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Dicionário de filosofia de                                Mário Ferreira dos Santos
ONTOLOGIA (Conceito da)

     a) Na Metafisica, IV, 1, Aristóteles empregava estas palavras: «Há uma ciência que estuda o Ser enquanto ser, e seus atributos essenciais. Ela não se confunde com nenhuma das outras ciências chamadas particulares, pois nenhuma delas considera o Ser em geral, enquanto ser, mas, recortando uma certa parte do ser, somente desta parte estudam o atributo essencial, como procedem as ciências matemáticas.
     Mas já que procuramos os primeiros princípios e as causas mais elevadas, é evidente que existe, necessàriamente, alguma realidade à qual tais princípios e causas pertencem, em virtude de sua própria natureza. Se, pois, os filósofos, que buscavam os seres, procurassem esses mesmos princípios, resultaria dai, necessàriamente, que os elementos do Ser são elementos deste, não enquanto acidente, mas enquanto ser. Eis por que devemos estudar as causas primeiras do Ser enquanto ser.»
    Estas palavras de Aristóteles sobre a filosofia primeira (prote philosophia, a philosophia prima dos escolásticos) são ainda o melhor e mais claro enunciado sobre a Ontologia ou Metafisica Geral, como também é chamada, porque estuda o ser enquanto ser.
isto é, tomando-o na sua maior universalidade.
    b) Essa compreensão da Ontologia, no entanto, foi modificada por filósofos modernos, que se colocaram sob a égide de Kant. Para este, conhecemos os fenômenos, e sabemos da existência do noumeno, mas deste não temos nenhuma experiência sensível, isto é, não o intuímos pela intuição sensível, mas apenas mediante uma dialética, que Kant chamou de transcendental.
     A Ontologia seria, então, a ciência do noumeno. A ela caberia o papel especial de estudar o que permanece atrás dos fenômenos, de explicá-los, enquanto os fenômenos caberiam às ciências particulares.
     Por isso, modernamente, costuma-se empregar o termo ontológico, como referente ao ser elucidado, ao ser em geral, à sua razão, ao seu logos; e ôntico ao ente, tomado determinadamente, como fato de ser. Esta divisão evita a confusão entre realidade ontológica e realidade ôntica, que, inseparáveis na ordem do ser, são no entanto, distintas na visualização filosófica. Note-se, ademais, que tal aceitação terminológica não implica a da doutrina kantiana. mas apenas nasce ela de um desejo de clareza.
     Há. outros termos empregados também neste sentido, como ontal, côisico e rêico, que encontramos em filósofos modernos.
    Esse modo de considerar não é, porém, matéria pacifica e universalmente aceita na Filosofia. Os escolásticos não faziam tal distinção, e consideravam tais expressões deste modo: ôntico significa o ente ainda não descoberto pelo espírito como intelligibile in potentia, e ontológico, o ente já esclarecido, descoberto, intellectum in actu. Uma verdade ôntica é uma verdade que está no ser: quando em ato no intelecto é uma verdade ontológica. Ôntico, portanto, pertence à imanência do ente, e ontológico à imanência do ser, captado transcendentalmente.
     Em nossa linguagem filosófica, diríamos que ôntico se refere a toda a esquemática imanente ao ser, tomado in genere ou não, como fato de ser, extra mentis, independente do intelecto, isto é, dos esquemas noéticos de qualquer espécie. E ontológico refere-se a tais esquemas noéticos, (logos do ontos) à esquemática captada pelo intellectus in act, cuja correspondência e alcance, paralelismo ou não, cabe à Ontologia elucidar.
     A Ontologia, como ciência filosófica, surge, na cultura grega, pela ação construtiva de Aristóteles, que a chamava de próte philosophia, filosofia primeira, e também de theologikê epistéme, ciência divina, porque estuda ela os seres mais divinos até alcançar oPrimeiro Motor, o Acto Puro.
