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Criação literária

              

               A LITERATURA NO ESTÔMAGO

Nilson Oliveira


I. Butor e Cabral: a escrita, o corte


        Com Michel Butor entendemos que na literatura as coisas são móveis. Toda obra de Butor é traçada em mobilidade, fora das conceituações, nunca foi isto ou aquilo, foi sempre uma experiência em movimento: ficção, ensaio crítico, devaneio poético. A obra de Butor é um pouco isso tudo, funciona como algo bem diverso, sempre em vias de abertura, faz da quebra dos gêneros uma experimentação, algo da ordem das desterritorializações. Sua escrita deixa de se preocupar com a recuperação e continuação dos gêneros, para se aventurar numa empresa de risco, mas que de um modo geral chamamos de espaço literário. Com Butor, entendemos que é sempre bom estar aberto a essas experimentações, pois é esse movimento que faz as coisas funcionarem; que oxigena o espaço, injetando ares de possível, fazendo da literatura uma força em contínuo devir. A literatura torna-se o experimento que constitui o fora de qualquer verdade; a linha de fuga que nutre toda linguagem escrita e deixa no texto a marca vazia de um corte. A força da escrita consiste exatamente na singularidade de cortar, ou melhor, nos modos pelos quais o corte se efetiva. Por exemplo, a escrita de João Cabral é uma multiplicidade de cortes na linguagem: é por vezes um corte seco; por vezes um corte enviesado; por vezes um corte oblíquo. Em João Cabral o corte não é uma identidade: a cicatriz não tenho mais (1); é uma conjugação de forças, ou melhor, um estilo, corte que subverte a linguagem, que só é possível em proliferação: agreste, maré, sol, sertão, mão cortante e desembainhada; tal como o estilo denso de Escola das Facas. Corte que é pura intensidade, que ganha o gume afiado da foice / que (...) corta em foice, que areja e faz ventilar a força da escrita literária.
Escrever é tecer cortes na linguagem, pois a literatura não é uma zona de harmonia, um lugar onde tudo funciona devidamente. Ao contrário, vai sempre ter um corte, uma falha ou uma abertura, seja para fugir ou para abjurar. O pensamento literário acontece pelas fendas desse corte, é através dele que a escrita escapa às pequenas verdades, confronta o estabelecido, lança-se à aventura dos combates, perfila o panorama, rivaliza, engendra um horizonte de criação e crítica.


II. O Hiato


        Não é novidade que a literatura, nos dias de hoje, sofre de uma terrível desnutrição no âmbito dos espaços criativos de conversações literárias – suplementos ou revistas –, que aos poucos vão desaparecendo sem a devida alternância, o que gera um ruidoso hiato. Mas, em que pese essa constatação, as listas de novidades na literatura nunca foram tão extensas e agraciadas com adjetivos de todo tipo, trazendo na fronte, em falas mais e mais tagarelas, o curioso título de “novos”, ou seja, “os novos da literatura”. Os cadernos autorizados estampam em suas primeiras páginas, a cada ano, sua generosa lista dos “novos”. Essa repetição denota uma insistência, o que nos lança a uma inquietação. Contudo, nossa inquietação de modo algum significa uma resistência à novidade, pois sempre estivemos abertos a ela, seja acompanhando seus laços ou surfando nas suas águas. O que tentamos refletir nessas breves linhas é até que ponto esse slogan, “os novos”, não é apenas um apelo publicitário, pois a novidade, na literatura, é intempestiva, vem de um tempo outro, derivado, como diz Pound: “Literatura é novidade que PERMANECE novidade” (2).


III. N. R.


        Quando Robbe-Grillet pensou o Nouveau Roman, pensou em termos de uma abertura possível entre referências determinantes da história da literatura e novas formas de fazer, numa investida que se engendrava entre dois espaços: escrever e pensar. Vemos aí a evidência de um projeto claro e cristalino. A partir do Nouveau Roman, a literatura segue um novo percurso, se nutre dos pontos de ruptura de antes e navega uma trilha que atravessa um espaço de duração, uma fenda aberta por entre tempos diferenciados no curso do acontecimento. Combate, desbrava, cria, produzindo o caminho por vir. Sobre isso nos diz Foucault: “Quando se pergunta a Robbe-Grillet: o que é o novo Romance? Ele responde: o novo romance é muito antigo, é Kafka” . É surpreendente o modo como Robbe-Grillet percebeu as contribuições que a Literatura deu a obras que injetaram, na forma e no estilo, ares de ruptura: “A evolução não deixou de se acentuar: Flaubert, Dostoievski, Proust, Joyce, Faulkner, Beckett... Longe de fazer a tábula rasa do passado, foi a respeito dos nomes dos nossos precursores que mais facilmente nos pusemos em acordo; nossa ambição é apenas continuar (...), nos colocarmos na trilha deles, agora, em nosso tempo” (3). Como o Nouveau Roman, muitos outros casos surgem para evidenciar os pontos de mobilidade da escrita. A literatura se move através dessas experiências, numa infinidade de movimentações que cortaram o tempo, as fronteiras, os limites, fazendo da escrita uma máquina que se intensifica à medida que é posta em movimento; “ela irradia em todas as direções e indica também o caráter do movimento que é próprio a toda criação literária: só a tornamos verdadeira buscando-a em todas as direções, perseguidos por ela, mas ultrapassando-a, empurrados para todos os lados e atraindo-a por todos os lados” (4). É sempre um caso de movimento, a literatura nasce de uma vontade de fabricar aberturas, de forçar o silêncio para nele poder ecoar, como bem fez Isidore Ducasse através do seu Conde de Lautréamont.


