e estava bebendo muito. Ficava dormindo num banco, junto da cinemateca. Ele não teve dúvidas: levou-o para casa onde ficou até achar novo rumo prá sua vida”.
         Com relação a vida familiar Luci afirma que ele era muito liberal com
os filhos, Carlos e Ana. Não exigia que fossem igual a ele, dizia para eles
buscarem seu caminho para se realizarem como seres humanos. Atualmente Carlos, administrador de empresas, vive em São Paulo. Nos fins de semana, dedica-se a ação social e evangelização cristã de presidiários. Ana Cristina, sua filha caçula, é engenheira de alimentos e trabalha numa grande empresa do ramo e tem uma filha, Laila, de quatro anos de idade.
         Luci traça o perfil afetivo de seu companheiro, através de quarenta e dois anos de união:
          - “O Valêncio sempre foi amoroso, carinhoso conosco. A felicidade dele era ver a casa cheia de gente, especialmente no Natal e Ano Novo. Como perdeu a mãe muito cedo ele enfrentou certa dificuldade com o pai, em seu novo casamento, porém sempre foi muito amigo de seus irmãos, o Gregori, mais velho e Ronald, irmão por parte do pai”.

         Luci fez questão de lembrar, com gratidão, a atitude de Ana Amélia, diretora-proprietária do jornal Gazeta do Povo, onde Valêncio trabalhou: “Ela continuou depositando o ordenado do esposo, mesmo durante toda a sua enfermidade”.

        Podemos dizer que o Valêncio fez vários discípulos, entre eles o cineasta Fernando Severo, hoje diretor do Museu da Imagem e do Som; Francisco Alves dos Santos, ex-diretor da Cinemateca, Pedro Merege e Beto Carminatti, também cineastas. Interagiu com o poeta Décio Pignatari, um de seus hóspedes, e também com Jean Claude Bernardet, cineasta francês que o admirava.
         Visitei periodicamente meu amigo Valêncio, especialmente no período de sua enfermidade. Ele não era religioso, afirmava ser ateu – porém quando convidava-o para orar, juntamente com sua esposa, ele inclinava sua cabeça, participativamente. Várias vezes caminhamos por entre as quadras vizinhas de sua casa. Ele conseguia capturar lampejos da própria memória quando abria um livro, observava fotografias ou uma obra de arte na parede de sua sala. Certa vez emocionou-se até as lágrimas ao ouvir uma canção – lembrando sua juventude na França. Parece que o Alzheimer levou-o a uma jornada retrospectiva à própria alma. Muitos de seus companheiros intelectuais não tiveram oportunidade de partilhar desse tempo de tristezas e angústias impostos pela moléstia.
         Numa dessas caminhadas ele entrou numa revistaria e admirava, com resgatada inocência, algumas das paixões de sua vida: gravuras e imagens impressas – mesmo que fossem os antigos personagens das histórias em quadrinhos que amava, quando criança.
         Valêncio foi uma pessoa modesta e honesta, uma nobre alma cuja contribuição poderá ser melhor avaliada, não apenas do ponto de vista da cultura, mas também quanto a rica humanidade que expressou na arte e na vida.

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José Julio de Azevedo

Créditos:
1. Luci Niculitcheff – Entrevista ao autor do artigo;
2. Ana Cristina Niculitcheff – Foto do Valêncio Xavier, seu pai.
3. José Julio de Azevedo – Foto da família, anos 80.
4. Maria Salete Borba – Monografia: “Para Além da Escritura – A
montagem em Valêncio Xavier”. Florianópolis-SC, 2005;
5. Acervo da Casa da Memória – Foto de Valêncio Xavier, então
diretor da Cinemateca;
6. Hugo Moura Tavares: “Cinemateca de Curitiba, 30 anos” - Boletim
da Casa Romário Martins, Curitiba, 2005;
7. Jornal Gazeta do Povo – Curitiba-PR.
8. Cristiane Carminati – Foto do Valêncio (Filmagens de “O Pão
Negro”).
9. José Julio de Azevedo – Filme “Captura de memória” com Luci e
Valêncio Xavier, 2007 – Curitiba-PR.

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