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Um romance em capítulos dominicais

 

   de

 

                              Jorge Fernando dos Santos

 

 

 

 

                Primavera dos mortos

 

                                                      

 

 

 

                                                               "O autor é uma sombra, a serviço

                                                         de coisas mais altas, que às vezes ele

                                                         nem entende"

                                                                               João Guimarães Rosa     

 

 

 

                                      PRIMEIRA PARTE

                                             1

                                  AGUACEIRO

 

SEXTA-FEIRA quente e abafada em Morro do Calvário. As 12 badaladas do sino da matriz ecoam noite adentro, finalizando mais um dia sem novidades. O que ninguém desconfia, no entanto, é que um acontecimento inusitado não demora a mudar para sempre a vida de pessoas influentes do lugarejo.

      Em questão de segundos, o tempo começa a virar. Sapos e grilos interrompem a serenata noturna. Nuvens escuras, empurradas pelo vento que sopra do nordeste, apagam do céu a lua e as estrelas. Relâmpagos riscam o firmamento e o som da última badalada é abafado por um estalo quando a tempestade, finalmente, começa a cair.

      Alguns minutos de chuva torrencial, com o granizo saltitando nos telhados, são suficientes para que a enxurrada desça enfurecida a colina, pintando as ruas com a lama sanguínea do minério de ferro.

      Árvores de raízes apodrecidas têm seus galhos ou troncos arrancados pelo vento e levados pelas águas, ribanceira abaixo. A queda de um raio sobrecarrega a rede elétrica. A cidade some do breu para ressurgir em intervalos imprecisos sob o clarão de fortes relâmpagos feito aparição fantasmagórica.

      O Ribeirão das Mortes não demora a engordar. Como fera enjaulada que deseja se soltar das amarras, começa a emitir um ruído ameaçador. Moradores ribeirinhos abandonam suas casas e vão bater na porta dos vizinhos de terras mais altas, em busca de abrigo.

      Temem que se repita a tragédia ocorrida três anos atrás, quando a enchente arrastou duas pessoas até o São Francisco, carregou a ponte centenária e enlameou ruas e quintais. Dessa vez, porém, contrariando os temores públicos, a natureza prefere ignorar os vivos para perturbar o sono dos mortos.

      O aguaceiro derruba o muro do cemitério, aos pés da colina pedregosa. A enxurrada profana sepulturas e deixa ossadas à flor da terra, que só serão notadas depois do amanhecer.

      O temporal não dura meia hora, tempo suficiente para causar um grande estrago, instigando na população o sentimento de medo e desamparo diante de forças incontroláveis. E assim como veio, veloz e imprevista, a tormenta segue para longe na crista das nuvens, deixando para trás uma chuva fina que atravessará a madrugada.

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