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Grandes entrevistas

 

Décio Pignatari

Entrevista apresentada no programa Roda Viva, da TV Cultura, em 12/11/ 1989, sob o comando de Jorge Escosteguy, com a participação de Alberto Helena Júnior, Maria Tereza Sadek, Gabriel Priolli Neto, Hamilton dos Santos e Julio Carlos Duarte.

O escritor, poeta e professor universitário Décio Pignatari é paulista de Jundiaí e tem 62 anos. Foi um dos criadores do movimento da poesia concreta e é apontado como um dos maiores especialistas no estudo e análise dos meios de comunicação de massa, especialmente a televisão. Boa noite, professor!

Décio Pignatari: Boa noite.

Jorge Escosteguy: Ontem nós terminamos uma maratona – nós, os telespectadores, e os candidatos–, uma maratona da propaganda político-eleitoral pela televisão. Eu queria que, neste começo de Roda Viva, o senhor nos desse uma rápida análise desses programas. Nós avançamos, sem dúvida, na democracia, mas eu gostaria de saber se nós avançamos também na comunicação com o público, na comunicação com o eleitor para convencê-lo a votar neste ou naquele candidato?

Décio Pignatari: Sim, sem dúvida, avançamos. Sem dúvida avançamos, quer dizer, ao contrário do que alguns analistas diziam – e, aliás, continuam dizendo ainda hoje, especialmente na imprensa  escrita –, que esse circo era muito chato e que ninguém iria assistir, que isso era uma perda de tempo... Deu-se o contrário, isto é, o horário gratuito do TSE [Tribunal Superior Eleitoral] despertou um enorme interesse: todo mundo acompanhando em todas as classes sociais. E, realmente, fazendo a cabeça, decidindo e tendo um papo, assim, mais vivo com os eleitores.

Jorge Escosteguy: O senhor acha que os candidatos em geral tentaram passar realmente um programa de governo, suas idéias ou fizeram mais uma jogada de marketing, de construção de uma imagem que, de repente, não é aquela que corresponde à realidade?

Décio Pignatari: Bem... Eles, como sempre, usam de todos os truques para cativar o eleitor, pegar o voto útil. Mas uma coisa é certa, do ponto de vista de televisão... Televisão é um meio de baixa definição, então a regra primeira é a seguinte: na televisão, quem faz discurso perde, não se sai bem, isto é, você tem que realmente que ter um tipo de conversa mais cool, mais fria, mais direta com o telespectador. E não pode fazer discurso. Então, veja um Ulysses Guimarães, veja outros que só liam o teleprompter [equipamento utilizado em programas de televisão e que mostra o texto a ser dito pelo apresentador]... Um desastre completo!

Jorge Escosteguy: De repente, talvez esteja aí uma explicação para o sucesso do Enéas [Carneiro (1938-2007), dono de um estilo visual e verbal extravagante, foi candidato à Presidência da República por três vezes pelo Partido da Reedificação da Ordem Nacional (Prona). Foi apenas eleito para o cargo de deputado estadual, em 2002, sendo o candidato mais votado de São Paulo], por exemplo, que durante 15 segundos...

Décio Pignatari: De fato, sim.

Jorge Escosteguy: Falou, falou, falou, “meu nome é Enéas” e...

Décio Pignatari: Mas, de qualquer maneira, alguém haveria de pintar, né? Porque esse grande circo eletrônico, democrático, é inevitável. Para quem acompanha um pouco ou conhece, as posições políticas de todos eles ficam muito claras. É muito interessante você acompanhar, desde a direita à esquerda, os discursos todos, aquelas siglas que não significam nada, gente popular semiletrada falando, não é? Então, boa parte disso é o folclore. Enéas faz parte do folclore desta campanha.

Gabriel Priolli Neto: Eu queria que você falasse um pouquinho sobre o formato do horário eleitoral. O senhor acha que o fato... Não está um pouco superado esse esquema de um programa contínuo – nesse caso teve 70 minutos de duração – isso não é um pouco exagerado? Não seria melhor... Você não acha que os diversos discursos dos candidatos se neutralizam dentro de um horário eleitoral com 70 minutos de duração? Quer dizer, você assiste um sujeito falando bem dele, dois minutos depois tem um sujeito falando mal dele... No final não há uma neutralização dos discursos?

Décio Pignatari: Nós estamos no começo, né, Priolli? Nós estamos no começo, quer dizer, depois de 29 anos [o Brasil não teve eleições diretas de 1960 a 1989] é natural que você vacile um pouco no formato. Quando houver um outro tipo de intervenção, quando não for, eventualmente, obrigatório o horário eleitoral, você poderá ter alguma coisa diferente. No momento, eu acho, é inevitável, porque é preferível que você apresente logo todo o naipe, todo o painel do jogo de cartas de uma vez para o eleitor que é jejuno [ignorante], que é semiletrado, que na verdade é quase analfabeto em matéria de eleição. E a televisão está funcionando, assim, como guia de cego, né?

Gabriel Priolli Neto: E se os partidos tivessem, digamos, um horário distribuído ao longo da programação? Como se fossem uma mídia normal de televisão, um anunciante normal, que se revezariam ao longo da programação... Pequenas janelas ao longo da programação inteira, pegando de manhã até de noite... O que você acha dessa idéia?

Décio Pignatari: Pode ser feito! Acho que pode ser feito. Não há nada que impeça que isso vá acontecer. Talvez seja excessivo no momento, porque o número de candidatos também é excessivo, contudo isso também é inevitável. Na Europa foi assim também; quando você se redemocratiza, é inevitável o circo, a multiplicação, a fragmentação de partidos e candidatos. A Itália é um exemplo disso. A Cicciolina [(1951-) húngara nacionalizada italiana, mais conhecida por ter sido atriz de filmes pornográficos, tornou-se ativista política desde os anos 1980 lutando por questões ambientais e pelos direitos humanos. Em 1987 foi eleita para o Parlamento italiano], ainda hoje, é um resquício daquilo que veio no pós-guerra.

Hamilton dos Santos: Em 1984, numa entrevista você dizia que... Quando ocorria o movimento das diretas, você dizia que o fato de a Globo estar, a princípio, de fora – não estar dando a cobertura adequada que se pretendia ao fato – não tinha muita importância, porque a televisão não comandava a discussão política, mas quem comandava era a imprensa. Passados esses cinco anos, principalmente hoje, com essa campanha eleitoral, quando a televisão acabou se tornando quase que uma personagem, você continua achando a mesma coisa, que a imprensa comanda a discussão política?

Décio Pignatari: Não. A discussão, sim. A televisão mostra o fato político e a imprensa escrita analisa o fato político. Nesse sentido, de resto, o nível de análise política da imprensa escrita é muito bom no Brasil. De fato, a televisão vem antes: ela realmente joga o fato e, em muitos casos, a imprensa simplesmente se limita a comentar, como tem acontecido. De fato, assim é. A televisão é muito mais rápida. De resto, nós temos aqui um evento espantoso, que é esse que está ocorrendo aí, dizem, inclusive, na própria TV Globo, num seminário em que fui lá 40 dias atrás com o pessoal de produção, que o que nós estávamos assistindo não era uma disputa de presidenciáveis, mas era uma disputa de mídias presidenciáveis. O Roberto Marinho ainda pode virar presidente do Brasil!

[risos]

Alberto Helena Júnior: O Escosteguy, quando fez a primeira pergunta a você, colocou a questão do debate, do personalismo e do programa de governo. E eu te pergunto: você, fazendo uma comparação com as últimas eleições há 29 anos e meio atrás, você, que é um homem dos signos e dos símbolos... nós tínhamos... me parece, apenas, não tínhamos a televisão, o veículo a serviço, mas que toda a estrutura, o bojo da campanha é muito similar, é muito parecida. Quer dizer, você tinha lá a espada do marechal Lott [(1894-1984) Henrique Batista Duffles Teixeira Lott, militar brasileiro que distinguiu-se pelo legalismo e por suas convicções democráticas, foi candidato derrotado à Presidência da República, em 1960, e afastou-se da vida pública por discordar da ditadura militar], que era contra a corrupção, contra o golpe, pela legalidade... Tinha o Jânio Quadros com a sua vassoura contra a corrupção, para limpar etc e tal. Mais ou menos, na essência, o quadro que nós temos por aí. E as pessoas votavam mesmo em nomes, né? Como em 1950 votaram também, até mesmo para um ex-ditador [Getúlio Vargas]. Como é que você encara isso? Em que medida a televisão realmente pode entrar para mudar essa estrutura de diálogo entre o candidato e o eleitor?

Décio Pignatari: A televisão, para começar, é muito rápida. A televisão tem a rapidez e caminha junto com o computador. Não é um acaso que o TSE está preparado para dar resultados, assim, trinta vezes mais rapidamente do que há 30 anos. E a televisão é rápida. Você dificilmente poderia ter uma visão assim tão imediata de tantos candidatos em tantos lugares ao mesmo tempo. Flagrantes de comícios em todas as partes do Brasil. Nesse sentido, é muito importante essa rapidez com que você vê o todo da situação. Em outros tempos, não, você tinha que ter... tinha que revelar o filme, a fotografia e mandar despachos e tal, né? Era o jornal. A televisão, nesse sentido, tem essa tremenda rapidez e tem o seguinte: exceto o que ocorreu com a rádio, que foi o primeiro veículo realmente nacional, nós temos que levar em conta isto: a televisão se tornou nacional. Eu sei por que ela se tornou nacional! [risos] Tornou-se nacional numa jogada da Embratel com a Globo, mas se tornou um tremendo veículo de massa nacional, verdadeiramente nacional. E isso muda tudo. Muda tudo, porque é um país em que vem desde o analfabeto até o filósofo, ao mesmo tempo, se manifestando diante de candidatos.

Alberto Helena Júnior: Mas a linguagem continua sendo a mesma. São jingles, são símbolos, tocar o emocional do...

Décio Pignatari: Houve uma pequena mudança. Havia símbolos mais populistas em outros tempos. Marmita, vassoura... Agora estamos mais ecológicos, né? Tem passarinhos, essas coisas... [risos]

Maria Tereza Sadek: Décio, nas últimas eleições, há 29 anos, o eleitor saía de casa e ia até o comício. Então, você tinha um corte entre a vida privada e a vida pública: para chegar na vida pública, o eleitor teria que sair da sua casa. Hoje – acho que você tem toda a razão – nós temos a televisão, e o comício que impera é o comício eletrônico. Então, é o candidato que chega na casa do eleitor. Que conseqüências você vê nessa distinção entre o público e o privado, comparando as eleições de 29 anos atrás e as eleições deste momento, quando é o candidato que chega na casa do eleitor e, ao chegar na casa do eleitor, não existe uma distinção entre o eleitor-analfabeto e o eleitor-filósofo, como você está chamando?