IV. Do eu ao ele

         “O Nascimento da literatura se dá na passagem do eu para o ele” (5). Esse é o programa de toda literatura moderna a partir da segunda metade do século XIX. Vontade que brota do inconfesso, de um desejo tão marcante que faz calar, desviando a voz para o deserto da escrita, para que possa nessas águas navegar. Assim veio Fernando Pessoa, da vontade de navegar. Vontade que culminou na busca e na aceitação da obra, no intenso desejo de nessa aventura se entregar.
São essas investidas que desenham o contorno do Espaço Literário. Assim chegam muitos outros, tatuando a sua marca com o sangue, como pedia Nietzche – escrevas com sangue e aprenderás que sangue é espírito (Assim Falava Zaratustra) –, tatuando em vermelho vivo as linhas da sua escrita, para nela encontrar sua própria trilha, lapidar seu tempo, sua forma. É preciso saber aceitar as instabilidades da criação, pois a Literatura não está a serviço dos dias nem acontece em uma rotina programada. Vem à medida que é forçada a vir, pois como nos ensina Céline: “escrever é forçar a linguagem ao seu limite” (6).


V. A literatura no estômago


        A novidade na literatura não surge pelos bons sentimentos do editor que acaba de lançar sua “nova descoberta” no mercado, tampouco pelos comentários tagarelas do jornalista da vez que com seu “faro atento” desperta para o livro, que generosamente a editora acaba de lhe enviar. A novidade acontece em outro plano. É de grande atualidade o pequeno grande livro de Julien Gracq, A Literatura no Estomago, que fez sacudir as imposturas, fazendo da escrita uma máquina de guerra contra a massificação, questionando o juízo editorial e a febre do imediato. Com Gracq entendemos que o tempo da escrita é outro, fora das cronologias, redescoberto na própria escrita, por fora dos círculos e à margem das tendências e do mercado. A literatura é uma empresa que inventa o seu próprio tempo: “O tempo puro, sem acontecimentos, vacância movente, distância agitada, espaço interior em devir onde os êxtases do tempo se dispõem numa simultaneidade fascinante. Que é então tudo isso? O próprio tempo da narrativa, o tempo que não está fora do tempo, mas se experimenta no seu exterior, sob forma de um espaço, esse espaço imaginário onde a arte encontra e dispõe seus recursos” (7). Tempo que escapa à pressa e à ansiedade de alguns escritores, aqueles entregues ao desespero dos dias, que fazem da escrita um exercício de impaciência cuja obra é tão somente o relato ansioso de mais um dia. Nessas obras, invariavelmente, o reflexo do autor é forte demais, sua personalidade ofusca a obra, e a escrita naufraga numa ingênua confissão. Frágil como as asas de Ícaro: não suporta a intensidade do primeiro sol.


VI. Butor

Reencontramos Michel Butor. Sua fala é de uma beleza que atrai para o seu centro: “Não escrevo meus romances para vendê-los, mas para obter unidade em minha vida; a escrita é para mim uma coluna vertebral” (8). Como Kafka, soube Butor que escrever é um dedicar-se, é romper os dias e as noites, pôr-se em vigília, entregar-se à unidade da obra, é saber que a escrita é uma exigência, a coluna vertebral, a alegria que faz a vida pulsar. Então, para que surge a Literatura? Surge para fazer nascer uma questão, maior que o escritor, porém ligada à vida, à linguagem, ao pensamento. Sua motivação inteiramente artística vem para recriar as coisas, mas vem também, como escreve Ezra Pound, “para manter a linguagem em bom estado” (9), isto é, viva, vibrátil: pois dela tudo deriva.


***


A literatura tem seu tempo, suas exigências e nem todos querem ou podem transpor esse limiar, mas por vezes encontramos em algumas escritas, a partir de obras extraordinárias, uma aceitação, uma austeridade e um rigor que fazem da leitura um corpo magnético. Sim, um corpo que atrai, pois após a leitura de um desses livros queremos outros, mas eles são cuidadosos, têm a paciência necessária para fazer a obrar aguardar. Na verdade, são contidos por ela e aceitam sem hesitar o seu tempo.

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NOTAS:

(1) NETO, João Cabral de Melo. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p. 418.

(2) POUND, Ezra. Abc da literatura. São Paulo: Cultrix, 1997, 33.

(3) ROBBE-GRILLET, Alain. Por um Novo Romance. São Paulo: E. Documentos, 1969, p. 91.
(4) BLANCHOT, Maurice. A Parte do Fogo. Rio de Janeiro: Rocco, 1997, p. 291-330.
(5) KAFKA, Franz. Antologia de Páginas Íntimas. Lisboa: Guimarães Editores, 1997, p. 25-97.

(6) CÉLINE, Luis Ferdinand. Os Escritores. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 108.

(7) BLANCHOT, Maurice. O Livro Por Vir. Lisboa: Relógio D’água, 1984, p. 20-32.

(8) BUTOR, Michel. Repertório. São Paulo: Perspectiva, 1974, p. 217.

(9) POUND, Ezra. Abc da Literatura. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 36.

 

Extraído de: OLIVEIRA, Nilson. A literatura e os possíveis da escrita literária. São Paulo: Lumme, 2010. p.20-24.

Nilson Oliveira é escritor, ensaísta, editor da Revista Polichinello; autor de A Outra Morte de Haroldo Maranhão, IAP-2006; Apenas Blanchot (org.), Editora Pazulin-2009; A Literatura e Os Possíveis da Escrita Literária, Editora Lumme-2010; Nietzsche/ Deleuze: Natureza/Cultura (org.), no prelo, Editora Lumme-2010.

E-mail: revista.polichinello@gmail.com


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