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Reflexão

 

Gramática normativa: preconceito linguístico?

Marcelo Moraes Caetano

                     

      Pessoas que alardeiam que a Gramática "oprime" a  expressão do povo  usam   a Gramática muito bem ao se expressarem. Seria um paradoxo? Seria esta sim uma forma de preconceito e de segregação social? Ter e saber aquilo que negam às outras pessoas?                                              

                          (Abertura da minha palestra na UERJ, dezembro de 2008)

     De quando em vez se acende um debate - que aliás está bastante obsoleto - sobre a suposta "opressão" que o ensino da gramática geraria nos falantes de uma determinada língua. Evanildo Bechara tem obra lapidar a esse respeito, num opúsculo que é uma joia rara: "Ensino da Gramática: Opressão? Liberdade?"
      Ora, em muitas premissas erram os que fazem a apologia do ilusório e falacioso "cerceamento" que a Gramática impingiria aos "falantes nativos" (aliás um termo também extremamente discutível esse de "natividade linguística"). O primeiro erro crasso é confundir-se a língua FALADA, que não pertence, por natureza inicial, ao domínio da Gramática Normativa (uma vez que a FALA apresenta diversidade não passível de ser sistematizada), com a língua ESCRITA, que é o elemento unificador de qualquer idioma. A língua, nas palavras célebres de Fernando Tarallo e Eugenio Coseriu, constitui-se da diversidade dentro da unidade. Quando linguistas (pseudo) alardeiam que não se deve "usar" a Gramática para "julgar" como "certas" ou "erradas" as maneiras de FALAR de um povo, talvez não tenham sido avisados de que, de fato, não é este o papel da Gramática, que jamais se preocuparia em dizer, por exemplo, que a fala de um baile funk é "errada" ou "pior" que a fala de um usuário da língua numa soirée de gala no Teatro Municipal ou numa conferência na Academia Brasileira de Letras. Devo lembrar o velho ditado latino: "Verba volant, scripta manent: Palavras faladas voam, palavras escritas permanecem".
      De há muito, os conceitos de "certo" e "errado", na pseudolinguística, só são usados, realmente, pelos próprios supostos defensores da "democracia linguística irrestrita", que, esses sim, acabam deflagrando um preconceito violento, uma vez que não sabem lidar com os conceitos de maneira científica e razoável, promovendo, por serem equivocados até quanto às terminologias, equívocos crescentes e altamente falaciosos e sofísticos. Nenhum gramático VERDADEIRO diria: "Você está certo ou errado" - mas no máximo, "Isso está em desacordo com a Gramática". A Gramática não passa de UMA forma de expressão dentro de uma língua, mas está longe de ser a única ou, em muitos casos, mesmo a melhor. Levados por formas ultrapassadas da antiga ciência linguística, muitos autores inclusive interpretam erradissimamente autores como Marcos Bagno, Mário Perinni e outros, deturpando suas palavras a uma abominável semente de segregação social verdadeira, que levaria as pessoas que não tiveram acesso à Gramática a continuar nesse estado, enquanto a classe dos que puderam acedê-la se diferenciariam exatamente por esse acesso.
     Não há nenhum autor sério do campo das Letras ou Antropologia ou Sociologia que possa apregoar essa aberração. É claro que os estudos em questão levam em consideração a perspectiva êmica, e não apenas ética (isto é, a visão a partir do povo estudado, e não levando como referencial único a ética dos estratos mais favorecidos socioeconomicamente), mas, numa cidade, não se considerar a Gramática ou desejar que moradores da mesma cidade grande não tenham acesso a ela é praticamente uma atitude nazi-fascista de "eugenia linguística": algo como "deixem a língua culta com as elites; deem aos plebeus a sua língua que só sabe expressar-se de uma forma, onde quer que estejam".