Décio Pignatari: De fato, você tinha grandes comícios onde a massa [enfatiza] tinha que ir e era o único modo de você saber o que estava acontecendo, não é? Em geral, da classe média para cima, mais letrada, não ia à comício. Aguardavam as notícias pela imprensa, decidiam pelo rádio, decidiam, julgavam. Eventualmente, quando havia alguma coisa semelhante a um documentário cinematográfico.... Estava muito mais distante. Candidato e povo e eleitor estavam mais distantes. Hoje, eles estão mais próximos e, inclusive, as reações são mais rápidas. Era difícil que você assistisse a uma surpresa eleitoral. Naqueles tempos, era um pouco difícil. Mesmo sem os ibopes, mesmo sem os levantamentos de opinião previamente...

Maria Tereza Sadek: Ainda quando alguém dissesse “não quero os votos dos marmiteiros” [frase atribuída pelos getulistas ao Brigadeiro Eduardo Gomes, candidato à Presidência pela UDN cujo slogan de campanha era "Vote no brigadeiro, que é bonito e é solteiro"]...

Décio Pignatari: Ainda, quer dizer, era muito difícil uma surpresa nas urnas! E hoje já começa a acontecer isso daí. As reações são muito rápidas. O eleitor, o povo vai aprender muito rápido para saber onde está o seu verdadeiro interesse. Então, há surpresas realmente. Os meios de massa agem rapidamente e fazem a cabeça rapidamente e as pessoas decidem de um modo, às vezes, surpreendente.

Júlio Carlos Duarte: Você não acha que o horário obrigatório é uma violência ao sagrado direito do espectador de poder mudar de canal? Parece que está todo mundo mais aliviado, porque o horário acabou...

Décio Pignatari: Isso se o mundo fosse uma abóbora chamada televisão! [risos] Ele pode desligar a televisão, não é? Creio que a televisão, tal como acontecia com pasta dental e toalhas higiênicas 30, 40 anos atrás, está na sua fase didática. Você tem que ensinar as pessoas a usarem isso. Tem que ensinar a usar a televisão. Tem que ensinar a dialogar, então essa fase didática vai durar ainda mais umas duas ou três eleições e depois haverá acomodações. Não vejo nenhum direito sagrado nesse sentido. Nós suportamos desde o Getúlio Vargas... do terrível Getúlio Vargas, que é o responsável por quase toda a porcaria que está aqui . O sistema todo é montado. Nós engolimos A Hora do Brasil [programa radiofônico mais antigo do hemisfério sul, que tem como foco principal as ações do poder executivo. Está no ar desde 1935 e sua transmissão se tornou obrigatória para todas as rádios brasileiras em 1938] há 40, 50 anos... Onde está o sagrado direito da informação? Veio a "Nova República", veio a "Novíssima", veio tudo e a Hora do Brasil continua. Ninguém tem coragem de dizer isso. Que acabem com isso aí! Isso só serve para você anotar não-sei-o-quê, funcionalismo público. E, no entanto, no momento não acho que não é, não, acho que as TVs ganham bastante dinheiro e acho que, no momento de prestar um serviço público, não há nenhuma violação. Eventualmente, seja demasiado o tempo ou talvez o formato não seja o melhor, contudo é um início. De qualquer maneira, entra no horário nobre, substituiu novela e despertou enorme interesse.

Hamilton dos Santos: Você fala em ensinar a usar a televisão. A quem caberia essa missão ou como ela poderia se dar?

Décio Pignatari: Não, isso está ocorrendo. Está ocorrendo. Todo mundo, desde programadores visuais, produtores, profissionais – amadores ou não –, os protagonistas que se apresentam, a imprensa que julga, todo o sistema dos meios de massa... Estão aprendendo, estão fazendo.

Hamilton dos Santos: Interna e externamente?

Décio Pignatari: Externa e internamente! O público está julgando.

Maria Tereza Sadek: Você acha que o horário gratuito de alguma forma desobriga um candidato de participar de debate, porque ele tem garantido a sua presença na casa do eleitor, ainda que ele não participe dos debates?

Décio Pignatari: Não, aí foi um caso especial. Simplesmente, o Collor estava por cima. Foi uma jogada, um golpe de mestre do Roberto Marinho e ele... Saiu! Foi tão surpreendente, inclusive surpreendente porque está à frente até hoje nos levantamentos de opinião, que apanhou todo mundo de surpresa e, claro, desmoraliza uma porção de idéias em relação a certos partidos e tal, mas não totalmente. Seja como for, a verdade é que o candidato prefere não se desgastar. Isso é claro. Ele saiu tão na frente, galopando tão na frente, que qualquer debate, eventualmente, o prejudicaria. Não sei, não foi totalmente correto moral e politicamente. Num ponto de vista mais honesto, isso está errado. Tem que debater! Contudo, se ele vai para o segundo turno – como é quase certo –, ele irá debater. De resto, pela própria Globo, como já está prometido, não é? Acho que ele pode não querer e o público julga, quer dizer, nós temos uma espécie de marketing eleitoral, político, ideológico. É o público que decide. Se ele fez bem ou se fez mal, as urnas vão dizer. Acho que ele tem o direito de não dizer. Ele pode não querer participar do debate por uma questão de tática política. Estrategicamente, isso é muito mau para um político que sempre aparece de modo indireto, praticando um pouco de ventriloquismo, na base do Barão de Münchausen [Karl Friedrich Hieronymus von Münchhausen (1720-1797), militar alemão conhecido como o maior mentiroso do século devido às suas histórias mirabolantes]. [risos] Ele realmente não aparece, só aparece indiretamente e, em todo caso, essa tática está dando certo. Esta tática está dando certo, mas, em compensação, o mundo não termina aí, nós não estamos vendo... É apenas o começo de uma longa história e certos candidatos, realmente, têm se saído bem, têm passado suas mensagens. Você está conhecendo a cara, o jeito deles. Está vendo também quais deles são apenas candidatos pessoais, quais deles são apenas partidos, quais deles são ambas as coisas.

Gabriel Priolli Neto: Décio, esse tema, televisão, acabou sendo um dos temas quentes da campanha, né? Especialmente... A relação entre o candidato [Fernando] Collor de Mello e o doutor Roberto Marinho foi bastante lembrada por alguns candidatos que, exatamente a propósito desse tema, chegaram inclusive a contestar... Disseram que depois vão contestar judicialmente o suposto monopólio que a Globo exerceria sobre os meios de comunicação. Como é que você vê essa questão colocada agora no âmbito de um novo governo? Você acredita que esses candidatos – mais diretamente o Leonel Brizola, mas também há outros candidatos que se manifestaram contra a Rede Globo e contra o esquema em que a televisão está organizada no país – efetivamente tomarão medidas se chegarem ao poder, no sentido de mexer com a estrutura em que as comunicações estão montadas no país ou foi retórica eleitoral?

Décio Pignatari: Não. Para começar, certas declarações do Brizola e do próprio Lula não têm apoio na Constituição. A Globo não tem monopólio, não é verdade. O que acontece é que, politicamente, ela conseguiu manobrar muito bem. Ela foi a emissora que surgiu com a ditadura, se fez com a ditadura, se organizou junto [enfatiza] com a ditadura... Ela surgiu, inclusive, para esmagar a TV Record, para evitar o protesto, aí lançou o Festival Internacional [da Canção. Realizado anualmente de 1966 a 1972 no Maracanãzinho, Rio de Janeiro, foi um dos mais importantes eventos da música popular brasileira]. Ela veio com o capital estrangeiro, se montou e se organizou com alta competência, dispensou o capital estrangeiro e tudo mais. E, como disse um funcionário da Embratel [Empresa Brasileira de Telecomunicações], há vários anos, quando fui fazer um seminário lá no Rio de Janeiro, a coisa era assim: “Para onde vai a Embratel, vai a Globo; para onde vai a Globo, vai a Embratel”. E o Antônio Carlos Magalhães [(1927-2007), empresário e político baiano com influência muito grande na política nacional até sua morte] está aí para não deixar ninguém mentir que, se você tem poder político de influenciar, você influencia. O Estado de S. Paulo relatou coisas espantosas: um diálogo entre o Roberto Marinho e o presidente da República em que você não sabia realmente quem era o presidente da República! Aquilo é espantoso! Agora, de qualquer maneira, não é um problema de monopólio... A própria Constituição prevê aquilo que, enquanto escrevi sobre televisão preguei muito, que é a organização, como se faz na Europa, como se faz nos Estados Unidos. Você tem que ter um órgão [enfatiza]. Nada de Identel, nada de coisa... Nem policial e nem o governo central que vai distribuir canais ou cortando canais de gente. Não! Você tem que ter um [enfatiza] órgão – com representantes de muitos setores, inclusive do interesse público, empresariado e tal – que vai decidir, no âmbito do legislativo, no âmbito do Congresso, a quem conceder canais ou não conceder ou a quem e que canal cortar, eventualmente, se abusou da concessão. Isso vai ser extraído do executivo. Isso está na Constituição. O problema é que [alguém] precisa organizar isso, de modo que não se trata de monopólio. É um erro do Brizola falar que é monopólio e que ele vai acabar com o monopólio da Globo. Isso, na verdade, é ditatorial, é autoritário, porque não [enfatiza] é monopólio. Na verdade, a Globo dominou, porque domina o mercado e todo mundo quer falar para a Globo. E as relações entre a mídia dominante e o governo são relações de poder. Ela influencia muitíssimo as decisões do governo inclusive e, naturalmente, tem essa força. Essa força só foi recentemente ameaçada pelo SBT [Sistema Brasileiro de Televisão].

Gabriel Priolli Neto: Agora, de qualquer forma, qualquer ação que se faça contra a Globo ou qualquer outra emissora de televisão terá que passar pelo Congresso Nacional, porque as regras da nova Constituição são essas. O presidente não teria poder para nenhuma medida exclusiva...

Décio Pignatari: Não tem poder, e não só o presidente. É preciso lembrar que, ainda hoje, nem o sistema do Estado Novo foi liquidado e nem o sistema militar foi liquidado. Desde a Petrobras, Correios e Telégrafos... até o terceiro escalão os militares mandam ainda. Vamos lembrar, é bom lembrar disso. Segundo, não basta você organizar. Os meios de você impedir ou cercear que um canal evolua são muitos, são muitos. Era assim na ditadura, hoje é muito menos,  naturalmente, mas é muito simples. Você disse alguma coisa desagradável, que não agradou a alguns grupos de interesses da área governamental, mas você tem equipamentos a serem importados,  tem guias de importação e, de repente, recebe um telefonema de algum setor lá [dizendo]: “Olha, sabe aquela guia e tal? Ela se extraviou, você não pode retirar da alfândega”. Você começa a ter um monte de pressões de todos os lados para evitar isso. Mas isso vai acabar e tem que acabar!