     Na filosofia medieval, e sobretudo na escolástica, a Teologia separa-se da Ontologia, porque a transcendência do Acto Puro, ontológicamente examinado, não alcança a totalidade da transcendência do ser infinito, que já é tema fundamental daquela disciplina. Deus não é um objectum da epistéme, da ciência filosófica, mas o termo dessa ciência, o fim a ser alcançado por ela, e não dado como objeto a ser analisado, mas a ser conquistado.
    Andrônicos de Rodes classificou os trabalhos de Aristóteles que deveriam ser editados logo após os livros sobre a Física, e os intitulou de tá (biblia) metá tá physiká, de onde se latinizou o termo metaphysica. Um exame cuidadoso da obra aristotélica nos mostra à saciedade que não se trata apenas de uma classificação, mas da consciência que tinha Aristóteles dessa ciência. Com a escolástica, tais temas, estudados na obra famosa e fundamental de Aristóteles (Da Metafisica), passam a constituir uma ciência rigorosamente delimitada, que estudará o ser na sua imanência e na sua transcendência (post physicam et supra pbysicam), independente da física experimental. Não é o estudo do ser separado do físico e do sensível, como de per si subsistente, como poderia estabelecer-se fundando-se numa posição platônica ou platonizante, on melhor, numa posição como frequentemente, no decurso do processo filosófico, considerou-se como o genuíno pensamento platônico.
    A Ontologia, portanto, toma o ser concretamente, em toda a sua densidade, embora o examine pelos métodos que lhe são próprios, realizando a aphairesis (abstração) do físico e do transfísico. Não é da verdadeira metafísica realizar essa separação, de funcionalidade noética, e considerá-la, depois, como física, o que leva aos perigos do abstractismo, que é a forma viciosa da abstração, e que consiste no considerar ônticamente o que é separado apenas eidèticamente.
    Impõe-se estabelecer aqui tais explicações para evitar a caricatura que se costuma traçar da Ontologia, o que leva a muitos a passar por ela de largo, em vez de se embrenharem em seu estudo, de magna importância para a boa visualização filosófica.
    Desta forma, a Ontologia procura penetrar na intimidade do ser, na sua realidade mais intima, na sua exuberância concreta, disassociada pela actividade noética, mas jamais esquecendo (e assim procede a boa Metafisica) de devolver à sua concreção o que, por aphairesis, foi separado.
  O termo ontologia foi cunhado propriamente por Johannes Clauberg e popularizado por Wolf. Conseqüentemente, pode-se dizer que a próte philosophia de Aristóteles, a philosophia prima dos escolásticos, a Metafísica Geral, e em algumas vezes a Metafisica, referem-se à mesma ciência do ser enquanto ser, que é a Ontologia.
     No modo de considerar a Ontologia, houve, entre os escolásticos, uma dualidade de posição. Os que seguem a linha tomista, consideram-na como o coroamento da Filosofia, e deve ser precedida pela Lógica, pela Cosmologia, pela Psicologia e pela Filosofia matemática. Outros, porém, consideram-na como ciência fundamental, gestada na Gnosiologia, subdividindo-a em Metafísica Geral e em Metafísica Especial, referindo-se esta à metafísica do homem, à Antropologia filosófica, e à metafisica do mundo material, a Cosmologia.
    PERGUNTAS FUNDAMENTAIS DA ONTOLOGIA: Que é o ser? A pergunta quid dos escolásticos é a pergunta fundamental da Ontologia. A Metafísica cabe a pergunta: «Por que os seres que existem existem?» É a pergunta cur dos escolásticos.
     Modernamente, Heidegger considera que a pergunta fundamental da Ontologia é: por que, em suma, há o existente em vez do Nada? Esta pergunta surgiu várias vezes no decorrer do processo histórico da Filosofia.
     Nasce a Ontologia da meditação do homem sobre a mutabilidade, a finitude, o devir mutável e transformador das coisas. Tudo muda, mas o que muda é algo que muda. Mas esse algo, que conhece mutações, enquanto sustentáculo, não muda, é imutável. O mundo do devir é, ao mesmo tempo, a afirmação do mundo do ser. Em face dessa meditação, estrutura-se a Ontologia, ou Metafísica Geral, porque aborda ela a generalidade dos temas metafísicos, que são os temas ontológicos.