     Aliás, devo dizer que o Brasil é o único país do mundo que vocifera com tanta ferocidade (e falta de fundamentos) contra a Gramática Normativa de sua língua. Nenhum outro país considera a sua Gramática um conglomerado de arbitrariedades e algemas, porque sabem que todas as Gramáticas são escritas mediante pesquisa de séculos de literatura naquela língua em questão. Ademais, a Gramática, sendo filosófica e reflexiva, como é, alarga o pensamento daqueles que a procuram conhecer e estudar, pois "a linguagem é a casa do ser", como disse Heiddeger, e Pessoa dizia que "vemos o mundo com os olhos da nossa língua", e, dessa forma, uma pessoa que possua poucos ou parcimoniosos recursos expressivos e comunicativos dentro de sua língua há de ter um pensamento igualmente parcimonioso.
     Tudo no mundo tem suas Gramáticas: a linguagem computacional tem sintaxe, morfologia, léxico, semântica; as relações interpessoais idem. A Gramática Normativa, se não é o fator exclusivo de ensino de leitura da Gramática do mundo (e realmente não o é), ao menos é um elemento extremamemente útil para esse fim. Creio que seja por essa razão que os demais países do mundo - à exceção do Brasil - RESPEITEM as suas Gramáticas, em vez de apedrejá-las, e, pior ainda, com argumentos falsos e conceitos para lá de ultrapassados, praticamente jurássicos... e deturpados, mal lidos, simplificados a um sem-número de abjetas formas de preconceito disfarçadas sob a "pele de cordeiro" da falaciosa "democracia". Demagogia e segregação seriam palavras mais exatas.
     O que um verdadeiro homem de letras pode analisar em relação à língua FALADA, em perspectivas funcionalistas e mesmo formalistas, muito além de colocar a Gramática Normativa como se fosse uma Bíblia, um Corão, um Gita, um I Ching ou qualquer outro livro religioso dogmático, é ater-se aos conceitos - agora corretos - de ADEQUAÇÃO e INADEQUAÇÃO.
      Repare-se que qualquer ser humano, a partir de uma idade já bem tenra, é capaz, inclusive, de discernir, por exemplo, que não pode falar um palavrão escabroso numa igreja, sinagoga, mesquita, templo etc. Mas ele pode fazê-lo entre amigos, num ambiente de registro distenso. Ora ora, isso é a prova viva de que há, SIM, noções de "adequado" e "inadequado" em relação a uma língua, e isso antes mesmo de a criança em questão ter tido contato com a letra escrita. Ela discerne isso por contato com seus pares e responsáveis.
      Interessante que uma noção tão básica, adquirida em idade pueril, perca-se ou deteriore-se, em algumas pessoas, com o passar do tempo. Trata-se de uma regressão no tempo e na mente dessas pessoas, assim parece, que já haviam adquirido uma noção e uma lição utilíssimas para a convivência humana, e, de uma hora para a outra, perdem-na...
     Não que a discussão sobre o tema "validade e fronteiras da Gramática", em si mesma, seja ruim ou deletéria, pois ideias fluem através da discussão. O que trato aqui é que a discussão se baseia em conceitos e epistemologias erradíssimas, que os gramáticos jamais usaram ou disseram, o que torna a tertúlia morta já na sua mais rotunda gênese.
     Um gramático não diz "certo" ou "errado". Talvez o fizessem no século XIII, sei lá, com a Gramática de Port Royal ou congêneres. Mas hoje, aliás há muitos séculos, não!
    Utilizando a metáfora de Bechara, uma sunga não é "certa" nem "errada" por si só. Mas será ADEQUADA numa praia, e INADEQUADA numa festa de embaixada. Quem não souber isso (e o fato grita até ao mais perfunctório senso comum), este sim será, por si só, INADEQUADO. Não ERRADO (ou será que é?), mas INADEQUADO. Agora imaginem um sujeito usando um traje de gala completo em plena praia, num domingo de sol, ao meio-dia... Quão adequado estará sendo... Será uma roupa CERTA?
    Reflitamos e, com nosso raciocínio, que aliás a Gramática ajuda muito a desenvolver, cheguemos a uma conclusão, digamos, lúcida.