Gabriel Priolli Neto: Você acha, de fato, que isso vai acabar? Quer dizer, existem condições políticas para que possa acontecer qualquer mudança no setor de comunicações, para que a oposição a esse setor tenha condições de fazer essa mudança?

Décio Pignatari: Claro que existe! Claro! Evidente que, se o Collor for presidente, ele vai ser quase um estepe do Roberto Marinho e as coisas não vão mudar tão rapidamente. O Roberto Marinho e a Globo continuarão tendo hegemonia. Disso não duvido, mas as condições da lei, as condições do Congresso são bem diferentes. Isso já não será tão facilmente conseguido.

Alberto Helena Júnior: Décio, eu queria colher um fragmento aí do que você está dizendo e dar um corte na história, voltar uns vinte e poucos anos atrás, quando você disse que a instalação desse poder que é a TV Globo deu-se na medida em que esse poder instituído queria evitar o protesto, que era liquidar com a TV Record [a mais antiga emissora de televisão do país, foi fundada em 1953 por Paulo Machado de Carvalho]. E há muito fundamento no que você está dizendo, mas eu pergunto uma coisa: aqueles festivais, os musicais, que eram veículos para aquela música de protesto político, muito claramente engajada, muito definida, teve um breque exatamente em cima do AI-5 [Ato Institucional nº 5, baixado em dezembro de 1968, no governo do general Costa e Silva, representou o recrudescimento da ditadura militar já instalada no país desde 1964 e destinava-se a reprimir tudo que fosse considerado contrário do regime. Muitos artistas e intelectuais sofreram perseguições, prisões e tortura] e do Tropicalismo, que você foi um dos inventores. Você foi um dos culpados, né? Você, o Caetano [Veloso] e tal e coisa. Como é que você vê aquele movimento hoje, com o distanciamento do tempo, nesse sentido de que a música popular era - via televisão - um instrumento de protesto, um instrumento político que se levantava contra, por exemplo, os programas do Chacrinha e Jovem Guarda, que eram dois programas estereótipos do poder, da chamada alienação, como se usava dizer na época? Então, de repente, com o Tropicalismo isso tudo esboroa e o Chacrinha é resgatado para a intelectualidade e a Jovem Guarda também. Então, como é que você vê esse movimento do ponto de vista político?

Décio Pignatari: Não, a idéia de alienação era uma idéia... Quer dizer, era um tempo em que nós vivíamos dominados, inclusive a própria classe média não-comunista, por uma visão puramente stalinista e maniqueísta. A “esquerdofrenia” nacionalista tomava conta do patrulhamento e, como dizia o Jean-Paul Sartre: "no Brasil, é espantoso, todo mundo é de esquerda!" [risos] Na verdade, nem todo mundo era de esquerda, tudo aqui é muito fluido. Na verdade, a Jovem Guarda representava uma classe média ascendente, sofisticada, e tentava absorver uma informação que vinha de fora, os Beatles explodindo e o rock, aquela coisa... E o próprio Chacrinha era o outro lado, era o mundo popular, era o circo. Como ele mesmo uma vez disse, a praça pública que foi parar na televisão com bandeirolas e tudo, um diálogo íntimo com a câmera. Não vejo alienação. É bom lembrar que o Tropicalismo exatamente eclodiu um pouco antes do AI-5. Aliás, pagou caro, né? Pagou caro, porque quando o Tropicalismo vai e explode em 1967, eles mesmos não queriam fazer parte de um movimento. Os baianos nunca quiseram engajar-se em um movimento, porque achavam que isso – até mercadologicamente – era perigoso, não era bom. Era melhor você trabalhar meio solto e com isso eles são solidários até hoje. Trataram de liquidar a sigla rapidinho! [risos] Esse negócio de Tropicalismo, essas coisas... E veio, veja bem, em 1967, 1968, aí vem o AI-5 no fim de 1968 e eles são exilados. Não creio que se tratasse... Era uma alienação de tipo sociopolítica, pregação anticomunista bem de velho estilo, a Igreja interferindo diretamente nas coisas do Roberto Carlos, não é? E na própria coisa do Chacrinha de distribuir comida... Então, você tinha dois pólos muito interessantes, quer dizer, se ambos fossem alienados, um contra o outro dava um retrato não-alienado da situação! [risos]

Jorge Escosteguy: Você comentou sobre Caetano, [Gilberto] Gil, os baianos e o telespectador Amador Ribeiro Neto, de Sumaré, diz: “Na campanha Diretas Já, o senhor cobrou de alguns artistas a participação na campanha. O senhor reclamou que Gilberto Gil e Caetano Veloso não tinham participado. O senhor acha que o artista deve se engajar pública e politicamente nessas lutas?

Décio Pignatari: Deve, não, mas pode. Eu fui assim um pouco “cobrador” demais naquela ocasião, né? Acabei brigando com o Caetano à toa, depois me recompus, achei que não valia a pena. Creio que você não pode ficar vigiando simplesmente a posição que os intelectuais e artistas tomam. Do contrário, uma das grandes novidades dessa democracia incipiente, que recomeça, é esta, que nunca se viu em outros tempos: todo mundo declara qual é o seu partido, qual é o seu candidato. Em outros tempos, todo mundo tinha medo, ninguém falava nada. Nós estamos assistindo a um fato novo. As pessoas colam adesivos, dizem, lutam, discutem, falam e declaram qual é o seu candidato. De modo que não creio que seja necessário que o artista se engaje pessoalmente. Se ele quiser, que o faça pessoalmente e tudo bem. Não há nada de mal nisso. Agora, se ele preferir tomar outro tipo de posição, quer dizer, escrever ou reservar-se para dar um retrato de outro tipo, sem se envolver diretamente nas agruras de posições que mudam muito rapidamente... Veja, o Gil era PMDB anteontem e agora já é Brizola [PDT], então é tudo muito fluido. O Chico era do Partidão [refere-se ao Partido Comunista Brasileiro] e agora já está com o [Mário] Covas [(1930-2001) político do PSDB, foi governador de São Paulo e candidato derrotado à Presidência da República]... Com o Lula, com o Lula! Desculpe. Então, há uma fluidez muito grande de posições, não há por que cobrar. Acho que se eles se engajam, se alinham politicamente, isso é bom, não há nada contra. E, se não se engajam diretamente, não há nada contra também.

Jorge Escosteguy: Cobrança e patrulhamento... O senhor também mencionou patrulhamento e o telespectador Jaime de Souza Matos, do Jardim Bonfim, pergunta se existe muito patrulhamento ideológico na USP [Universidade de São Paulo].

Décio Pignatari: [suspira] Não, a USP é um espaço universitário cultural bastante grande...

Jorge Escosteguy: Mas o senhor deu um suspiro enfático, longo.

Décio Pignatari: É, de fato a coisa é meio complicada, porque não estou no setor de letras por exemplo. Nunca quis estar. Nem na Universidade de Brasília e nem agora. Estou na FAU, na  Faculdade de Arquitetura [e Urbanismo], e em Brasília estava no setor de comunicação coletiva. Fui chamado lá pelo Pompeu de Souza [(1914-1991) jornalista, professor e escritor, fundador do curso de comunicação da Universidade de Brasília] em 1965. Depois que as tropas invadiram o campus, eu me demiti junto com os músicos e mais duzentos professores, mas uma coisa é certa: na área cultural e literária há de fato um patrulhamento. Em toda parte, nas revistas, em todo lugar, menininhos e menininhas meio focas [jornalistas iniciantes] [risos], quando eles querem provocar sem saber nada do problema cultural, então eles te provocam sabendo se tal ou tal coisa é elitista ou se é formalista ou se é isso... A FAU tem alguma coisa nesse sentido, na medida em que a esquerda comunista da Fau, que em outros tempos havia dado grandes resultados na arquitetura – apesar de toda a malandragem de um [Oscar] Niemeyer em matéria de posição relativamente ao realismo socialista do [...] do Stálin –, eles provocaram realmente um certo patrulhamento em relação às idéias novas. Ou seja, toda a chamada arquitetura pós-moderna, que teve origem em manifestos, por exemplo, do Robert Venturi [(1925-) arquiteto norte-americano, um dos expoentes do pós-modernismo, vencedor em 1991 do prêmio Pritzker, que é o principal prêmio da arquitetura. Escreveu o livro Less is more, uma análise dos exageros de Las Vegas como grande crítica à arquitetura moderna e de poucos detalhes e abuso do concreto armado] em 1964 nos Estados Unidos e depois espalhou-se pelo mundo todo... Hoje já está até historicizado... Esse debate foi proibido quase que na FAU. Não houve debate! A arquitetura pós-moderna veio e foi embora e não houve debate. Nós ainda estamos... Eles estão defendendo a velha arquitetura do concreto, chamada moderna. Curiosamente, não só a esquerda: o pessoal da direita também impediu e nem levou. Eu, há 15 anos, estou tentando fazer a discussão sobre o pós-moderno na arquitetura. Em letras, então é uma coisa pavorosa! Passado uma geração, 33 anos, uma geração inteira, praticamente é verboten [proibido em alemão], é proibido estudos ou qualquer coisa relativa à poesia concreta no setor de letras da USP. Para não dizer do Brasil todo!

Jorge Escosteguy: Proibido como, por quê?

Décio Pignatari: Professores não aceitam trabalhos de alunos que queiram trabalhar nessa área, nessa linha. Há algumas exceções.

Jorge Escosteguy: Não há nenhuma reação a esse tipo de manifestação?

Décio Pignatari: Não, não há. Outro dia mesmo eu estava dando carona para umas meninas de letras e não há reação. Eles realmente não dão, não discutem, não informam. Não interessa. Isso é cortado, não interessa, está fora do currículo. [faz uma pausa] Acabou.

Hamilton dos Santos: Você defende muito a televisão como um grande potencial de informação que é claro que é. Eu queria saber, se é que você já se decidiu, se a televisão teve alguma influência no seu voto.

