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Ensaio

 

A LITERATURA,

SEUS PORQUÊS, COMOS E VIZINHOS AFINS

          

                                                                                              *Fábio Lucas

 
         
Impulsionado pelas demandas de José Domingos de Brito, ocorrem-nos indagações específicas acerca das questões básicas concernentes à arte de escrever, aos motivos e às formas da criação literária. Por fim, acabamos por imaginar o pentágono seguinte, de cogitações sobre o tema da Literatura e de suas interferências com outras artes. 
 
 

1.  De  volta à pergunta: Por Que Escrever? 
 

         Quando me deparo com o paciente trabalho de José Domingos de Brito, a rebuscar nos mais variados autores a resposta plausível à pergunta "por que escrever?", especulo se tal questionamento não estaria ancorado no grande mar das perguntas sem resposta.

         José Domingos de Brito colecionou, para publicação, respostas surpreendentes dos maiores escritores do mundo, depois de uma pesquisa que se aproxima de 700 amostras.

         Mas, a um segundo pensamento, cogito se a vida não será tecida eternamente em torno de querelas sem solução.

         Escreve-se desde que se estabeleceram os primeiros sinais de comunicação por intermédio de traços convencionais. Talvez, na escrita, o ser humano tenha sentido, pela primeira vez, o espetáculo da transcendência. Na escrita, tal como no parto, dá-se vida a um corpo externo, de duração presumivelmente mais duradoura do que do corpo gerador. Tem-se o mistério pelo qual, mediante o objetivo, o sujeito procura lograr um pouco mais de sobrevida.

         Roland Barthes acredita que "escrever é sacudir o sentido do mundo, propor-lhe uma interrogação indireta, à qual o escritor, em última análise, se abstém de responder. A resposta é cada um de nós que dá, agregando-lhe sua história, sua linguagem, sua liberdade; mas como história, linguagem e liberdade mudam infinitamente, a resposta do mundo ao escritor é infinita; não se pára nunca de responder ao que foi escrito fora de toda resposta: afirmados, depois postos em discórdia, depois substituídos, os sentidos passam, a questão perdura".

         "Assim" - prossegue Barthes - "se explica sem dúvida que há um ser transhistórico da literatura; este ser é um sistema funcional de que um termo é fixo (a obra) e o outro, variável (o mundo e o tempo que consomem esta obra)" (Sur Racine. Paris: Editions du Seuil, 1963).

         Outro círculo de especulação se põe quando se estuda o sistema de comunicação. Quem escreve é, ao mesmo tempo, exemplo e intérprete, fonte e seqüência, começo e continuidade, convergência e expansão, emissor e destinatário.

         Escreve-se para dar sentido à vida, ou mesmo para se saber a razão por que se escreve. Escreve-se para se descobrir o motivo de se escrever. Entra-se numa petição de princípio indevassável, numa tautologia sem termo, até que se descobre que não escrever é impossível. Mas há gradações. Há escritores que se põem (ou são postos) no horizonte da missão. Sentem-se tão necessários quanto os profetas. Tão acreditados quanto esses.

         O espírito romântico, baseado na projeção da individualidade, exaltou o escritor como agente demiúrgico, criador de novos horizontes para as esperanças da humanidade. E essa aura de liderança cercou-o até o advento da modernidade, quando o intelectual, como ser excepcional a ser reverenciado pelo grupo, entrou em hibernação. Perdeu parte do prestígio e da auréola da distinção que o qualificava.

         Não obstante, ainda hoje há uma convivência ambígua entre a escrita e as personalidades bafejadas pela glória terrena. Tendo os meios de comunicação se deslocado da era da imprensa para a era da eletrônica, criaram-se os deuses massificados: esportistas, políticos, artistas de cinema, da TV e da música popular. No entanto a revanche da escrita é muito sutil. Apesar do volume de aplausos e honrarias que cerca os agentes favorecidos pela mídia, em cada um deles adormece o desejo íntimo de ultrapassar-se ou de, pelo menos, ultrapassar o diminuto ciclo vital. Aspiram à escrita, quer sob a ação direta de escrever, quer sob a garantia de traduzir a fama em obras biográficas ou depoimentos passados para o papel. O problema está em romper o silêncio post mortem.

         Maurice Blanchot (A parte do fogo. Tradução de Maria Scherer. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.) percorre o diário de Kafka para investigar o que é literatura, assim como as tormentas do ofício de escrever. E detém-se em Mallarmé para dignificar o papel do silêncio, dos "brancos" no interior da escrita. No dizer de Blanchot, um dos desejos mais antigos da literatura é justamente "escrever para chegar ao silêncio, escrever sem perturbar o silêncio". Sim, o silêncio faz parte da linguagem, segundo ele. Se nos calamos, esta será uma das maneiras de nos expressarmos.

          A escrita e, em conseqüência, a literatura são tanto um meio heurístico, quanto comunicação de estado emocional. A obra assim se oferece como poder epistemológico de descoberta e aquisição do conhecimento, dotado, ainda, de energia para o estabelecimento do homem na sociedade e no universo. A obra, portanto, instrui e comove. Determina o papel do humano na torrente das palavras. Provê misteriosa segurança emocional que outrora se denominou catarse.

         Mas isso não é tudo. A literatura pode ser também fonte de prazer singular, situado no jogo ou no riso. Alternativa ou conjuntamente, jogo e riso, pois proporciona ora euforia lúdica, ora descontração jocosa.

         A palavra, no eixo de sua contextualização, achegou-se ao conceito, ou ao símbolo, e até ao mito. Variando entre tantas esferas, serve ao homem no seu eterno ímpeto de ultrapassar-se na duração dos anos. Eu me pergunto por que José Domingos de Brito se propôs a investigar esta questão: por que escrever? É uma indagação filosófica. E nenhuma literatura progride sem que se proponham perguntas sem resposta, pois o esforço de alcançá-la redunda numa aproximação sucessiva ao núcleo da verdade. José Domingos de Brito colecionou centenas de respostas e a questão continua aberta. Não é estimulante continuar? A busca é a literatura e a busca não tem fim.  