Bem, se a pessoa em questão quer fugir de toda e qualquer convenção social, poderá candidatar-se a ir morar no alto do Kilimanjaro, onde não será afetada pela convivência com nenhum outro ser humano, e poderá usar as roupas e os registros linguísticos que lhe aprouver na hora em que se lhe deparar a vontade INSTINTIVA. Poderá até inventar um idioma só dele, um idioleto, que, aliás, é um dos sintomas de uma série de patologias neurofisiológicas relativas ao ser humano - não saber comunicar-se adequadamente.
     Discernir os usos linguísticos é o que importa, realmente, numa língua. Língua, como elemento de cultura que é, não pode se restringir a instinto. Língua é fenômeno social e tem milhares de matizes para ser posta em funcionamento ADEQUADAMENTE. Temos de ser poliglotas dentro do nosso próprio idioma - parafraseio mais uma vez meu orientador, Evanildo Bechara. A Gramática não tem o papel de ditar dogmatismos, mas apenas tem o papel de colher o que os grandes ESCRITORES (língua ESCRITA) têm feito ao longo do tempo, e, com esse compêndio, tentar formular cientificamente uma língua padrão, que, aí sim, se desenrola tanto na ESCRITA quanto na própria FALA.
     Gostaria de propor um desafio a autores defensores do "vale tudo" linguístico: por que eles não escrevem seus artigos e livros estritamente num registro linguístico bem relaxado, como se estivessem batendo um papinho no bar com seus melhores amigos? Por que eles têm tanta preocupação em criticar a Gramática mas a usam escorreitamente, ponto por ponto, na hora de ESCREVER um artigo acadêmico e mesmo na hora de FALAR a plateias mais cultas? Será que, no fundo, não são eles que querem implementar e alargar o fosso entre eles, cultos, e os que devem ser deixados ao deus-dará, incultos? Será que por trás desse discurso de "democracia" não há de fato uma DEMAGOGIA que, aos poucos, vai salientando, como se fosse algo benéfico, a diferença entre "párias" e "dálits"? Será que não estariam ajudando a criar e manter um sistema de castas linguísticas em que se "abona" a falta de acesso à Gramática para uns enquanto eles próprios, seus filhos e parentes a acedem com grande fluidez e - hipocrisia? Não seria esse o subtexto do discurso de que a "Gramática oprime a expressão do povo"? Bertrand Russel, professor de Ludwig Wittgenstein, dizia: "O texto é aquilo que esconde as entrelinhas". Será que nas entrelinhas do texto "deixe todos falarem e escreverem sem interferência nenhuma, instintivamente" não está recôndita a entrelinha "assim eles permanecerão lá, e nós, de elevada casta, aqui, bem longe e distantes"?
     Causas para reflexão séria...
    Por que os apologéticos do "a Gramática oprime" sabem usar a Gramática tão bem e USAM-NA quando discernem ser este o registro ADEQUADO para determinada situação?
     Por uma razão muito simples: eles SABEM que a língua é composta de vários registros, e que seria INADEQUADO usar um registro distenso ou relaxado quando se dirigem, ORALMENTE ou POR ESCRITO, a determinado público.
     Se não houvesse a unidade linguística padrão, a língua portuguesa já teria se fragmentado em várias línguas há muito tempo, cada uma correspondente a um uso específico. Teríamos o nodestês, o sulês, o carioquês, o paulistês, o funkês, o cientifiquês, o literatês... E de cada um desses novos idiomas, certamente, vários outros, nascidos pelas diferenças que surgem na língua falada com uma velocidade certamente diária. Teríamos mil línguas oriundas da portuguesa, incomunicáveis uma com a outra. Provavelmente desde o século XVI, com João de Barros e Camões confrontados com as influências negras e indígenas da América, ou, na pior das hipóteses, do início do século XX para cá, com a colonização e descolonização da África e Ásia lusófonas.