Jorge Escosteguy: Aliás, professor, pergunta também o Pitta, de Ribeirão Preto: “Se o poeta fizesse alguma poesia, a que partido o senhor faria?” [risos]

Décio Pignatari: Vou responder ambas. Não, a televisão não chegou a fazer, realmente, a minha cabeça e, em relação à televisão, hoje já não sou mais aquele que fica defendendo a televisão a todo custo. Não, creio que tem que haver outras mídias. Essa coisa horrorosa, né, “as mídias”? O Brasil é o único que faz isso, né? O plural de um plural! E, além disso, ficou feminino! Porque era midium [meio em latim] e mídia ficou feminino e [mídias] é o plural de um plural. Bem, não tiveram muita influência, porque, de qualquer maneira... Claro, gosto de ver uma campanha feita melhor, mais bem feita por programadores visuais e tal. O partido... Inclusive o PT, em campanhas passadas, foi inovador nesse sentido. Nesta aqui nem tanto, mas assim mesmo tem aquele cartoon inicial muito engraçado, o Brasil que bate a bola e tal. Aquela sátira é um cartoon televisual bonito. Não teve [influência no meu voto], porque acredito que a televisão hoje... Eu diria um pouco como [Nikita] Khrushchov falou da experiência, que a experiência é muito importante, porque ela nos ajuda a desconfiar da própria experiência. Então, a televisão é muito importante, porque ela nos ajuda a desconfiar da própria televisão. Quer dizer, nós estamos assistindo algumas coisas novas. Ela não é fatal, não é linear. Candidatos que tinham mais tempo na televisão, fracassaram. Não basta a televisão. Eu não creio que a televisão... Ela domina,  ela é muito forte, mas ela não é única. O bonito não é só a televisão. O que nós estamos vendo de interessante é o diálogo entre as mídias e incluindo a mídia da praça, da coisa à viva voz, pessoal. Então essa coisa viva que é o fato que gera notícia, esse fato também, em si mesmo, virou signo. Virou linguagem. A praça pública... Não é todo mundo que pode estar na praça. Ela tem que vir através da foto, do cinema e da TV. O que eu acho interessante é o diálogo das mídias. O “triálogo”, o “multiálogo” das mídias... Uma criticando a outra e disso é que nasce uma visão um pouco mais completa e interessante. Quanto à poesia, eu não voto em partido e nem em gente, propriamente dita, em personalidade. Eu voto pelo processo. Onde me parece que o processo conduza a uma democratização, a uma condição democrática mais rica, viva e aberta. Eu apóio isso, então se eu tivesse que fazer [uma poesia], faria ao PT.

Júlio Carlos Duarte: Décio, você incluiu na sua obra poética um anúncio de remédio. Você se considera hoje um poeta no sentido em que o João Cabral se considera um poeta? O que vocês têm em comum, você e o João Cabral?

Décio Pignatari: Bom, exceto o fato de que ele foi atacado do mal de Alzheimer, acabou de fazer na Veja umas declarações pavorosas na sua declaração de voto, enfim... Nós somos poetas apenas. Ele faz versos; eu normalmente não os faço. Faço uma poesia visual ou faço holografia [imagem em três dimensões] ou tento realizar alguma coisa, hoje, em cristal ou em volumes de vidros com cores... Coisas que a gente vai tentando, mas nisso não há diferença. O Cabral foi um dos grandes poetas brasileiros dos anos 1940 até os anos 1960.

Júlio Carlos Duarte: Qual a diferença entre um poeta e um programador visual?

Décio Pignatari: Bom... O poeta, de qualquer modo, sempre estará ancorado na palavra. Ele pode usar todos os meios que ele quiser, desde a holografia, o que você quiser. Cristal, vidro, papel, o que você quiser! Vídeo, cinema, TV, tudo o que ele quiser... Ele sempre estará ancorado na palavra. Nesse sentido, ele é poeta. Agora, há poetas não-verbais. Então ele salta o limite, ele vai para a área das artes visuais onde você pode considerar aquilo, também, poesia. Eu, de qualquer maneira, não. Eu considero que, assim que você abriu mão do universo verbal, já tem trabalhar numa outra área, que é a área da pura visualidade.

Alberto Helena Júnior: Agora há pouco você estava dizendo que o veículo, a televisão é meio frio, que você tem que ter uma conversa mais coloquial, que um discurso não cabe aí... Então, eu gostaria que você se transpusesse de novo para a postura de crítico de TV e você fizesse uma crítica do comportamento dos candidatos nessa campanha eleitoral via TV e em relação ao sobe e desce das pesquisas. Por exemplo, o Collor de Mello não tinha nenhuma expectativa de voto até que fez aquele seu primeiro programa, que ainda não tinha nada a ver com TV Globo, não tinha nenhum suporte grandioso por trás dele. Fez aquilo, disparou lá para cima e tal e aí que começou... E aí é que a Globo, parece, encanou no homem. Depois começou a haver uma queda até que, enquanto que ele estava com um discurso coloquial e coisa, tentando manter um meio de campo ali. Quando ele realmente passou a agredir o presidente da República é que houve uma recuperação. O [Guilherme] Afif [(1943-) terminou em sexto lugar na disputa presidencial de 1989] me parece que teve um desempenho exatamente dentro desse padrão que você havia proposto, né? E teve um momento em que surgiu nas pesquisas muito bem colocado, continuou com o mesmo processo e caiu. O Lula, por exemplo, partiu para um discurso mais radical, mais discursivo ainda na televisão e subiu. E o Brizola se manteve com aquele linguajar, com aquela coisa dele que é um palanque de 1950 ainda presente. Como é que você analisa essa questão?

Décio Pignatari: Bem... Para começar, eu não creio... Há muitos outros fatores que estão jogando aí. Mas eu não creio que [faz uma pausa] a Rede Globo, as Organizações Globo tenham encanado no Collor simplesmente por acaso. Não creio nessa inocência. Ele foi preparado há muito mais tempo do que a gente possa pensar. Ele foi um candidato realmente preparado para ser lançado, né? Inclusive, há muitos aspectos muito interessantes de natureza política, ideológica, econômica... O processo de industrialização que caminha do sul para o norte e toda a dixieland [estilo de jazz tradicional que teve origem em Nova Orleans nos anos 1920, os "anos loucos", tempo de euforia que durou até a depressão de 1929], quer dizer, todo o latifúndio do Rio para cima, o mundo agrário que não evolui e a industrialização que vai caminhando e mudando as cabeças. E há essa luta norte [versus] sul. Nós temos uma luta entre os ianques sulistas e os escravocratas do norte e nordeste, que nunca se resolve. Nós não temos nunca a batalha final de Gettysburg [ocorreu em 1863 e foi a mais importante batalha da Guerra Civil norte-americana, quando o exército do norte venceu o do sul, alterando os resultados do conflito], as de qualquer maneira essa luta está sempre em saber se vai um sulista - um ianque sulista - para o governo ou não. Vai o nordeste de novo. O Sarney em Londres... Esse jogo é muito claro, quer dizer... declarando há três anos, porque ele queria mais um ano [de governo]. Ele declarou em Londres, não declarou aqui. Ele falou: “Você sabe quando é que o Brasil vai ter um novo presidente nordestino? Daqui a mil anos”. Então, isso mostra todo um jogo, não só as Diretas Já. Quer dizer, todo um processo de democratização - assim como da valorização da mulher, do trabalhador - caminha junto com o processo de industrialização. O resto é obscurantismo e um grande problema de  você manter o que se chama de lumpenzinado. Tudo está... Nenhum estudioso marxista fez um estudo sério sobre esse fenômeno, o lúmpen-proletariat! Eu já chego, vou analisar, mas eu preciso falar isso senão não se vai entender aquilo que o Marx chamava de lúmpen-proletariado. E o marxismo brasileiro, comunista do Partidão, era tão atrasado, porque O capital do Marx foi traduzido recentemente - só nos anos 1970 -. E traduziram mal! Eles amaciam tudo! “Sub-proletariado”. Não! Em alemão quer dizer “o proletariado de farrapos”. Que são os mendigos, todo mundo que é revoltado, mas não é revolucionário: que na hora H adere ao poder dominante. São parasitas do poder dominante. Getúlio [Vargas] trabalhou no sentido de lumpenzinar o operariado, porque, quando um país começa a se industrializar, surge essa escória que é o lúmpen, que é o trabalhador de farrapos, que é meio-a-meio. Então, quando a Igreja [Católica] era reacionária, era exatamente o que ela fazia. Ela nunca defendeu o trabalhador. Ela só defendia o favelado, a prostituta e o mendigo. Que é a falsa revolução. Esse problema, esse fenômeno... Você vê, por isso... Quando alguém dá voto aos 16 anos e voto ao analfabeto, ele não está sendo bonzinho. É o sistema brasileiro que se mantém. Você mantém a base do lumpenzinato - do lúmpentariado - e continua, justamente, sustentando esse pessoal no poder que faz essa demagogia porque eles não sabem fazer uma leitura  que não seja aquela pen-proledos clientes: “será que ele vai dar para mim um litro de leite, uma merenda, um carro ou um terreno?”. Então, é o lúmpen que pensa que vai ganhar alguma coisa de graça. E, agora é que nós estamos começando a ver os primeiros sintomas de demolir isso. Então você vê as coisas mais absurdas. Você vê um Brizola defendendo o ditador Vargas. Mas ele até que é escusado no sistema brasileiro porque nós vemos aí as coisas mais bárbaras. Uma arquiteta como a Lina Bobagem [refere-se à Lina Bo Bardi, arquiteta italo-brasileira, autora do projeto do Museu de Arte de São Paulo] se declarando [risos] ainda hoje stalinista, sim senhor! O Darcy Ribeiro outro dia, na televisão - defendendo Getúlio Vargas. Você imaginou? Era a mesma coisa que o Bertold Brecht defender Hitler. É um absurdo! Simplesmente uma loucura! O próprio Partido Comunista não denunciou, nem nunca fez um estudo sobre o lumpenzinato! Nem nenhum cientista político. Então essa geléia geral do lúmpen que corrói a própria classe média, te julga por moral, não por política. Porque não tem espessura política. Ele que elege os Jânio Quadros da vida. O próprio Brizola tem muito desse homem que ainda vem de lá,  que é o lúmpen. Quem tocou nesses dois pontos? Afif chegou primeiro a falar “vamos desmantelar o getulismo” e parou por aí. E o Lula teve a coragem de enfrentar o debate com o Brizola a respeito de Getúlio Vargas. Porque todo o sistema previdenciário brasileiro... Isso é um absurdo! Onde você simplesmente manda em tudo, até em federação de futebol você intervém. Em sindicalismo, você intervém. Onde é que se viu sindicalismo com desconto em folha? Isso é loucura! Isso é que garante o lumpenzinato. Incrível! Aí você vê candidato por candidato,  é tudo bastante claro. Você tem os elementos folclóricos mais ou menos marginais, desde a [...]  até o Enéas que vem, enfim... alimentar, fazer um pouco a festa folclórica desse lumpenzinato. Você tem aqueles candidatos de velho estilo que estão sendo jogados na lata do lixo, como o senhor Aureliano Chaves e o Ulysses Guimarães. Ambos... O Aureliano... Que não tem nada de inocente. Porque ele se pendurou no governo até ontem? Porque ele, no Ministério de Minas e Energia, dava cobertura às jogadas da Petrobras que eram "caixa dois" das Forças Armadas. Senão você não tem bilhões para fazer Angra e muito menos para fazer o AMX ou seja lá o que seja. Essa é a verdade! E ele... Você veja, o povo julgou ele a nada. Você vê o Ulysses que preferiu primeiro o poder para depois as mudanças, recebeu e mereceu o que está tendo. Você vai ver aqueles que não sabem discursar, saem melhor. São três que não gostam de discursar, não sabem discursar muito bem e que estão se saindo muito bem: Maluf, Mário Covas e o próprio Lula, que antes espumava meio assim hidrófobo e agora já está falando, já está ouvindo o que a outra pessoa fala, já está dando um tempo e com isso está entrando mais na própria linguagem da televisão. Eu acho que é por aí. E o Collor, naturalmente, que só faz discurso para mostrar virilidade e mostra em grandes comícios. Mas quando ele chega diante da TV ele até que fala de um modo até razoável, em cool, em baixo tom. E quem aprendeu e está aprendendo - um homem que será um dia perigoso - se chama Ronaldo Caiado.

