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Grandes entrevistas

 

Bernard Shaw

Entrevistado por Hayden Church para o jornal “Lyberty”, de 07/02/1931. Extraído de: ALTMAN Fábio. A arte da entrevista. São Paulo: Scritta, 1995.

 

George Bernard Shaw (1856-1950), dramaturgo e ensaista irlandês, nasceu em Dublin, filho de pais protestantes. Sua mãe, professora de canto, possuía uma profunda influência na família - a ponto de Shaw ter abandonado seu emprego de funcionário de uma agência que negociava terras no interior da Irlanda para acompanhá-la rumo a Londres. Na capital inglesa, ele começou a escrever romances, antes de se tornar um respeitado crítico de música e autor de teatro por volta de 1890. Entre 1892 e 1930, Bernard Shaw escreveu mais de vinte peças, tragédias e comédias de cunho filosófico e humor ríspido, entre as quais se destacam Cândida, César e Cleópatra e Pigmaleão. Conhecedor de sua língua ferina, capaz de produzir frases epistolares, Shaw concedeu dezenas de entrevistas durante sua vida e não perdia uma oportunidade para enviar cartas polêmicas aos jornais ingleses e americanos.

                                   

                                           * * *

 

- O que é que o senhor faria, perguntei a George Bernard Shaw, se fosse ditador da Inglaterra?  

 

É bem provável que eu ficasse maluco, como Nero, respondeu. Qual a razão para a pergunta boba?

 

Em uma entrevista recente, feita em parte durante uma cansativa caminhada por Malvern Hills, o senhor Shaw usara essa resposta característica, que talvez fosse tão interessante quanto qualquer outra que o mais importante e espirituoso dramaturgo do mundo já tinha usado. Durante essa entrevista, em resposta a uma pergunta feita por Tomas Alva Edison, revelou como preferia morrer, e negou que ele, provavelmente o mais rico e renomado escritor vivo, fosse bem-sucedido na vida.

Abordando superficialmente vários assuntos, ele expressou opiniões típicas do grande dramaturgo sobre as recentes vitórias das mulheres sobre os homens e, quando discutia o futuro do filme falado, deu a sua opinião sobre a pergunta tão discutida: Charlie Chaplin devia fazer filmes falados? Mas Shaw estava preocupado com assuntos mais importantes, pelo menos no princípio. E em uma das minhas primeiras perguntas, quando discutia a depressão mundial, consegui dele uma das declarações mais incisivas e convincentes, bem como controvertidas, que já fizera nos últimos anos.

 

- Como o senhor vê o futuro econômico do país?, perguntei-lhe.

 

As coisas vão continuar piorando ou a velha Inglaterra vai conseguir resolver seus problemas, como sempre? Já está tarde para falar da Inglaterra, respondeu, ou de qualquer outro paizinho tentando resolver seus problemas. Hoje, a pergunta é: a civilização vai conseguir resolver seus problemas? Se o navio afundar, a Inglaterra irá junto. E não esqueça que, até hoje, esse navio sempre afundou. A Mesopotâmia já foi mais civilizada do que a velha e a nova Inglaterra, mas afundou a tal ponto que eu só ouvi falar de Sumer quando já tinha mais de 60 anos. Pela sua expressão, vejo que o senhor nunca ouviu falar dela. E a civilização sumeriana era só mais uma dentre uma meia dúzia de outras civilizações. Nós estamos aumentando a lista de civilizações extintas com a mesma rapidez com que os astrônomos aumentam a lista de estrelas descobertas. Todos aqueles que estudam o assunto com seriedade sabem que, afinal, a estabilidade de uma civilização depende da inteligência com que a riqueza e o trabalho são divididos e da veracidade da educação que as crianças recebem. Não dividimos a riqueza: nós a atiramos na rua para que os mais fortes e ambiciosos briguem por ela, depois de dar a parte do leão para os ladrões profissionais educadamente chamados de proprietários. Nós contamos uma porção de mentiras para as nossas crianças e punimos qualquer um que tente contar a verdade. A nossa solução para as conseqüências das nossas besteiras são as tarifas, a inflação, as guerras, as vivissecções e as inoculações - vinganças, violências e magia negra. Quanto à reforma, nós não temos nem bom senso nem energia suficiente para mudar nosso destino. Vamos falar de outra coisa!

 

Obedeci, fazendo duas perguntas que, com outras, foram feitas por Edison a candidatos à bolsa de estudos fundada pelo famoso cientista americano. Quando fez essas perguntas, é provável que Edison não tenha pensado nas resposta que George Bernard Shaw daria a elas, mas eu pedi que o senhor Shaw respondesse às mais importantes, salientando que suas respostas seriam de grande interesse. E, sem dúvida, foram. Especialmente a primeira.