     Mas não, em vez disso, a língua portuguesa, dentro de sua unidade GRAMATICAL NORMATIVA, assimilou e abonou todas as influências - negra, indígena, árabe, asiática, inglesa, francesa, espanhola - e só cresceu, mesmo na sua Gramática Normativa. Porque a Gramática é uma força tenaz que norteia, não cerceia, e aceita, com muita flexibilidade, as mudanças no tempo e mesmo no espaço. Só não sabe isso quem não conhece, realmente, o que é Gramática e qual o seu papel real.
     E sair por aí dizendo falsas premissas sobre algo que se conhece pouco é, no mínimo, indefensável. Não fosse a Gramática com sua tenacidade, teríamos incontáveis línguas formadas a partir do português, que, no entanto, não mais seria o português, mas línguas derivadas, como foi dito. E o que temos são falares e expressões locais ricas e saborosíssimas, que em nada "ameaçam" a unidade do idioma, porque a Gramática estará sempre lá, com seus séculos de compilação da evolução do idioma.
    Um homem que não sabe História certamente repetirá erros já cometidos. Um homem que não sabe o que é Gramática dirá muitas bobagens a partir de conceitos que já foram usados mas que não são mais fidedignos. A Gramática unifica, sem retirar os traços locais da língua - o que, aliás, seria sumariamente impossível.
     Quanta bobagem já derramou rios de tinta de quem não enxerga isso!
     Sim, isso pode acontecer, e, como eu disse, nem é essa unificação a preocupação primacial da Gramática. Seu verdadeiro escopo é formalizar um tipo - UM ÚNICO TIPO DENTRE OS INFINITOS TIPOS - de comunicação oral, mas principalmente escrita, dentro da nossa vastíssima e riquíssima língua portuguesa.
    A unidade gramatical não sufoca a diversidade, mas, pelo contrário, evidencia e lapida o seu inesgotável brilho. Ou será que fui inexpressivo neste artigo só porque achei ADEQUADO comunicar-me, aqui, pelas vias tão fecundas da Gramática Normativa? Será que errei ao optar por este caminho neste momento? Será que eu realmente SÓ sei me expressar desa maneira, e me expressaria igualmente no contato com amigos íntimos, com familiares, com crianças, com pessoas pouco eruditas, ao namorar...? Será que o fato de eu saber Gramática Normativa escrita e oral implica (quanta falácia!) que eu SÓ DEVO SABER GRAMÁTICA NORMATIVA e não dispor de nenhum outro meio de comunicação mais expressivo ao momento?
     Quem inventou essa "Lei"?
    "Nunca deixarei de acreditar em Deus, visto que ainda acredito na Gramática" - diz Nietzsche.
     Não, a Gramática e Deus não são a mesma realidade sociocultural. Mas provam que o homem precisa, por sua própria natureza, ater-se a algo fixo dentro da transitoriedade e variabilidade das circunstâncias que o circundam. O homem sempre precisará de pontos de referência plurais (éticos e êmicos), e negar a ele o conhecimento dessas perspectivas é cruel e separatista. Se ele, uma vez tendo conhecido, não quiser lançar mão, é sua escolha, mas não lhe dar acesso, não lhe mostrar - isso é desumano e profundamente avesso à gregariedade e solidariedade orgânica de uma sociedade complexa que conviva sob uma mesma cultura, um mesmo solo, um conjunto de valores compartilhados e reinterpretados continuamente.
     "O indispensável é o absoluto" - disse Kierkegaard. E absoluta é a união das partes, vistas sem preconceito, e, portanto, sem omitir-se de uns aquilo que se oferece a outros.                                        _____________________                                                                            

Marcelo Moraes Caetano é

Professor de Português e Literatura; Gramático; Crítico literário; Tradutor de Alemão, Inglês, Francês e Italiano; Estudioso de Latim, Grego e Mandarim. Escritor e poeta, com 14 livros publicados, e várias premiações (Academia Brasileira de Letras, ONU, UNESCO, Fundação Guttenberg, Sesi, Firjan). Seu lançamento mais recente é a Gramática Reflexiva da Língua Portuguesa, lançada na XIV Bienal Intenacinal de Literatura do Rio de Janeiro, em 2009.

 


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