Jorge Escosteguy: Voltamos com o Roda Viva que hoje está entrevistando o poeta e professor Décio Pignatari. Professor, o telespectador Paulo Vieira, de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, pergunta por onde o senhor acha que caminha, para onde caminha a mídia de comunicação no Brasil; se o senhor consegue ver outras formas de entretenimento e informação dentro ou fora dos meios de comunicação.

Décio Pignatari: Bom, a pergunta é muito ampla. As mídias impressas seguiram certas lições da TV e renovaram muito, desde o copydesk até a diagramação. E tudo muito rapidamente até chegar ao modelo mais recente, que foi o US Today, né? Que serviu de modelo para muito da imprensa mais dinâmica brasileira. A televisão agilizou muito a própria imprensa, a mídia impressa e a rádio também. De modo que, por aí, o modo como as coisas estão acontecendo, no entrechoque ou no diálogo das mídias, nós estamos indo bastante bem. Bastante bem. A área das artes e da cultura é que não vão bem. As mídias vão bem.

Jorge Escosteguy: Porque não vão bem, professor?

Décio Pignatari: Em matéria de arte nós não temos mais nada. O Brasil está... É tudo em terceiro time. Romance brasileiro é do terceiro time, cinema brasileiro é do terceiro time... Tudo o que você quiser, incluindo a psicanálise! [risos] Quer dizer, a música brasileira já foi muito mais criativa. Não falemos da música clássica, erudita ou de pesquisa porque realmente a música do alto repertório conta com muito pouco apoio aqui no Brasil, a ponto de ser um milagre você poder ter uma emissora em FM como a Cultura em que você só ouve música clássica, né? Quer dizer, nós estamos mal. É verdade que não é que o mundo esteja muito bem, relativamente. Você só vê notícias de best-seller e rock. O mundo do entretenimento mais válido e interessante que surgiu nesse entretempo e que também deve muito à TV é o mundo desportivo. Aí está a nova área importante do entretenimento. Todo esse mundo desportivo além-futebol, porque inclui também as crianças, as mulheres etc, etc. Essa evolução do entretenimento desportivo me parece uma coisa fundamental. Essa é uma das áreas importantes. As outras áreas são as de convívio, desde crianças, adolescentes e tal. O adolescente se desliga da televisão porque ele quer se enturmar, ele quer ver gente. Você tem períodos em que você é dominado pelas mídias ou pela TV e há períodos em que você simplesmente se afasta dela, porque você precisa de um contato direto, porque o contato direto continua sendo uma mídia das mídias. Uma mídia insuperável.

Jorge Escosteguy: O senhor falou: “só rock”. O senhor não gosta de rock? O senhor acha o rock brasileiro uma coisa chata?

Décio Pignatari: Não, eu não tenho nada... Não é não... Dos Titãs eu gosto, né? Você tem alguém realmente criativo lá, como o Arnaldo [Antunes. (1960-) Cantor e compositor que começou sua carreira na banda Titãs e também firmou-se como e poeta do concretismo].  Inicialmente alguns grupos se formaram, estavam anunciando alguma coisa... No lugar de gente isolada, eram grupos. Eles sumiram um pouco, o Itamar [Assunção (1949-2003) artista de experimentação que misturava poesia, música, dança e teatro em suas performances] foi para um lado, o próprio Arrigo [Barnabé (1951-) cantor, ator e compositor, cuja obra oscila entre o erudito contemporâneo e o popular] parou... E ficou um rock brasileiro que, do ponto de vista do som, é muito pobre. É muito pobre: ainda hoje ele é montado em cima da letra. As pessoas se guiam mais pela letra do que realmente pelo som. Como som, realmente, não inova nada. Se você compara as inovações da bossa nova até o Tropicalismo, vai ver que realmente o rock brasileiro... Compare não com o americano, nem com o inglês. Ponha o rock alemão ou outros, eles realmente têm um dinamismo de informação muito grande. Mas, mesmo assim, já é excessivo.

Jorge Escosteguy: O senhor mencionou bossa nova e Tropicalismo... O Alan Camargo, aqui de São Paulo, de Santa Cecília, pergunta se o Tropicalismo dos Novos Baianos [grupo musical da década de 1970 que agregava gêneros da música popular ao rock’n roll] matou a bossa nova.

Décio Pignatari: Dos baianos? Não, não matou! Quem quis matar a bossa nova foi a Elis Regina [(1935-1982) uma das maiores intérpretes da música popular brasileira] [risos]. Eu sei porque participei do primeiro festival, que não foi o da Record, foi da Excelsior. Quando o [Damiano] Cozzella [(1928-) músico e arranjador brasileiro cujo trabalho consistia na transformação de músicas populares em arranjos vocais], o Rogério Duprat [(1932-2006) maestro e músico brasileiro, associava o clássico ao popular, tendo participação efetiva junto ao movimento Tropicalista] e eu saímos de Brasília, viemos e participamos da seleção...

Jorge Escosteguy: Do “Arrastão”? [Da seleção em] Que ganhou o “Arrastão”?

Décio Pignatari: Que ganhou o “Arrastão”, exatamente. Então, a Elis era um caso muito estranho. A coisa foi feita um pouco para lançar a Elis e mais o [cineasta] Ruy Guerra e Vinicius [de Moraes (1913-1980) além de poeta, dramaturgo e diplomata de carreira, foi um dos principais compositores da bossa nova], aquela coisa toda... Mas, enfim, uma coisa mais participante bem no estilo regional do Partidão. E a Elis era um caso muito especial. Ela, com toda... Ela tinha uma musicalidade muito estranha, era incapaz [enfatiza] de desafinar. Era simplesmente incapaz. Ela não sabia desafinar! E ela queria se lançar e queria justamente enterrar a bossa nova. Ela falava naquele tempo... Estava lá com o Pica-Pau [refere-se ao radialista Walter Silva] e dizia que era isso aí, que precisava acabar, que o que interessava era a música popular brasileira...

Jorge Escosteguy: Queria acabar porque ela não conseguia desafinar?

[risos]

Décio Pignatari: Não conseguia desafinar [risos] e era a chance dela. Ela se sentia bem naquele tipo de música, como de fato o futuro mostraria por altos e baixos.

Hamilton dos Santos: Nesses anos 1980 alguns artistas, sobretudo alguns cineastas – o Wim Wenders [(1945-) premiado cineasta alemão, diretor de Paris, Texas e Asas do desejo] e agora, mais recentemente, o [Steven] Sorderberg [(1963-) cineasta norte-americano, ganhador do Festival de Cannes pelo filme Sexo, mentiras e videotape] –, colocam uma coisa interessante, que são as relações humanas sendo intermediadas pela eletrônica, pela mídia. Você vê isso em Paris, Texas [1984]; vê isso em Sex, lies and videotape [1989] agora. E, por outro lado, você tem também aquele artista plástico inglês, o David Hockney, que diz que o fax, um elemento novo nisso, aproxima mais as pessoas, porque resgata um certo intimismo na comunicação. Eu queria saber até que ponto as relações humanas podem suportar essa intermediação da mídia eletrônica ou dos processos eletrônicos.

Décio Pignatari: Como sempre, creio que os artistas nunca temerão as novas mídias. Os maus artistas, sim. Aconteceu no passado com a fotografia. Os maus artistas disseram: “perdemos o emprego!” E, depois, quando veio o cinema, o pessoal mau do teatro disse: “acabou o teatro!” Na verdade, as novas tecnologias propiciam uma quantidade e uma qualidade diferentes. Muita gente é artista, não só aqueles que se lançam ou que estão numa Bienal ou que expõem ou que estão entre o circuito de alguma mídia impressa. Há um número enorme de gente fazendo arte, utilizando essas mídias que vão ficando ao alcance de multidões, desde o vídeo, a fotografia, daqui a pouco será a holografia... Quer dizer, a televisão virou hoje aquilo que seria a máquina Kodak das crianças, né? Hoje, os micros [computadores] estão nas mãos das crianças, os videojogos são fascinantes e você pode criar quantas coisas ali, como... A criança adquire toda uma mentalidade diferente, rápida, de inteligência sensível, dialogando com a mídia eletrônica. Acho que é com o tempo mesmo. Você vai ter a televisão a cabo, vai ter televisão de tudo quanto é tipo... Um belo dia, as grandes redes não serão muito importantes. É preciso legalizar as TVs e rádios piratas. Um nome, aliás, muito mal dado, pois são mídias alternativas importantíssimas! As mídias de sinal fraco é que permitem você ter, facilmente, muitas emissoras de rádio e TV num município. Para romper, exatamente, esse grande guarda-chuva de chumbo das grandes [enfatiza] organizações, então você as combate através de uma eletrônica quase artesanal, que fale dos problemas mais imediatos até do seu bairro, do seu município e tal. Isso virá!

Hamilton dos Santos: Quer dizer, tudo isso contribui para a melhora das relações humanas, e não a deformação?

Décio Pignatari: Sem dúvida! Para não dizer as coisas incríveis que todo mundo tenta segurar. São milhões, bilhões... Bilhões de dólares investidos. Eles seguram a tecnologia! Estão impedindo-as, porque as Forças Armadas também não querem essa liberdade nas mídias. Assim como existe uma coisa absurda no Brasil de que as Forças Armadas dominam, controlam todo o sistema da aviação civil por exemplo. A Infraero [Empresa Brasileira de Infra-estrutura Aeroportuária] é que controla todos os aeroportos. Toda a aviação civil depende deles. Então, há todo um sistema de centralização aí, um tanto monarquista ainda. Mas a verdade é que... E agora vêm as [antenas] parabólicas domésticas! Quem é que vai controlar? [risos] Não pode! Você vai ter que abrir isso! O Muro de Berlim da mídia tupiniquim vai cair.