 

- A pergunta de Edison foi: "Ao pensar na sua vida antes de morrer, que fatos o fariam decidir se ela foi um sucesso ou um fracasso?" Ao fazer essa pergunta, comentei que qualquer tolo sabia que Shaw tinha atingido o sucesso que poucos homens alcançariam, mas, ao responder, como se perceberá, ele ignorou o comentário.

 

Não estou morrendo, disse ele, não mais do que qualquer outra pessoa.  Pessoalmente, eu preferia ter uma morte tranqüila. Minha vida não foi um sucesso. Os outros é que resolveram me classificar como uma pessoa bem-sucedida, mas isso é tudo. Eu mesmo escrevi que a morte torna todos os homens iguais. A morte revela o óbvio. Ainda não estou bem morto, só estou sete oitavos morto."

 

- A segunda pergunta de Edison foi a seguinte: Se o senhor pudesse ditar e colocar em vigor um sistema educacional para a população mundial, o que o senhor consideraria essencial? O senhor Shaw respondeu da seguinte forma:

 

A leitura (incluindo a leitura de música), a escrita, a aritmética, as boas maneiras seriam compulsórias e essenciais; os princípios do direito, a economia e a física (incluindo a astrofísica) seriam as qualificações profissionais além do desempenho de operações manuais sob supervisão; o resto seria o que o aprendiz fosse capaz de aprender.

 

O senhor Shaw está atento às possibilidades dos filmes falados. Ele próprio fez um novo filme falado há pouco tempo e também concordou, pela primeira vez, com a adaptação de duas de suas peças para o cinema falado.

 

- Existe algum aspecto em particular dos filmes falados que interesse ao senhor no momento?, perguntei-lhe. Qual foi o melhor filme já feito na sua opinião?

 

Os melhores filmes que já vi são os russos , respondeu. Aqui na Inglaterra, nós estamos fazendo o possível para que eles não sejam vistos porque são honrados demais para nós. Não estou interessado em nenhum aspecto em particular dos filmes falados: estou interessado no fato importantíssimo de que um método de difusão da arte dramática foi descoberto, o que reduz os nossos velhos e baratos métodos de palco de audição e visão deficientes a um disparate. E as pessoas que trabalham em teatro ainda o ignoram e dizem que ele não vai durar muito porque o público gosta da realidade.  Como se Charlie Chaplin não fosse muito mais real para nós do que qualquer ator de teatro do mundo! Se isso já vale para um Charlie mudo, que dirá um Charlie falante. É lamentável ouvir os nossos velhos donos de teatros dizendo besteiras para conseguir a absolvição em um julgamento de falência.

 

Como as respostas dele tornam evidente, o senhor Shaw continua uma pessoa dinâmica apesar dos seus 75 anos. Se ele está "sete oitavos" morto, como afirma, é certo que consegue tornar o fato imperceptível. O cabelo e a barba (que no filme falado que fez recentemente, ele declarou em tom de zombaria que tinha intenção de pintar) e as famosas sobrancelhas mefistofélicas ficaram, é verdade, grisalhos, mas ele continua firme e cheio de energia. Há pouco tempo, um famoso cientista europeu descreveu-o como "o único velho que tem o cérebro de um jovem". Com freqüência, quando está em Londres, ele anda do seu apartamento em Whitehall Court, em Thames Embankment, até o Royal Automobile Club, em Pall Mall, e nada antes do café da manhã!

 

A minha entrevista com ele aconteceu em Malvern, em Worcerstershire, onde, após o recente festival das suas peças, ele tirou férias. Até então ele falara enquanto andava de um lado para o outro do seu escritório na suíte que ele e a senhora Shaw ocupavam em um hotel pequeno mas bem gerenciado. Mas então, afirmando precisar de um pouco de exercício físico, ele me levou para o que chamou de "passeio" em Worcestershire Beacon, a montanha mais alta de todas as da redondeza, que são erroneamente conhecidas como Malvern Hills.

 

Diversas vezes, para surpresa dos habitantes locais - que em sua maioria preferem subi-la no lombo de burros relutantes -, Shaw subia direto para o topo da montanha Worcestershire Beacon, quase 450 metros acima do nível do mar. Naquela ocasião em particular, compassivamente, embora não visse a hora de repetir o feito, ele se contentou com a subida menor pelo lado norte da grande colina, por causa do companheiro exausto. Subindo inclinações rochosas e andando com energia por trilhas perigosas do caminho sinuoso e, por vezes, inexistente, tendo abismos terríveis abaixo, ele andava com a mesma facilidade com que caminhara pelas ruas de Malvern. Depois de uma hora, nós já estávamos vários metros acima e tínhamos uma visão gloriosa de Malvern Hills, da pitoresca cidade, com seu antigo mosteiro, e do rio Avon, serpenteando em direção a Stratford. Durante essa longa caminhada, a conversa girou em torno do primeiro filme falado de Emil Jannings, com o qual Shaw não se entusiasmou muito, da peça Journey's End (sobre a qual parece que foi pedida a opinião de Shaw, quando ela circulava entre os donos de teatros) e da luta de boxe profissional, na qual, como todos sabem, o autor de Cashel Byron's Profession mantém um interesse vivo e especializado.