                        
 

2. Como Escrever? 
 

         Enquanto a questão "por que escrever?" procura investigar o processo discursivo como formador do "eu", a pergunta "como escrever?" encara de preferência o aspecto instrumental da palavra. Ou, visto de outro ângulo, os modos como o escritor utiliza o aparato necessário ao registro do texto, enquanto elabora o parto da criação.

         No primeiro caso, teremos opções de gênero literário ou motivações temáticas; ou, ainda, relativas aos apelos do público e da época. O escritor delineia o leitor a que se dirige e pré-formaliza o conteúdo da mensagem.

         Na segunda hipótese, o autor lida com os meios: lápis, caneta, máquina datilográfica, computador, tendo em mente a objetivação da mensagem, o conforto físico e a economia de tempo.

         Apesar de somente ter acesso ao lado pedestre do escritor, o leitor certamente colherá exemplos e sugestões, aproximando-se do indevassável interior do escritor, onde se encontram as adormecidas palavras à procura de articulação num discurso literário. Tudo lhe é novo e serve de estímulo à conquista da face oculta do ser humano.

         Mais ainda: na linha do como escrever  subjazem a noção de estilo e a de aprendizado. O estilo se designa como uma emanação original e intransferível. Um idioleto, um corte idiossincrático, em confronto com os signos compartilhados, aqueles que se buscam na Gramática, nas regras de bem escrever, que formam exemplos A. Albalat (cf. A formação do estilo pela assimilação dos autores, 5a ed., Lisboa, Liv. Clássica, 1944), Artur Schwab (Novas louçanias de linguagem, Juiz de Fora, Esdeva, 1975, e Novíssimas louçanias de linguagem, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1982) e Laudelino Freire (Linguagem e estilo, Rio de Janeiro, A Noite, s. d., e Regras práticas para bem escrever, Rio de Janeiro, A Noite, s. d.).

         Albalat se preocupava com o modo de escrever baseado na lição dos clássicos. A versão de sua obra para o Português se deveu significativamente a Cândido de Figueiredo, autor de, entre outras, Falar e escrever e O que se deve dizer.

         Na apresentação de Regras práticas para bem escrever, Laudelino Freire diz: "Este ementário deve ser para o escritor o que para o sacerdote é o breviário: livro de regras que ele deve ler todos os dias, como todos os dias lê o sacerdote o seu livro de orações".

         Notável documento a ressaltar o espírito regulador e normativo da época, associando o uso da língua à prática religiosa, ambas as esferas dominadas pela noção de ordem.

         Diríamos, para resumir: o "por que escrever?" tem a ver com a textualidade, ou seja, com a inserção do indivíduo no mundo das relações, com o aprendizado da fala e a organização do repertório. Algo de tão substancial que entende com a própria razão de existir; já o "como escrever?" alinha-se no campo da "gramaticalidade" e associase ao âmbito das regras ou das noções preestabelecidas.

         Durante a vigência do Estruturalismo, falou-se muito no texto como a máquina de significar e na sua composição e posterior decomposição, a fim de que o analista procurasse nele as leis de funcionamento.

         Tal configuração da dinâmica textual aproximava o intérprete da pulsão do "como", do mesmo modo como se surpreende uma criança a "desmontar" o brinquedo, com o propósito de conhecer como ele é "por dentro" - a eterna curiosidade sobre aspectos da coisa e seus modos de ser.

         Mário de Andrade definiu o seu processo de criação poética como a junção da palavra à crítica, de tal forma que inicialmente o poeta lança na página em branco a primeira  versão do poema, no embalo do fluxo da criação. Depois, passado algum tempo, o autor deveria regressar ao texto para corrigi-lo, realizar as podas e acréscimos necessários à melhor expressão. A conquista da oralidade.

         Desde que autor e obra se tornaram "públicos", graças ao ordenamento da sociedade moderna, burguesa e urbana, dirigida ao mercado e à compra e venda dos produtos literários, é natural que o "consumidor conspícuo" queira saber tudo acerca de seu ídolo. No ativado sistema de circulação de objetos e símbolos, todos reunidos sob a forma de mercadoria, nada mais natural que se formem sentimentos de sacralização do objeto e se despertem ávidos interesses de se apropriar dos sinais distintivos do autor ou da obra recobertos de uma aura santa.

         Daí a pertinência do "como escrever". A informação monumentaliza o autor e atende à curiosidade suplementar do leitor, que deseja ir além da obra. O "como" pode condensar-se num fetiche, num ato mental de transferência .

         A questão posta diante do autor - como escreve? - acaricia o seu ego, açula o seu lado exibicionista, alia-se à fama, põe juntos o autor e as suas palavras artísticas, sequiosos por se darem em espetáculo.

         Dá-se a ampliação do aspecto adjetivo, instrumental, da arte da escrita. Além de se indagar a condição primeira que motiva o escrevente, quer-se conhecer a peculiaridade de cada uma para atingir seu objetivo.

         Cremos que tal indagação floresceu ante a transformação do ato privado do escrever em atividade pública. Inicialmente, o escritor se dirigiu aos seus iguais. Depois, ao público, entidade anônima, mas qualificadora de seu trabalho. É quando vem a imprensa e se coletiviza a divulgação da escrita que o autor se liberta do controle religioso e ideológico do registro das palavras. Seculariza-se a expressão e perde-se, em parte, a dominação dos conteúdos.

         Tornando-se o autor e a obra entidades públicas, circulantes,  desperta-se  a curiosidade  do leitor acerca dos "porquês" e "comos" da produção literária.