Gabriel Priolli Neto: Você estava falando das mídias mais recentes e eu queria voltar um pouco à mais antiga das mídias, que é a imprensa escrita. Como é que você está vendo a imprensa brasileira nessa conjuntura? Muita gente critica a onda, digamos, a onda neoliberal em que embarcou a imprensa brasileira. Muitos intelectuais criticam o afastamento que a esquerda teve da imprensa, quer dizer, hoje em dia, os setores liberais da imprensa são muito maiores, muito mais expressivos do que a esquerda. E a esquerda já foi dominante, mesmo sendo a imprensa controlada, enfim, os jornalistas já foram majoritariamente de esquerda. Como é que você interpreta todo esse processo? O que está acontecendo? E como é que você vê particularmente o caso da Folha de S.Paulo, que me parece o jornal de maior influência no Brasil nos últimos dez anos?

Décio Pignatari: A imprensa teve que mostrar agilidade e foi o que fez a Folha. Inicialmente, quando estava com o velho Frias [Octavio Frias de Oliveira (1912-2007), empresário, jornalista e editor. Proprietário do Grupo Folha], ela era muito conservadora. Quando os ventos mudaram, eles perceberam que você tem que mudar. Agora, você não muda ideologicamente à toa; você muda porque, ideologicamente, [isso] acarreta alguma coisa no mercado. Ideologia não é coisa tão solta no ar. Ela realmente tem conseqüências mercadológicas. Então, mudou, passou de pai para filho, renovou-se, mostrou toda uma outra cara. As esquerdas do Brasil naturalmente entraram em franca fase de desmoralização, especialmente as esquerdas marxistas, quer dizer, desmoralizaram a esquerda no Brasil... isto é, o Partidão, que eu considero marxista, no Brasil não é marxista. É preciso que se diga que são stalinistas, porque me considero marxista. São stalinistas! Isto é, o stalinismo, a partir do momento em que, em 1934, o Stalin chegou e disse para o pessoal da América Latina: “Vocês não podem fazer revolução, têm que praticar o que se chama de nacionalismo-democrático – ou democratismo-nacionalista, como quiserem –, vocês se infiltrem em toda parte, mas nada de fazer muita onda, a não ser para proteger a União Soviética”, provocou essa barbaridade que é um partido comunista onde você tem os membros todos... Os únicos que, sendo ideológicos, são puramente fisiológicos. É uma coisa espetacular! E a prova está aí, entrou em decrepitude a visão marxista antiga. Então, é uma satisfação você ver hoje o Roberto Freire falando em termos de Antonio Gramsci, que os comunistas ignoraram sempre, falando em bloco histórico, em intelectual orgânico...

Gabriel Priolli Neto: Mas, Décio, mesmo essa esquerda reformista, a esquerda moderna, a esquerda que faz a crítica da própria esquerda stalinista, essa que tinha presença bastante intensa na imprensa dos anos 1970, está praticamente afastada dela no final dos anos 1980...

Décio Pignatari: Mas ela ainda é muito nova. Ela ainda não está... Quer dizer, nós não temos realmente uma tradição de ideólogos. Ideólogos! Veja o absurdo: outro dia eu estava lendo, na Folha [de S.Paulo], você falou na Folha... Então, a Folha, naturalmente, deu uma guinada para a esquerda, mas acontece que as esquerdas ficaram sem idéias. Não há idéias. Nós estamos esperando que se forme uma ideologia de uma nova esquerda, porque houve um grande vazio, um grande buraco e veja o resultado! Basta dizer que os dois partidos comunistas do Brasil não atingem dois por cento de votação, quer dizer, você nunca viu uma coisa dessas: um partido revolucionário de massa que é de elite! Xingaram tanto os outros de elite, que hoje, realmente, eles não têm... Estão reduzidos a nada. Você tem que renovar, você tem que, realmente, estudar de novo. E, nesse vazio, nesse grande vazio, quem é que entra na esquerda e está ocupando os espaços desta esquerda? É a Igreja [Católica]! É a Igreja. É Igreja que está ocupando os espaços porque ela de fato tomou uma posição e tem organização para isso. Agora, veja o absurdo! Você vê, estava lendo... Outro dia, o senhor Carlos Estevão Martins [(1935-) militante do Centro Popular de Cultura da UNE, no Rio de Janeiro, participou da divulgação de temas políticos para os artistas que se instalaram na Faculdade Nacional de Arquitetura do Rio de Janeiro] - se é o mesmo que eu estou pensando -, foi o homem que nos anos 60... Do violão de rua! Ele fez... É esse mesmo o que fez “Por uma arte popular e revolucionária” querendo implantar de novo [enfatiza] o zdanovismo stalinista [teoria literária elaborada pelo russo Andrei Zdanov (1896-1948), servindo como panfletagem da revolução socialista] junto com o qual foram o Ferreira Gullar e toda aquela gente, os tais violões de rua? Esse homem dando assessoria política hoje ao governo Montoro se intitulando analista político, dirige uma entidade... É isso aí! No Brasil, intelectual de esquerda não evolui, ele muda. É impressionante! [risos] Na Europa, se você vê alguém do Partido Comunista, um italiano... Do Partido Comunista Italiano que sempre foi o mais livre, tanto é que os grandes músicos podiam fazer pesquisa eletrônica... O Luigi Nono [(1924-1990) italiano, compositor de música  clássica vanguardista] e outros... Na Itália e do Partido Comunista! No Brasil é impossível [enfatiza] isso. Nem o Partido Comunista nem ninguém. Não permitem! Enfim, os intelectuais entraram, esvaziaram. Eles têm que formar uma nova visão de esquerda. Nós temos que formar toda uma nova visão de esquerda diferente, com idéias novas.

Gabriel Priolli Neto: Quer dizer... O espaço que a esquerda perdeu na imprensa foi ocupado pelas idéias liberais, pela a restauração das idéias liberais?

Décio Pignatari: Pelas idéias liberais de uma classe média...

Gabriel Priolli Neto: Por que isso aconteceu? Por que as idéias liberais, que eram mais antigas ainda que as idéias de esquerda,...

Décio Pignatari: Não! Mas as idéias liberais permitem um tipo de diálogo que vai bem com a ascensão da classe média brasileira. Lembre-se de que a Revolução de 1964 não foi feita à toa. Não foi uma quartelada, não. Ela, com as cadernetas de poupança e toda uma série de organizações e institutos, quis formar uma poderosa classe média no Brasil como realmente a única coisa que podia deter o avanço comunista. Como, de fato, eles conseguiram. Na medida em que a classe média avança, você tem essa guinada.

Alberto Helena Júnior: Como é que você insere nesse quadro, Décio, a figura do Paulo Francis – por exemplo -, que foi um trotskista, que teve uma atuação muito significativa nesse período todo - nos anos 1960 e 1970 - e hoje tem uma postura raivosamente anticomunista. Como é que você vê isso? É o caso do intelectual que muda?

Décio Pignatari: É, isso que eu dizia. Na Europa, se alguém muda de posição, ele vem e declara por que mudou. Quer dizer, o Yves Montand [(1921-1991) cantor e ator franco-italiano, ícone da música francesa dos anos 1950 que, no início de sua carreira, era publicamente comunista e anos mais tarde tornou-se contra todo e qualquer tipo de ditadura e passou a defender fervorosamente a liberdade] quando muda de posição, ele vem e diz porque é que não apóia mais o Partido Comunista. No Brasil, não. Você simplesmente deixa e não explica coisa nenhuma. É um oportunismo mascarado, você não tem substância ideológica. O problema é ideológico. Mas isso... Como você estava perguntando?

Alberto Helena Júnior: O Paulo Francis...

Décio Pignatari: O Paulo Francis me faz lembrar aqueles anarquistas - ou falsos anarquistas, que eu conheci muitos na Europa -, velhos anarquistas... Nos anos 1950 quando fui para lá, fugi para lá para viver aventurescamente, eu vi uma coisa espantosa... Num dado momento, num jantar - um restaurante popular - você tinha um pãozinho cada um, uma sopa cada um... Eu comia lá. E num dado momento... Tinha um anarquista sempre fazendo discurso e um dia eu vi uma coisa que me estarreceu: o colega dele, que era um jovem trabalhador e tal - que até tinha uma grande motocicleta naquele tempo - se distraiu, não sei como foi... E ele roubou o pãozinho do sujeito! [risos] Eu fiquei besta... É esse anarquismo que é revoltado e que, no fundo, se transforma num individualismo feroz. Ele só quer saber a coisa dele, “qual é o meu?”, né? Então, quando eu vi o velho anarquista roubar o pãozinho do colega, eu fiquei estarrecido e aprendi muito mais sobre anarquismo naquele momento! [risos] Embora eu ache que o [Jean-Paul] Sartre tem razão: dentro do mais fanático xiita marxista tem que haver uma pitadinha de anarquismo. Tudo bem. O Paulo Francis teve como mestre um pseudo-socialista. Ele é o homem do altar dele, ele imita esse sujeito até hoje. E eu até revendo... Que é o [George] Bernard Shaw [(1856-1950) jornalista e dramaturgo irlandês conhecido pelo humor satírico de suas peças e pelo seu inconformismo diante da realidade européia da época] O Bernard Shaw, o teatrólogo meio judeu, meio católico, meio irlandês, meio tudo, era assim, não é? Era um socialista cínico. E o Paulo Francis, mudando também de posição, vendo o desastre que é esse lumpenzinato brasileiro - só que ele não detecta bem porque ele, na verdade, só lê revistas [risos] e ele então não detecta bem o fenômeno -... Mas, às vezes, numa outra linha... Se ele não fosse assim tão... É como se fosse um velho anarquista que hoje rouba o pão do vizinho, né? Ele é um grande equívoco. O que ele está querendo dizer, talvez - então se ele quisesse, porque às vezes não sabe. É tudo pessoalista, para não dizer personalista -, é que o socialismo brasileiro teria que passar por um capitalismo avançado. Isso sim faria sentido. Isso faria sentido. Ainda mais hoje! Agora, essas briguinhas que ele adora, tipo da Mary McCarthy contra a Lilian Hellman [em 1980 quando a autora Mary McCarthy apareceu no programa de entrevistas do Dick Calvett e chamou Hellman de odiosa e desonesta desencadeou uma longa e dolorosa batalha judicial, por parte de Hellman. O caso ainda estava por resolver quando Hellman faleceu]. Ele adora esse tipo de briguinhas pessoais, brigar com a [Luiza] Erundina [(1934-) prefeita da cidade de São Paulo de 1989 a 1993 - ver entrevista com Erundina no Roda Viva] brigar com o Lula, falar essas coisas do Sarney... Está tudo bem pessoal, né? E você perde o horizonte político-ideológico. Perde. Hoje ele simplesmente... Infelizmente é uma espécie de exibicionista “clownesco” [refere-se ao clown, um tipo de palhaço] de uma linguagem crítica já morta.

Jorge Escosteguy: Mas ele é um sucesso de mídia, professor. Como o senhor explica isso?