 

- Perguntei porque ele achava que a Inglaterra não seria capaz de produzir um campeão da categoria peso-pesado.

 

Há dúzias de homens por toda a Inglaterra, respondeu, que podiam vencer qualquer campeão no ringue com a mesma facilidade com que Tunney venceu o indestrutível Carpentier e seu vencedor, Dempsey, se esses homens se dedicassem ao boxe. Mas eles preferem outras profissões, isso é tudo.

 

Era inevitável que a conversa se voltasse para as peças de Shaw, e eu disse que se comentava que, quando perguntado se alguma das suas peças era a favorita, ele respondera que gostava muito de Heartbreak House, um quadro, nas palavras do seu prefácio, "da Europa culta e ociosa" antes e durante a guerra.

 

Talvez eu tenha dito algo parecido, admitiu Shaw. Mas peças como Heartbreak House são caras.

 

Olhei para ele inquisitivo, imaginando que ele queria dizer que elas exigiam um elenco caro.

 

É verdade, acrescentou ele, foi necessário meio século de uma tolice internacional e, para completar, uma guerra para que ela fosse escrita. Há sempre vários assuntos, comentou ele um pouco depois, que dariam grandes peças, se os teatrólogos conseguissem enxergar as possibilidades desses assuntos. As condições de moradia nos cortiços de Londres já eram um escândalo nacional um século antes da minha peça Widowers's Houses.

 

Falamos sobre Macbeth por causa da montagem de Sybil Thorndike, bem recomendada pelo senhor Shaw, e ele comentou que sempre quis ver uma montagem dessa peça toda em dialeto escocês.

 

Eu acho que seria bastante impressionante, declarou.

 

- Voltando ao assunto do cinema, perguntei a Shaw se, vendo-se como outros o viam através dos seus dois últimos filmes, ele havia feito alguma nova descoberta a respeito de si próprio.

 

Só descobri que estou ficando velho, respondeu, e que a minha boca está ficando torta. Mas eu fiz uma pequena descoberta a meu respeito, quando me vi na tela pela primeira vez há vinte anos. Eu já tinha notado que o meu pai tinha uma grande semelhança com sir Horace Plunkett, o fazendeiro irlandês, e, quando me vi no meu primeiro filme, percebi que também sou parecido com Plunkett. Aquele filme foi um projeto extraordinário que o Barrie executou antes da guerra, continuou Shaw. Acho que ele se destinava a levantar fundos para alguma causa beneficente e várias celebridades tomaram parte nele. Eu me lembro que ele começou com um jantar no Savoy, sendo que o um dos convidados era o, então, senhor Asquith. Depois eu, o Granville Barker e dois ou três outros escritores fomos levados a Elstree e vestidos de cowboy. Com aquelas roupas, nós fizemos todo tipo de sandice, como perseguir cavalos e andar de motocicleta. Uma vez, cinco pessoas me perseguiam e eu tive que cruzar vários precipícios de motocicleta. É bem verdade que os precipícios tinham pouco mais de dois metros, mas, na minha idade, não me agrada muito cair, mesmo que de uma altura de dois metros. Mas o público não teve o prazer de testemunhar essas extravagâncias, já que o Barrie, no final, decidiu jogar o filme fora. Eu acho que depois ele usou parte desse filme em uma peça que escreveu para Gaby Deslys.

 

Eu queria ser capaz de reproduzir a engraçada pronúncia irlandesa que Shaw usou para dizer isso tudo. Essa é uma das razões que tomam as conversas com ele tão divertidas. Nenhuma entrevista com George Bernard Shaw, o mais ardente feminista, ficaria completa sem um comentário sobre as mulheres. Por isso a minha última pergunta foi a seguinte:

 

- Por que, na sua opinião, as mulheres têm derrotado os homens em tudo nos últimos tempos? Amy ]ohnson, por exemplo, e a outra inglesa que conquistaram a Taça do Rei de corrida aérea e o Prêmio do Rei no campeonato de rifle de Bisley

 

O que há de tão surpreendente nisso?, perguntou Shaw. Foi um avião que voou para a Austrália e não a senhorita ]ohnson. Ela apenas dirigiu o avião. O Prêmio do Rei foi conquistado por um rifle. Existe alguma razão para que os olhos de uma mulher não possam alinhar uma alça de mira, e para que ela não use a inteligência para calcular o vento e puxar o gatilho tão bem quanto um homem? Se o senhor ler o jornal de hoje verá que muitas mulheres tiveram bebê ontem sem a ajuda de nenhuma máquina. Prove que um homem conquistou um feito tão surpreendente e dificil e nós vamos poder sentar e discutir o significado da sua vitória com seriedade.

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