     O OBJETO DA ONTOLOGIA: Ante a constante mutabilidade do devir, ante a fugaz experiência dos fatos, que sucedem na permanente transmutação das coisas, na heterogeneidade do acontecer, tudo quanto percebemos é alguma coisa, e esse algo positivo é uma experiência de ser, e não uma experiência de nada, porque se fosse de nada, como seria alguma coisa? Como poderia ser uma experiência de não-ser o que já é alguma coisa?
     Quer na experiência que a intuição sensível nos dá do mundo exterior, quer na experiência intima de nós mesmos, alguma coisa capta sempre alguma coisa, que é alguma coisa.
    Não seria difícil, portanto, desde logo concluir que a nossa primeira experiência é a do ser, a de um ser que se põe ante o nosso ser.
   Mas, desde logo, também notamos que há modalidades nessa experiência, que nos revelam modalidades de ser.
   Vê-se, desde logo, que é da exigência humana que parte a caracterização do objeto da Ontologia.
    Em face do acontecer, a meditação humana, que de imediato capta o ser, termina por considerar que tudo quanto percebe no mundo fenomênico, fluente e mutável, o mundo do devir, que é o mundo da experiência sensível do homem, aponta, na fluência constante dos fatos, que eles apresentam em comum, o serem, em diversas modalidades, não podendo ser reduzidos a um não-ser absoluto, porque a própria experiência nega, terminantemente, consideremo-las puro nada.
    Há, assim, modos de ser, mas tais modos, por sua vez, apontam ainda o ser, pois são modos de ... , e o de que é (o quid) é o ser. Portanto, tudo o que é (quod) tem um ser (quid). E se quod muda, quid permanece o mesmo.
    E se percebemos que o real não é estável, percebemos, porém, que o real é; e se a realidade nos revela modalidades diversas, tais modalidades são. Não sabemos ainda por que é assim ou por que poderia, ou não, não ser assim. Mas já sabemos que é assim. Não se alegue que esse é é uma mera cópula, que se poderia desprezar, como numa língua que não a tivesse. Mas tal ausência não poderia ser considerada como uma não captação do ser, objeto primeiro da nossa experiência, que a postula desde inicio: pois como o nada poderia captar o nada, sem ser?
    E se a língua não tivesse ainda um termo para expressar o ser, se a sua conceituação ainda não se fizera nitidamente exigente de um termo que o apontasse, a experiência dos que usassem essa língua estaria afirmando sempre o ser de todo o predicado afirmado a um sujeito qualquer.
    Portanto, a experiência, desde a intuição sensível até à mais profunda das instituições, afirma que o primeiro objeto de toda experiência é o ser, com sua complexa modalidade, com sua complexa diversidade de aspectos. Um Proteu de formas diversas, sucessivas ou simultâneas, sob diversos aspectos e relações, mas sempre ser.
    O objeto material da Ontologia é, pois, formalidade, a forma do ser. Um real dado pode ser objeto de várias ciências, A nossa experiência do ser pode ser objeto da Gnosiologia, enquanto estuda a relação do conhecimento (sujeito e objeto). Mas a nossa experiência, sob outra formalidade, pode ser objeto da Psicologia. Mas, em ambos, tanto no gnosiológico como no psicológico, objetos diversos da nossa experiência, procuramos, neles, captar o comum em todo objeto da experiência, o ser em sua formalidade de ser.
    E essa formalidade de ser, esse comum, que passa a ser estudado, interrogado que é (quid), eis o objeto formal da Ontologia.
    Portanto, desde o inicio se coloca, ao que pretende estudar tais objetos, que são o campo de ação da Ontologia, a primeira fundamental pergunta que essa ciência deve responder: que é ser? E conseqüentemente: qual o valor do conceito ser?
    Em toda a nossa experiência, em todos os nossos juízos de existência afirmamos o ser. Que é ele? Em que consiste?
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