         No Brasil, convém lembrar os "arquivos implacáveis" de João Condé, que externalizaram muitas vezes o "como" de vários escritores. Uma curiosidade de bastidores. A designação de "arquivos implacáveis" veio de Carlos Drummond de Andrade, cuja frase passou a presidir as páginas jornalísticas de João Condé: "Se um dia eu rasgasse os meus versos, por desencanto ou nojo, não estaria certo de sua extinção: restariam os arquivos implacáveis de João Condé".

         Era o que encontrávamos nas páginas centrais do célebre suplemento literário "Letras e Artes", que acompanhava o jornal domingueiro de A Manhã (1948 e 1949).

         Do mesmo modo, a revista de maior circulação do país, O Cruzeiro (1952 a 1958), transcrevia, como o "Letras e Artes", fotos, originais, confidências, assinaturas, fac-símiles e respostas dos principais escritores brasileiros, além de um questionário repleto de questões provocativas e surpreendentes. Era o próprio flagrante da "vida literária" posto nas mãos do consumidor.

         Havia mesmo uma subseção chamada "biografia do livro", na qual o autor fornecia os elementos genéticos da obra. Ali pululavam os "comos" da atividade do escritor.

         Assim, na esteira de G. Charensol, autor de Comment ils écrivent (Paris, Montaigne, 1932, prefácio de Fernand Vanderem), José Domingos de Brito, notável pesquisador, consagrado autor de Por que escrevo? (2ª ed. São Paulo: Novera, 2006), vem a lume a fim de trazer o produto de mais uma de suas incansáveis investigações: Como escrevo?

         A tarefa levou-o a auscultar inúmeras fontes literárias, nacionais e estrangeiras, a fim de que respondam acerca do modo como os artistas da palavra se comportam no momento de lançar no papel ou na tela do computador os signos particulares de sua criação. Aqueles que se tornarão o deleite e a paixão do leitor.

         Serenos ou aflitos, calmos ou nervosos, lúcidos ou ingênuos, na obra desfilam incontáveis escritores a revelar mais uma faceta da imorredoura ilusão literária.  
 
 
 

3. Literatura e Jornalismo

 
         
As letras ingressaram na vida humana de forma tão radical que se torna difícil reconstruir sua trajetória. No mundo Ocidental, a invenção da escrita causou espanto, segundo testemunha Platão num dos seus diálogos. O alfabeto fonético trouxe outra expansão da mensagem escrita. Os suportes eram raros e frágeis, como os papiros e as peles de animais.

          No campo da Comunicação, a humanidade assistiu a outra súbita mudança quando se deu a invenção da imprensa, quebrando-se, então, o monopólio da escrita e da leitura, confinadas aos mosteiros religiosos. Ao redor do avanço tecnológico, viram-se florescer o pensamento laico e o exercício da controvérsia. É claro que a extensão dessa faculdade terá sido à custa de muita luta e sacrifício.

          O certo é que a escrita e a leitura ampliaram o campo da gnosis e da praxis, ou seja, do conhecimento e da ação, do saber e do fazer. Expandiram-se o acesso aos valores universais, à liberdade e à individualidade.

          Na passagem dos séculos XVIII e XIX, foi-se implantando o uso diário da informação, consubstanciado no jornal. De início um boletim pessoal ou um panfleto partidário, cedo, com a implantação da indústria do papel e da utilização mecânica da impressão, constituiu-se a empresa impessoal de informação, dispendiosa e heterogênea, a reunir grupos de profissionais em torno de editorias específicas.

          Os veículos impressos de comunicação informavam e esclareciam o público, interpretavam eventos e situações sócio-políticas. Encarregavam-se de espalhar notícias, idéias e diversões. Nutriam a curiosidade do saber, dentro de uma temporalidade própria: o cotidiano.

          O jornal entrou nos hábitos da sociedade. Gerou o seu próprio público, sequioso de atualidade. Lidando com as notícias circunstanciais, efêmeras e conjunturais, formou o seu núcleo de consumidores, com o qual mantinha uma interação dinâmica. Produzia o que o público desejava e, ao mesmo tempo, pautava o estímulo do consumidor, orientava as suas aspirações intelectuais e consumistas.

          Deste modo, a informação escrita foi-se definindo com forma que se exprime como opinião, além de transmitir parte do patrimônio do conhecimento da humanidade. Por isso é que o jornal integra o processo de comunicação social difusa da cultura em seu permanente devir.

          Dois pilares sustentam a informação jornalística: a atualidade e a periodicidade. A atualidade exige do jornalista a busca da notícia, a função investigativa, ou a faculdade interpretativa que represente um novo olhar sobre os objetos, circunstâncias ou relações já conhecidos. Portanto, presta-se a ativar as capacidades cognitivas e programáticas do ser humano. A periodicidade diz respeito ao fornecimento cotidiano de novidades desejadas pelo público.

          A liberdade da imprensa abriu, em determinadas ocasiões, o salão dos horrores, pois ao jornalista foi outorgado o direito de mentir, deturpar, intrigar e, até, de nutrir os mais baixos apetites do consumidor. A esse rebaixamento deu-se o nome de imprensa marrom.

          Estabilizado o comércio das notícias, e posta a indústria cultural, o veículo usualmente escolhe o leitor hipotético, elege o tipo de público a que deseja alcançar. Para se aquilatar do nível mais baixo e extensivo, em certa época de intensa busca de consumidores, o jornalista fora aconselhado a escrever para o leitor que move os lábios enquanto lê. Isto é, para o mais primitivo e elementar.

          Ao militar num mercado de feroz disputa de espaço, o jornal tendeu a tornar-se uma extensão dos interesses egoísticos da sociedade. Passou a misturar-se à propaganda e à manipulação de idéias e opiniões. Passou até a se tornar instrumento da construção do consenso em favor da ordem vigente. Enfim, pendeu para virar uma arma cultural da indústria, do comércio e do poder.  Nesta era de oligopólios, é espantosa a uniformidade de manchetes, textos e imagens que se reproduzem de norte a sul, a ponto de se duvidar da chamada liberdade de expressão.