Décio Pignatari: Ele é um sucesso de mídia porque ninguém escreve direito e ninguém tem escrita personalizada. O Paulo Francis, sendo ainda um pouco antigo, ainda tem uma escrita personalizada.

Jorge Escosteguy: Ele escreve direito?

Décio Pignatari: Escreve! Não, não é que ele escreve... Ele é mau escritor, mas ele é um bom autor.

Hamilton dos Santos: Décio, você afirmou que a Folha de S.Paulo deu uma guinada à esquerda. Isso é uma contradição em relação ao discurso dela, que se pretende absolutamente neutra. Você não acredita que...

Décio Pignatari: Ela deu em outros tempos, hoje não. Hoje não. Hoje ela é mais ou menos neutra, liberal. Hoje não há essa posição mais clara de esquerda. Ela deu no tempo da mudança, da abertura, não é? Do [João] Figueiredo [(1918- 1999) governou o Brasil de 1979 a 1985, promovendo a transição do poder militar para o civil através da chamada “abertura” da ditadura] e tal... Quando o Figueiredo, enfim... Depois do [Ernesto] Geisel [(1908-1996) foi presidente do Brasil durante a ditadura militar, entre os anos de 1974 e 1979] quando já se pronunciou uma abertura, a Folha deu a sua grande jogada. Que, na verdade, correspondia a um tipo de abertura de natureza técnica e administrativa que ela estava praticando.

Hamilton dos Santos: De marketing, também.

Décio Pignatari: De marketing. Através de fotolito [filme de acetato transparente usado na impressão em série]... Quando ela começou realmente a instalar o fotolito ela conseguia fazer, conduzir um copydesk [revisor de textos jornalísticos] bem mais rápido e ela acertou muito, digamos, no repertório médio do interior de São Paulo em que você não lê grandes notícias e só coisas mais... Rápidas! E ela conseguia chegar muito antes em muitos pontos estratégicos do interior do estado, por exemplo. E para acompanhar isso depois ela quis a grande cidade e foi através da ideologia, da guinada para a esquerda.

Alberto Helena Júnior: Por falar nisso, Décio, quando você fazia aquela crônica de futebol - aliás, acho que pouca gente sabe, mas o Décio fez durante algum tempo na Folha de S.Paulo -, você acabou tendo que sair de lá porque você usou uma expressão pouco usual [risos] para a época e que hoje, na Folha de S.Paulo, está aí à vontade. Conta como é que foi esse episódio!

Décio Pignatari: Foi uma jogada engraçada! [risos] O Cláudio Abramo [(1923-1987) jornalista que foi secretário de redação do Estado de S. Paulo em 1953 e que em 1963 passou a ser chefe de reportagem e parte do conselho editorial da Folha de S.Paulo] que estava lá e tal, soube que eu gostava muito de futebol - joguei 30 anos de futebol na várzea -, me chamou e falou:  “Eu quero alguém que venha de fora e fale do futebol, mas faça uma ligação com outras coisas” e tal. E foi realmente muito interessante. Durou exatamente 26 dias, era fevereiro [risos] e, num dado momento, eu escrevi uma crônica onde eu imaginei o Pelé ensinando alguns lances de futebol para umas moças suecas que queriam aprender futebol. Então ali eu usava termos estritamente de descrição futebolística e aquilo, claro, tinha todo um lado erótico, maroto, não é? “Não fazer cruzamentos pelo alto à boca da pequena área”, essas coisas... E o negócio de... Usando todo o jargão da narração futebolística com um sentido ambíguo e dúbio. Isso foi escandaloso naquele tempo – que era impossível em 1965, né? -... “Matar a bola no peito”, essas coisas desse tipo e criou-se um problema lá dentro e eu, quando fui um dia entregar minha crônica, estava cortado, eu estava despedido.

Alberto Helena Júnior: Hoje você receberia medalha?

Décio Pignatari: Não aconteceria nada. Acontece sempre por outras razões. Quando eu escrevi apoiando a greve do ABC, do Lula, do PT... A primeira greve [dos metalúrgicos, ocorrida em plena ditadura, mobilizou mais de três milhões de trabalhadores em 15 estados] - em 1979 - simplesmente eu escrevi, apoiei e aí terminou um ano e meio de crônica sobre televisão no JT [Jornal da Tarde]. Na Folha, em várias ocasiões, também. Algumas coisas inclusive não foram publicadas. Quando eu fiz uma crônica muito forte contra o Lima Duarte [(1930-) consagrado ator de cinema e televisão - ver entrevista com Lima Duarte no Roda Viva] por exemplo, não foi publicada. E coisas desse tipo. Na eleição do Jânio [Quadros], dia da eleição eu escrevi - porque eu tinha consultado uma série de coisas, inclusive no subúrbio - e eu falei: “Esse homem vai ganhar”. Eu escrevi e a crônica não foi publicada. Aí depois eu briguei um pouco e ele teve que publicar uma semana depois.

Jorge Escosteguy: Não publicaram sob que justificativa?

Décio Pignatari: Cortou! Não, cortou. Cortou a crônica e tal. Não publicou por razões outras.

Jorge Escosteguy: Não tinha espaço?

Décio Pignatari: Não tinha espaço.

Jorge Escosteguy: Uma curiosidade aqui... O William Domingos Ribeiro, de Guarapiranga, e o Luis Cotaes, da cidade de Garça, perguntam por que você nunca tira o boné da cabeça?

Décio Pignatari: Eu tiro também! [tira o boné] Eu tenho uma pequena calva, mas não é por isso, não. Eu me acostumei, realmente, a usar o boné à la portuguesa, à la inglesa, né? Então me habituei para ver as temperaturas frias e quentes, então decidi usar.

Jorge Escosteguy: O Carlos Ávila, de Belo Horizonte, Minas Gerais, diz que é seu amigo, não o vê há muito tempo e pergunta: “O senhor vem anunciando há algum tempo um romance”. Ele gostaria de saber em que pé está esse romance, se está sendo escrito, se vai sair, enfim...

Décio Pignatari: [Risos] Pois é, Carlinhos! Eu gostaria até de saber em que mão está esse romance! [risos] Mas ele está parado há quatro anos, tem título - se chama Panteros [publicado pela 1992 pela editora 34] - e eu espero terminar justamente agora que vêm as férias de verão. Espero terminar no primeiro semestre do ano próximo!

Júlio César Duarte: Ô, Décio, o livro mais vendido no momento, no mundo inteiro praticamente, é O pêndulo de Foucault, que os críticos dizem que é um romance horrível, super árido... O que você acha? Você leu O pêndulo?

Décio Pignatari: Não, não li. Mas...

Jorge Escosteguy: Não leu e não gostou?

[risos]

Décio Pignatari: Não li e não gostei! Realmente, o Umberto Eco hoje, é aquilo que se disse um pouco sobre o Henry Miller. É o Eco. Batalhamos durante mais de 20 anos em relação a essa coisa de semiótica e mil troços e, de repente, ele ficou milionário! Só com o primeiro romance e mais esse aí... Um italiano esteve calculando [que ele] ganhou entre quatro e cinco milhões de dólares. Mas ele... Primeiro, essa coisa... Eu já não gostava... Primeiro, o Eco, da última vez que esteve aqui, eu o entrevistei e fui o primeiro a dar a notícia de que ele estava escrevendo esse romance, que ele estava ultimando esse romance. Era O nome da rosa. Foi um estrondo fantástico, nem ele esperava isso. E eu já não gostava. Depois fiz a resenha do romance, mas já não gostava. Eu vi um certo artificialismo. O Eco, tal como o Henry Miller, é um autor. Ele não é um escritor. E é muito difícil você, de novo, sustentar o O pêndulo de Foucault. Ele entra em todo um período de romances históricos porque é isso que hoje é best-seller e dá dinheiro. Já faz dez anos que o romance histórico é o que dá dinheiro. Mas ele, realmente, não é um escritor. Ele é um autor. Como escritor, para mim, ele é de terceira categoria.

Gabriel Priolli Neto: Qual é a diferença que você faz entre os dois, autor e escritor?

Décio Pignatari: O escritor... O autor tem um certo interesse pelo tema que trata. ou porque ele teve um certo fenômeno, num certo período. Foi assim o Miller. Você lendo os trópicos disto, daquilo e tal [refere-se às obras Trópico de câncer e Trópico de capricórnio, de Henry Miller, considerados pornográficos e, por isso, proibidos nos Estados Unidos], todas as transas e trepadas que ele narra, depois de você ler quatro mil páginas, você já não sabe mais realmente o que é. Um dos poucos livros mais interessantes dele, que é The world of sex [de 1940] - O mundo do sexo -, acho que nem foi traduzido aqui. Onde ele narra um engraçadíssimo namoro dele com a sogra. Muito engraçado [risos]. Mas, então, é assim... Agora, o escritor não depende só do tema que trata, ele tem uma coisa especial que se chama “escritura”. A escritura permanece independentemente do tempo. Ele pode tratar de um tema que muitos já trataram, mas ele tem algo ali; uma escritura, justamente, que permanece. O que é essa escritura? Um problema! Ou seja, é alguma coisa no modo de escrever que faz com que haja sempre uma informação nova a cada leitura. Há uma virtude na escritura que sempre está expedindo uma informação nova enquanto que o autor esgota na leitura.

Jorge Escosteguy: Professor, voltando um pouco para a política, a telespectadora Joana da Silva, da cidade de Campinas, pergunta por que o senhor disse que o Caiado é perigoso.

Décio Pignatari: Bem... Eu tenho, assim como muita gente, não é preciso ter faro, mas eu já passei do nível - em matéria de reconhecer fascistas, eu realmente já me irmano aos cães, isto é, eu já sinto pelo faro -, eu reconheço o fascista pelo faro antes mesmo que ele se manifeste. Um Celso Brant [(1929-2004) político mineiro, foi ministro da Educação do governo de Juscelino Kubitscheck. Candidatou-se à presidência em 1989, pelo PMN, partido por ele fundado] por exemplo, com tudo que ele põe - coisinha vermelha e tal - ele tem, na verdade, toda uma fundamentação integralista [movimento brasileiro de inspiração fascista]. E o Caiado tem todo o estofo de um homem que, se puder, amanhã ou hoje ele monta uma Ku Klux Klan no Brasil. O discurso dele é um discurso feroz, conservador, ele espuma ainda diante de um comunismo ou de um perigo que ele vê à sua frente. Isto é, ele, na verdade, quando os conservadores da terra, os donos da terra... Porque o mundo da terra é sempre muito conservador. Em geral, é. Tanto é que até na Itália até pouco tempo, todos os conservadores sempre votam no império, [se corrige] votavam na monarquia. Todo o mundo agrário, o mundo rural, tende a ser conservador. E isso gera, na cabeça deles, uma visão três vezes mais conservadora em matéria de propriedade. E o Caiado representa exatamente o lado hidrófobo desse conservadorismo. Eu espero que o processo democrático continue aberto como está. O que quer dizer aberto? A gente tem que votar no processo porque quem vencer, leva. Seja de direita, do centro ou da esquerda. E assim, quem perdeu passa a faixa para o outro. Isso é que é preciso. Mas ele é perigoso porque ele, de fato, é um homem de direita. Claramente.