          Com isso, teme-se a supressão da individualidade, mediante a tirania dos números, das maiorias ocasionais diariamente acionadas no plebiscito publicitário e consumista.

          Paradoxalmente, o jornalismo contemporâneo tornou-se mais exigente. Requer instrução superior e até pós-graduação dos profissionais. Lida com bancos de dados e se vale de centros de pesquisa e análise da vida econômica, social, política e cultural da comunidade.

          Assim, o jornalista estará credenciado  a formar ou sustentar a vida de relações do país. O ser humano cerca-se de duas realidades: a física e a simbólica. Na qualidade de criador de símbolos é que o escrevente (inclusive o jornalista) desenvolve a comunicação humana e o processo social. A contribuição simbólica é ampla, engloba a linguagem, a arte, o mito, a religião, a filosofia e a ciência. Ao usar símbolos, o homem pode exprimir intenções, significado, desejos e, portanto, adquire o poder de alterar as formas da vida social.

          O jornalista opera nos limites do escritor, na medida em que ambos lidam com a força comunicativa da palavra escrita. Mas o escritor o faz de maneira intensiva, com o propósito estético. O mesmo propósito pode estar no íntimo do jornalista, mas este é mais assediado pelo objetivo  pragmático da empresa a que está ligado.

          Quando o jornal se implantou como fonte de informação diária, ao alcance dos leitores, recrutou, entre os principais colaboradores, os letrados que já dispunham de notoriedade na utilização da palavra escrita: escritores, juristas, médicos, sacerdotes, engenheiros, enfim, todo aqueles vocacionados para a expressão artística, inclusive os auto  didatas.

          No século XIX, os principais escritores brasileiros eram também jornalistas. Machado de Assis seria o exemplo mais conhecido.

          Como o jornal se encarregava de oferecer emoções diárias, quer mediante o noticiário político, policiar, esportivo e cultural, quer na divulgação de folhetins narrativos, suspeitou-se que a Literatura, principalmente no campo da ficção, sofreria uma forte retração no gosto dos leitores. Os livros ficariam numa escala subalterna, recolhidos às finalidades didáticas.

          Mas o jornal, para atingir camadas populacionais mais extensas, cuidou de adaptar a linguagem à expressão próxima da oralidade. Adotou um coloquialismo distanciado das pompas de estilo então vigentes entre os escritores. Desataviou o linguajar, tornando-o mais acessível ao homem comum.

          Tal estratégia contagiou os próprios criadores de Literatura. Deste modo, o jornalismo, de certa forma, dotou os escritores de uma linguagem mais ágil e comunicativa na poesia, na ficção e no ensaio. O estilo de um Coelho Neto seria a reminiscência de uma escrita literária arrevesada, postiça, cheia de afetação e exuberância vazia. Lima Barreto e o chamado “romance do nordeste” atestam outra fortuna de nossa criação narrativa.

          Os folhetins passaram a ser a matriz dos principais romances que, testados para o grande público, na primeira versão jornalística, tomariam, a seguir, a feição do livro.

          O mesmo se dirá das revistas, que publicavam poemas, crônicas e contos que, mais tarde, acabavam recolhidos a outro suporte, o livro. O conto moderno, segundo alguns historiadores, é fruto das revistas. A crônica se tornou um gênero especial para o jornalismo brasileiro.

          O jornal acabou por incorporar às suas folhas o suplemento literário, órgão de grande prestígio literário no meio intelectual do país. Nos últimos tempos, os suplementos foram-se extinguindo ou se modificando de tal modo que sequer podem comparar-se aos antecessores. A indústria cultural os extinguiu ou deformou totalmente: passaram a ser mero setor do comércio de livros. Ou refúgio do noticiário da sociedade do espetáculo, sem densidade crítica ou especulativo. A tal ponto que, na quase totalidade dos “cadernos culturais”, o autor brasileiro figura  como exceção, em face do espaço concedido a artistas da televisão, das telenovelas, da música popular, ou dos escritores de produções em série para o grande público, os tais de best-sellers, quase sempre estrangeiros.

          O escritor vive hoje em certo isolamento, não obstante ter obtido um público antes diminuto: o dos estudantes de nível superior. A população universitária aumentou consideravelmente e a alfabetização tem contribuído para elevar o número de leitores. Perante o fracasso do ensino adaptado exclusivamente aos interesses egoísticos e pragmáticos, percebe-se uma reação positiva ao atraso em que o país se meteu em face dos demais países em vias de desenvolvimento. Com  a incorporação de valores humanísticos à expressão escrita, é seguro que o Brasil poderá levar avante o seu projeto civilizatório, até hoje embargado pela deficiência da educação. O Jornalismo e a Literatura certamente se beneficiarão do esforço educacional.

          A pesquisa levada a termo por José Domingos de Brito, acerca da combatividade do Jornalismo com a Literatura, fornecerá ao leitor consciente os limites epistemológicos para que transite entre a razão criadora do jornalista e a missão comunicativa do escritor. Em ambos os casos o foco principal incidirá sobre a qualidade, de que a quantidade poderá, ou não, ser conseqüência. Quando nos curvamos sobre obras de excelência como as de Guimarães Rosa e Clarice Lispector, sentimos que a qualidade poderá se tornar quantidade, com a elevação geral do espírito humano. Tal intensa e extensa consagração dos autores tornou-os também, e à sua obra, notícia sempre renovável para o jornalista, pois, a um só tempo, constitui acontecimento literário e fenômeno sociológico.


 

4. Literatura  e Cinema

 

          Ao inteirar-me do novo produto da enciclopédica curiosidade de José Domingos de Brito, colecionador contumaz da sabedoria alheia, resolvi percorrer o sinuoso caminho do parentesco da Literatura com o Cinema, na medida  em que ambas as atividades artísticas visam a dominar a atenção do leitor/espectador através do andamento de uma narrativa. O mito de Sheherazade se redescobre. A arte de contar um enredo torna-se a própria razão de viver do narrador. Como ninguém pode sobreviver sem fantasia, o mundo dos negócios logo se apropriou da função de narrar e a massificou.

          Ambas as artes, Cinema e Literatura,tomam os olhos como ponto de entrada  na consciência ativa do observador, mas de modo diferente. A escrita pede leitura, cujas imagens, colhidas na tradução das palavras arranjadas seqüencialmente, projetam-se no campo da mente. O suporte, a folha escrita (ou o visor ou painel do monitor da informática) oferece aos olhos a reversibilidade, pela qual a atenção busca aclarar o entendimento não captado na primeira tentativa.

           O Cinema, entretanto, se dispõe habitualmente num painel mais amplo, assistido por uma platéia de freqüentadores. Traz, portanto, desde o início, o caráter de espetáculo. São imagens fotográficas em movimento. E, pela duração do espetáculo, aparelhou-se para desenvolver-se sem reversibilidade. Transposto, todavia, ao formato de vídeo ou de DVD, permite um acompanhamento individual, doméstico e pessoal, ganhando igualmente a propriedade da releitura da totalidade ou de trechos que escaparam da atenção ou do entendimento momentâneos.

          O Cinema é um gênero cujo suporte formou-se timidamente no século XIX como gravador da imagem visual externa, em movimento, mas cuja propagação e enorme influência cultural tomaram e, de certo modo, definiram o século XX. Foi o arauto do império estadunidense, sua maior expressão e característica.

          Sua história perfaz duas etapas: a do cinema mudo e a do cinema falado e sonoro (1930). A primeira descoberta do processo visual de narrar foi a montagem de séries de quadros em movimento, com a arte de ligar cenas e diálogos, dar-lhes consistência, harmonia e continuidade. Com a descoberta dos neurologistas, de que o lado esquerdo do cérebro é o centro da linguagem, pois abriga a razão, a lógica,  a memória e a associação inteligente de idéias e percepções; por sua vez, no lado direito situam-se a visão, a imaginação e a música, enquanto o cérebro processa constantemente os dois hemisférios a fim de que funcionem em velozes conexões harmoniosas; com tais descobrimentos, portanto, o cineasta Jean-Claude Carrière desenvolveu a noção de que o grande cineasta é aquele capaz de fundir sempre o verbal com o visual (ainda que reconheça que os japoneses, inversamente, armazenam a linguagem no lado direito, juntamente com as imagens e a música. (Cf. A Linguagem secreta do Cinema, Rio, Ed. Nova Fronteira, trad. de Fernando Albagli e Benjamin Albagli, 2006, p. 25).

          A gramática do Cinema foi-se estabelecendo aos poucos. A tentação do visível, do corriqueiro e do banal, entendido esse termo como algo depreciativo em face das tendências da acomodação e do menor esforço, levou o Cinema à indústria, à produção em série, ao chamativo superficial, mecanicamente, transportando os sinais inclusos da ideologia, da publicidade e do consumo de massa. O pragmatismo estadunidense, ao mesmo tempo em que levou o Cinema à glória, às platéias do mundo inteiro, degradou-o à sua forma de mais baixo nível.

          A montagem progrediu e acabou, no seu modo, por influenciar as outras artes. O romance, por exemplo. A adoção da câmera móvel e a proliferação das câmeras multiplicaram as propriedades do olhar e, na Arte, ensinaram a explorar segmentos de beleza eventualmente inobservados na vivência cotidiana.

          Juntamente com os sons e as cores, o cineasta pôde desenvolver com perfeição o artifício do flash-back. E mais: com a utilização de planos, foi capaz de instalar na tela as dimensões subjetivas que afetam o protagonista da ação narrativa. Para culminar, a gramática do Cinema foi capaz de introduzir, entre sons da fala e da música, intervalos de silêncio, intensificadores  da narrativa. O tempo real, no cinema, desapareceu. O episódio filmado do início ao fim perdeu interesse. A linguagem se tornou cada vez mais elíptica, metafórica.

          O escritor, na busca do registro da condição humana, tem diante de si inumeráveis caminhos. Mas somente se sentirá original quando souber tornar todos os elementos de sua temática uma coleção de situações comuns a todos os seres humanos, portanto, universais. E, ao mesmo tempo, sob uma perspectiva exclusiva, única e inalienável. É seu estilo.

          Quando o Cinema conquistou os seus atributos de linguagem singular  dissociada da Literatura e do Teatro, foi também tentado a transpor para a realidade fílmica o complicado jogo de imagens, articulações e tramas consagrados na Literatura e no Teatro.

          No início de sua carreira, o Cinema necessitou urgentemente de argumentos que encantassem o público. A Literatura, no romance, já havia sensibilizado e hipnotizado os leitores mais exigentes. Daí a tentação de percorrer a mesma trajetória narrativa. Como, entretanto, anular o estilo do escritor e viver apenas do encadeamento dos episódios? A transposição dos enredos romanescos para o Cinema tornou-se moda.

          Possuem eles, entretanto, recursos diferenciados para atingir a atenção do leitor. Grandes obras literárias inspiraram, não raro, filmes medíocres. Simultaneamente, filmes  admiráveis procederam de obras literárias de estrutura medíocres

          As duas artes, a literária e a fílmica, acabaram criando os seus lugares-comuns, detestados pela Crítica, ou seja, pela percepção do público mais exigente, formador da opinião. Ambos os veículos constituem apelo aos destinatários da mensagem, sem os quais não logram subsistir.

          Apanhadas pela indústria e pelo mercado, em muitos casos perderam a liberdade de autonomia. Ficou difícil, pelo efeito industrial, manter a mais ousada tentativa de soberania do diretor: o cinema-de-autor.