Maria Tereza Sadek: Você diria que no Brasil hoje, esse conservadorismo rançoso, fascista, não passa de um por cento?

Décio Pignatari: Não, é muito maior.

Maria Tereza Sadek: Por que é essa a intenção de voto que o Caiado obtém...

Décio Pignatari: É maior. Sim, mas acontece que o medo do comunismo sumiu. Quer dizer, se os comunistas têm dois por cento de votação, onde está a revolução? Ela não está à vista. Então, devido a isso, as forças mais conservadoras perdem um pouco das suas garras, uma vez que não há perigo comunista. Não existe perigo de um comunismo no Brasil.

Jorge Escosteguy: Mas elas jogam isso com um aspecto maior... O próprio [Paulo] Maluf jogou muito com a questão do comunismo em relação ao [Mário] Covas, Lula, Roberto Freire...

Décio Pignatari: Joga porque ele ainda acha que pode assustar as pessoas - ou religiosas, ou isso, ou aquilo.  Mas, na verdade, é preciso lembrar... É preciso lembrar que o Lula é católico. O Lula é “papa-hóstia” [risos]! Que ele, afinal de contas, é católico. Então, eu não vejo bem... Tirou-se a força da direita uma vez que a esquerda não está ameaçando ninguém. Afinal, o próprio PT representa hoje - um pouco junto com o PSDB, mas é o PT que representa hoje - aquela organização que tenta conscientizar os chamados trabalhadores no sentido de extraí-los do lumpenzinato. Então por isso mesmo na verdade não há perigo comunista à vista. Ninguém está ameaçando. Ninguém no mundo, inclusive. Hoje, o próprio Fidel Castro [(1926-) dirigente cubano desde 1959 - ver entrevista com Fidel no Roda Viva] que foi inovador, que fez uma revolução muito corajosa, infelizmente... Hoje, 30 anos depois, você não pode aparecer fardado de guerrilheiro e ser chamado de “comandante, comandante” [risos]. Quer dizer, ele envelheceu de repente! A jogada genial do [Mikhail] Gorbachev [(1931-)  dirigente soviétivo que implantou a Glasnost e a Perestroika, a partir de 1986, contribuindo para o término da Guerra Fria]. Realmente jogou a China de um lado, os Estados Unidos do outro, abriu toda a Europa para o Mercado Comum [criada em 1957 no intuito de preservar o capital europeu e enfrentar a concorrência dos Estados Unidos. Desde 1992 é chamada de União Européia e composta por 27 países] e vai liquidar com as forças da OTAN [Organização do Tratado do Atlântico Norte, criada em 1949] e do Pacto de Varsóvia [estabelecido em 1955 pelos países socialistas do leste europeu como oposição à OTAN] porque esse é um dos caminhos da economia. Por que a Alemanha e o Japão ficaram ricos? Porque você não gasta bilhões de dólares com forças armadas!

Jorge Escosteguy: Que análise o senhor faz do Gorbachev, isso é uma coisa séria ou é uma grande jogada de marketing político?

Décio Pignatari: Fantástica! Fantástica! Isso é o que se chama um estadista. Essa é a diferença entre um grande político e um político medíocre. O político medíocre quer o poder pelo poder, o grande político - como [Charles] de Gaule [(1890-1970) oficial francês herói da Segunda Guerra Mundial, quando formou a resistência à ocupação alemã na França] como [John] Kennedy [(1917-1963) foi presidente dos Estados Unidos de 1961 a 1963, ano em que foi assassinado em Dallas, causando grande comoção popular no mundo todo] como Lênin [(1870-1924) foi líder da Revolução Russa de 1917 e chefe de governo da Rússia de 1917 a 1922] como Gorbachev - não, ele quer o poder para governar! É o prazer de governar, saber governar, isso é o que distingue o grande político!

Hamilton dos Santos: Eu queria voltar um pouco a discussão para a televisão. No começo dos anos 1970, acreditava-se que a mídia acabaria em breve engolindo o livro, por exemplo. No entanto, a gente viu, nesses anos 1980, que o mercado editorial sofreu um boom extraordinário. Há quem explique isso dizendo que a televisão, a mídia eletrônica, não tem esse lado pessoal, intimista do livro. Mas há gente hoje que acredita, por exemplo, que o vídeo tem esse lado intimista, esse lado pessoal. O vídeo ameaça o livro? Como é que o senhor vê o fenômeno do vídeo?

Décio Pignatari: É, num primeiro momento, não ameaça. Primeiro, porque o vídeo está hoje ganhando muitas manifestações diferentes, está entrando na circulação normal como um equipamento. Agora, há determinadas informações que só existem com a palavra escrita. E fora dela você não encontra informação. É nela que está. Enquanto isso acontecer, ela será importante. E o que acontece? Ao contrário do que a gente pensa, a palavra escrita... Eu disse isso há vários anos, até rebatendo creio que uma colocação pessimista - não sei se do Ruy Mesquita [(1925-) jornalista e diretor o jornal O Estado de São Paulo - ver entrevista com Mesquita no Roda Viva] -. Falei: “não, a palavra escrita no Brasil está em expansão”. A palavra escrita no Brasil está em expansão. No sentido de que, na verdade, a palavra escrita é uma mídia nova. Porque, claro...

Hamilton dos Santos: No Brasil?

Décio Pignatari: No Brasil! É uma mídia nova. E saber ler e escrever é know-how. É tecnologia de base. Se você não sabe ler nem escrever, você não pode avançar. Porque certas informações, se você não sabe ler nem escrever, você não pode. Então, ela é uma mídia nova e é mais do que isso: é uma mídia instrumental. Não é uma mídia só de entretenimento, ela é uma mídia instrumental. Ela é nova e importante, então ela está em expansão. E coisa curiosa: como a gente lembra o [Peter] Bogdanovich [(1939-) um dos grandes nomes da "Nova Hollywood", geração de cineastas formada nos anos 1970 nos Estados Unidos]  no Last picture show - A última sessão de cinema -, acabou o cinema, a televisão chegou e matou o cinema e hoje nós vemos ao contrário. Começam a construir de novo salas de cinema, nos Estados Unidos aumenta a freqüência ao cinema, no Brasil as salas de cinema voltam a ser construídas... Quer dizer, não há essa matança da mídia anterior. Num dado momento ela domina e depois ela tem que dialogar com as outras mídias.

Júlio César Duarte: Mas o cinema está em crise. Quer dizer, como meio, não é uma arte meio arcaica?

Décio Pignatari: Ela é, mas o teatro também está em crise e não vai morrer. Enquanto houver representação no mundo, haverá teatro. O que acontece é que num dado momento você perde a hegemonia, só isso. Você não ocupa o primeiro nível, mas você não perece. Você tem muitas vidas. Com o transístor, a rádio estava morta. Com o transístor, ela ficou portátil e... Puf! Foi para cima.

Alberto Helena Júnior: Gorbachev, De Gaule... Você citou duas personalidades. Eu queria saber o seguinte: hoje em dia, até bem pouco tempo, era indiscutível a análise – vamos dizer - dialética [conceito da filosofia que consiste na explicação da realidade através da comparação entre aspectos distintos da mesma. Desta forma, uma afirmação tem sua antítese e ambas geram uma síntese] da história. Hoje em dia, começa a se discutir a importância central do indivíduo. Até há vários autores aí discutindo a Revolução Francesa [a escola dos Annales passou a dar estatuto de objeto de análise historiográfica para questões da vida privada dos indivíduos, distanciando-se da historiografia marxista e positivista, que tinham como maior foco os grandes fatos e os grandes personagens. Autores bastante reconhecidos dessa geração da historiografia francesa são Lucien Febvre, Marc Bloch, Georges Duby, Jacques Le Goff, entre outros] centrando nas pessoas que fizeram realmente o processo, que criaram o processo, e não nas forças que contribuíram para isso e tal. Em que medida você acha que o ser humano é realmente o centro dos acontecimentos e não as forças correlatas, esse negócio e tal? Como é que você está encarando essa discussão agora?

Décio Pignatari: Bom, esta palavra “dialética” está tão desgastada que a gente não pode usar, mas esse entrosamento - ora harmônico, ora conflituoso e conflituado - entre indivíduo e grupo haverá sempre e isso é que faz a riqueza do diálogo. Ora pende mais para o indivíduo, ora mais para o grupo. Mas uma coisa é certa, a gente, às vezes, fala Gorbachev como se fosse uma pessoa isolada. Não! Ele, sem um apoio geral e amplo de forças grandes renovadoras, não poderia fazer nada. Inclusive dentro das forças armadas. Mas, o que acho que há de novo é o seguinte... E isso é que muda, que explica um pouco porque é que fica mais liberal, não é mais de esquerda... O que eu acho que há - e isso muitos vem tentando dizer de formas diferentes - não é, de novo, que o indivíduo volta a ter o primeiro lugar no palco. Independentemente do nome da peça e tal. Ou seja, Hamlet não é a personagem Hamlet! Eu sei que eu sempre brigo com o pessoal do teatro brasileiro. Hamlet é uma peça chamada Hamlet. Então, todo ator brasileiro um dia quer representar Hamlet porque ele só vê o Hamlet. Só que o Hamlet é uma peça chamada Hamlet, né? Enfim, eu acho que o que dançou foram as grandes ideologias, os grandes sistemas, os grandes guarda-chuvas - sejam científicos, sejam políticos, sejam das mídias - que querem explicar tudo e dominar tudo. Uma lei geral para tudo. Isso é que dançou. Agora, o que há são pequenos grupos, pequenas verdades em muitos graus, muitos níveis, que buscam uma verdade maior. Mas nós estamos trabalhando em um nível não do indivíduo, mas dos pequenos grupos que se entrosam e que buscam uma verdade mais ampla porque as grandes verdades sistêmicas e sistemáticas dançaram. Pode ser que voltem ainda um dia,  no terceiro milênio.

Jorge Escosteguy: Nós agradecemos a sua presença hoje no Roda Viva. Infelizmente o nosso tempo está esgotado. Agradecemos também a presença de nossos convidados, a atenção dos telespectadores e as perguntas que não puderam ser feitas ao professor Décio Pignatari serão entregues a ele. O Roda Viva fica por aqui e volta na próxima segunda-feira às nove e meia da noite. Uma boa noite a todos e até a próxima semana!

Décio Pignatari: E eu agradeço a paciência de todos!

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