          Depois de apoiar-se no enredo de epopéias e romances clássicos, a indústria cinematográfica tomou o rumo de criar um especialista em transformar o motivo romanesco em peça-básica para orientação do diretor e dos atores: o roteiro. Texto que realiza uma espécie de lipo-aspiração do texto literário, retirando-lhe as “gorduras” que não podem aparecer na mensagem estritamente visual. Realizado o roteiro e transposto do papel para a película, encerra-se a utilidade do roteiro. Seu destino, quase sempre, é o lixo.

          Vivemos, na Literatura e no Cinema, uma crise do sujeito, esta herança renascentista do antropocentrismo. Míngua, aos poucos, a doutrina do herói,do homem representativo, do empresário empreendedor, sempre a puxar a sua combinação de fatores de produção para a situação exclusiva de monopólio. Emergiu no contexto do século XX o herói da consciência, mais inseguro acerca de suas potencialidades, irônico, cético, contestatário. Anti-herói.

          Também a narrativa fílmica foi perdendo sua unidade. A televisão com os seus recursos eletrônicos de efeito instantâneo, ajudou a desconstruir a unidade narrativa. Passou-se até, sob o impulso da vulgaridade, a influenciar a linguagem visual, através dos vídeoclips, de seqüência  esquizofrênica e barulhenta, afetando, inclusive, o sublinhamento musical.

          Vivemos sob o domínio do visível fácil, graças ao cinema, à TV e aos computadores: exploram-se movimentos simples e baratos, emoções sem ambigüidade, a fim de tornar cristalinos o enredo e, se possível, a mensagem publicitária. Somente a filmografia com intenções artísticas logra aproximar-se das zonas de mistério e ambigüidade. Jean-Luc Godard, por exemplo, empenhou-se em valorizar o supérfluo.

          O Cinema, todavia, não consegue livrar-se do prestígio das Letras. Desde o início buscou inspiração e argumentos nas peças teatrais e nos romances mais conhecidos. Quem não se lembra do desempenho de Lawrence Olivier em  Hamlet (1948),  Prêmio da  Academia de Artes  Cinematográficas dos Estados Unidos da América? Da voz e das declamações de José Ferrer em Cyrano de Bergerac (1950)? De Vivien Leigh em A Streetcar Named Desire, filme extraído da peça de Tennessee Wiliams?

          Jean Cocteau procurou levar o Surrealismo à expressão fílmica em Sang d’um poète (1930). Vladimir Mayakovski estudou e teorizou sobre o cinema-literatura e chegou a produzir filmes. Aliás, no cinema soviético houve a adaptação do romance de Gorki A mãe (Mat, 1926) pelo diretor Vsevolod Pudovkin.

          Na cinematografia universal, poucos diretores terão sentido tanto a atração pelas obras literárias quanto Luchino Visconti, com Ossessione (1942) no início de sua carreira, filme baseado no livro de James Cain The Postman always rings twice e proibido pela censura fascista. Na França houve um movimento film d’art  que tentou acompanhar o Naturalismo no cinema. Capelanni havia levado Les Miserables de Victor Hugo ao cinema (1912).

          No Brasil, a Paulista Film, de Miguel Milai e Antônio Leite, fez uma adaptação de Os Faroleiros de Monteiro Lobato em 1920. Roberto Santos tentou a transposição de A hora e a vez de Augusto Matraga de Guimarães Rosa. Valter Lima Júnior tomou como tema O menino de engenho de José Lins do Rego. Anselmo Duarte dirigiu O Pagador de Promessas de Dias Gomes.

          O principal diretor e roteirista a lidar com a ficção brasileira foi Nelson Pereira dos Santos cujo Vidas Secas (1963), baseado no romance de Graciliano Ramos, ganhou três prêmios em Cannes (1964).

          Mais tarde, Nelson Pereira dos Santos iria dirigir Memórias do Cárcere (1983), adaptando a obra de Graciliano Ramos. Da obra de Jorge Amado, realizou Tenda dos Milagres (1975)  a partir do romance do escritor baiano. E ousou levar ao cinema alguns contos de Guimarães Rosa, no filme A terceira margem do rio (1993) baseado em “A terceira margem do rio”, “A menina de lá”, “Os irmãos Dagoberto”, “Fatalidade” e “Seqüência”, narrativas pertencentes a Primeiras estórias de João Guimarães Rosa. Relatos que guardam, em comum, personalidades e condutas ligadas a psicologias exóticas, desviantes do comportamento usual.

          Como diz Jean-Claude Carrière, que aponta a incrível velocidade com que a técnica modifica a linguagem fílmica em curtos períodos e como grande parte das pessoas confundem efeitos especiais com Arte, “o próprio ato de escrever é perigoso, pois carrega consigo um tipo de prestígio venerável que é, com freqüência, sua única justificativa. Está escrito, portanto é verdadeiro; portanto, não farei mais nada por ele. Quando um roteiro é concluído, muitos cineastas o chamam de “A Bíblia”, como se fossem as Sagradas Escrituras. E eu percebo com freqüência, durante os ensaios de uma peça, por exemplo, que se damos oralmente uma fala  para um ator, sem escrevê-la,  ele a trata despreocupadamente  e   muitas vezes com fértil inventividade. Se você  escreve a mesma fala numa folha de papel, ou melhor ainda, a entrega datilografada, o ator a respeita imediatamente. Isto pode até paralisá-lo.” (cf. Jean-Claude Carrière, A linguagem secreta do Cinema, p. 139).

          Também o público tem por  costume efetuar a relação positiva entre o Cinema e a Literatura. Quando os romances começaram a servir de argumento para os filmes, os negativistas decretaram a morte do livro. Diziam: quem iria ler Guerra e Paz de Tolstoi durante meses, se se pode conhecer a estória em poucas horas numa sala de cinema? Mas, com o tempo, verificou-se o contrário: após assistir ao filme, as pessoas  se interessam pelo conhecimento da obra que o inspirou. Quem não se lembra da corrida dos espectadores em busca da tradução de O Doutor Jivago de Pasternack, após levado o filme aos cinemas brasileiros?

          De qualquer modo, Cinema e Literatura compartilham a tarefa de levar a fantasia, o sonho e o encanto da narrativa ao espectador. São dois idiomas diferentes, com suas leis e limitações. Apanhados pela indústria da cultura e levados os seus produtos ao mercado, tendem a coisificá-los e, pior ainda, degenerar a estatura humana e a integridade moral de diretores, atores, roteiristas, autores e leitores. O capitalismo se apropriou da indústria cinematográfica através de inacreditável engrenagem de  publicidade  e de  vendas. O  veículo, que teve o seu  começo como uma espécie de parque de diversões, se transformou, mais do que em entretenimento ou divertido relato de estórias românticas, num poderoso fator de fixação, na consciência coletiva dos povos, da marca ideológica e comercial dos produtores e divulgadores.

          Na Literatura, como no Cinema, é possível , ainda, situar núcleos de resistência à massificação consumista. A arte, com seu valor estético, é atividade de natureza não utilitária, em sua essência. Mesmo quando cai no mercado, recusa a perda de identidade. 
 
 

5. Literatura e Política 
 

         José Domingos de Brito tem-se proposto reunir pronunciamentos temáticos de escritores, historiadores, críticos e ensaístas na forma de dicionários de citações. Termina por oferecer ao leitor uma fonte de referências e, na verdade, de diversão com a matéria literária. Ao conjunto de pesquisas deu o título de Mistérios da Criação Literária.

         Como é de se esperar, trouxe uma coleção com o subtítulo Literatura & Política. A Política, aqui, traz consigo um conceito amplo, especulativo, de estudo sistemático da praxis  humana relativa à tomada ou à conservação do poder. Algo substancial à conduta da espécie. Uma técnica de relacionamento civilizado, já que não abandonamos o axioma de que o homem é um animal político.

         Para tanto, supõe-se que o modo “político” de legitimar o poder depende da via consensual, mediante a qual um grupo se reserva o monopólio da força, ou seja, do poder coercitivo sobre os demais grupos sociais que integram a nação.

         O grupo dominante, deste modo, propõe a organização e desenvolvimento do processo produtivo, dos modos e meios de disputar o poder político e das condições de uso do poder coercitivo (forças armadas).

         O jogo político depende, para um bom resultado, de uma atmosfera psico-social apropriada para o seu exercício, e formas pacíficas de administrar os conflitos. Tenta apoiar-se nos intelectuais, cientistas e artistas, como fatores de integração e coesão da sociedade organizada.

         Ora, organizar uma sociedade de carências múltiplas, na qual o escopo maior é lidar com a escassez de bens necessários à subsistência, significa limitar a acumulação excessiva de riquezas, redistribuindo-as aos grupos marginalizados pelo processo de produção. Volta-se ao velho projeto de busca da justiça social.

         Como a sociedade humana tem-se revelado desigualitária  na sua essência, violenta e excludente no comportamento, a fim de estabilizar o grupo dominante, minoritário, dissociado do grupo dominado, majoritário, as partes mais sensíveis a essa injusta organização, os escritores, não deixam de registrar, na criação literária, o espelhamento das turbulências que os atingem. Diagnosticam os males e, não raro, apontam saídas.

         Outrora, nas epopéias e nas tragédias, modernamente, na ficção e nos poemas engajados, o despotismo é exposto de forma enérgica para os leitores. Assim como as forças do destino ou do acaso. Além da função estética, as obras literárias atingem camadas de finalidade moral, política, psicológica e social, conforme modelo de análise por nós apresentado no capítulo “O Estético e o Político” da obra Vanguarda, História e Ideologia da Literatura (S. Paulo: Ícone, 1985, pp. 108 e seguintes) .

         Se investigarmos o período da Modernidade, quando a sociedade urbana e industrial se torna mais e mais complexa, veremos que a expressão literária, que exprime e consagra essa mudança, de situações inter-relacionadas cada vez mais emaranhadas e velozes, encontrará eco na sua formulação artística. Mudam-se também os temas, a cor local, as personagens e as representações.

          Os contatos humanos com a natureza e com os semelhantes se adensam de conquistas materiais, mas também de conflitos e paixões. E a Linguagem e o seu processo de comunicação? Os avanços tecnológicos, a informática, a robótica e os meios eletrônicos da fase contemporânea alteraram as concepções de espaço e tempo das mensagens.

         Na moderna História da Literatura é possível surpreender dois eventos traumáticos que ainda hoje inspiram a reflexão e o poder criador de poetas e ficcionistas: a Segunda Grande Guerra, de escala planetária, e, no caso brasileiro, o golpe militar de 1964. Também este, na preparação e duração de mais de vinte anos, não deixa de ser efeito do término da Grande Guerra e da Guerra Fria que se seguiu ao armistício de 1945.

         A grande Literatura, com efeito, caminha passo-a-passo com os grandes eventos. Na tradição luso-brasileira, a grande matriz literária são Os Lusíadas, poema épico do Renascimento que faz transparecer, nos seus dizeres, a expansão européia, não obstante haver incorporado em seu texto parte da mitologia grega. Os Lusíadas, além dos valores literários, fiéis às exigências retóricas do Neoclassicismo, podem servir igualmente de fonte da História das Mentalidades, se submetido ao estudo das ruínas culturais e à coleta de tópicos não diretamente ligados ao relato causal-temporal. Ou seja, daquela função que Roland Barthes denominou “informante”.

         É nessa linha que podemos colher assertos políticos, explícitos ou implícitos, na obra de diferentes autores. Na verdade, poucos singram ao largo da Política. É que a Política, como o Amor, costuma impregnar os textos da Literatura, já que a linguagem literária, por natureza, lida com emoções, mais do que com conceitos.

         No pós-guerra, a Europa e os países que recebiam influência do pensamento europeu deixaram se envolver por duas correntes dominantes da Filosofia: o Existencialismo e o Marxismo.

         Foi por intermédio do Existencialismo de Jean-Paul Sartre que se desenvolveu o princípio de que a narrativa é sempre comprometida, de que o homem não se desgarra do impulso vital, do projeto, ainda que a vida lhe seja um absurdo, já que a única certeza possível é a da morte, ou seja, da negação da vida. Todavia, a consciência da morte, em efeito retroalimentador, intensifica a vida, torna o tempo mais precioso e tudo se apresenta de forma urgente em face da situação-limite.  O homem, com a morte na alma, é levado a decidir a cada momento, condenado à participação, a engajar-se.

         A doutrina estatal do Comunismo da União Soviética procurou dar função catequética às obras literárias através do Realismo socialista, baseado na teoria do reflexo. Alimentou poemas e romances panfletários de composição elementar. Os chamados “romances do povo”, de baixa densidade estética. Curiosamente, da mesma têmpera se mostraram as obras anticomunistas, patrocinadas, na fase da Guerra Fria, pelos Estados Unidos e sua poderosíssima máquina publicitária.

         Por que o envolvimento das artes literárias no jogo político? É que as Artes, em todas as situações, constituem uma das mais perfeitas modalidades de aprofundamento na análise da condição humana. As artes literárias são, ao mesmo tempo, refúgio das mentes atormentadas pelas dúvidas interiores ou agredidas pelo ambiente dos governos despóticos. Consolam as mentes enfermas, solidarizam-se com os perseguidos e, em dadas situações, carregam mensagens proféticas.

         Mais do que quaisquer outras atividades, as Artes servem para emancipar o homem e torná-lo mais autônomo. O artista, na sociedade contemporânea, é o ser mais livre, pois, na estruturação do seu trabalho, independe de uma cadeia de fatores que limitam, por exemplo, os cientistas, os empresários, os políticos, os burocratas e os financistas. Sonhos e volições ganham asas abertas, podem ser saciados com a criação literária. Os autores alimentam a obra com os elementos de sua experiência e, simultaneamente, exprimem as aspirações da maioria. O seu produto contém um apelo. Cada leitor que captar a mensagem e conduzi-la ao cerne de suas indagações, sentir-se-á  fortalecido na busca de auto-estima e identidade.

         Daí o grande prestígio de que o escritor desfruta, ainda que a sociedade, como a brasileira, não esteja devidamente aparelhada para universalizar o consumo de obras literárias. No inconsciente coletivo brasileiro pesa a grande culpa de não ter-se alfabetizado em massa, enquanto, dada a situação histórica e a contingência de  dependência cultural, ter-se massificado pelo mercado, ao qual, pela publicidade, foi conduzido em estado de rebanho. Sem crítica e sem o devido conhecimento de si, prematuramente coisificado, iguala-se à mercadoria que procura desesperadamente.

         Tem-se como certo que as sociedades, de modo geral, apóiam-se em grupos sociais encarregados de ministrar-lhes uma interpretação do mundo.  A essa camada social convencionou-se denominar intelligentsia. Quanto mais estratificada for a sociedade, portanto, menos sujeita a mobilidades, mais homogênea se revela a intelligentsia, cuja tendência é congelar-se numa casta. Bom exemplo será o clero medieval, encarregado de formular a visão de mundo do período.

         Todavia, quando a mobilidade se torna freqüente, quer a horizontal (deslocamento para outros ambientes, em face da emigração), quer a vertical (por mudança de status; ascensão, no caso de capilaridade; e descenso, na hipótese de precipitação), os quadros intelectuais são afetados pela cena instável. Veja-se, por exemplo, o caso de Ouro Preto que, no século XVIII, oferece a primeira cultura urbana do país, organizada em torno da atividade-piloto da mineração. Escravos puderam comprar sua alforria e mulatos puderam tornar-se arquitetos, pintores, artesãos e músicos de relevo social. Irmandades se organizaram em corporações de ofício.

         O Brasil recolheu, em razão da Segunda Grande Guerra, escritores do porte de Otto Maria Carpeaux e de Paulo Ronai, que muito contribuíram para a renovação dos estudos literários do país. Efeito, portanto, da mobilidade horizontal. No eixo vertical, paulatinamente, negros e mulatos ascenderam às camadas cultas, a ponto de nomes emblemáticos como Machado de Assis, Cruz e Souza e Lima Barreto adquirirem lugar de destaque na história literária brasileira. Intérpretes como Gilberto Freyre e Jorge Amado insistem em apontar os aspectos positivos da cultura mestiça, capaz de produzir gênios tão criadores quanto os melhores que nos são oferecidos pelas culturas etnocêntricas.

         A extrema mobilidade contemporânea, tangida ainda mais pelos instrumentos eletrônicos de comunicação, golpeou o sistema literário, tornando inatingível a meta dos interesses comuns. Com isso, abalaram-se também as normas de conduta e as concepções de vida compartilhadas. A opinião pública se tornou um mar revolto ante as ondas gigantescas da publicidade, que, empurrando os figurantes para o estuário do mercado, tenta anular as iniciativas de emancipação criativa. Na esteira dos equívocos, escritores há que, para vencer econômica e socialmente, tentam introjetar os recursos retóricos da propaganda, adotando-lhe os modismos.

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*Fábio Lucas é

  Professor, Crítico literário e membro das Academias Paulista e Mineira de Letras.

  As partes 1 e 2 deste ensaio foram publicadas no revista Calibán (Rio de Janeiro, nº 12, de 2009.

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