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Grandes entrevistas

 

 

Émile Zola

 

Entrevistado por
V. R. Mooney
The Idler, junho de l893
Extraída do livro A arte da entrevista:
uma antologia de 1823 aos nos
sos

dias, organizada  por Fabio Altman.
São Paulo: Scritta, 1995

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Émile Zola (l840-1902), romancista francês, nasceu em Paris, filho de um engenheiro italiano. Com apenas sete anos de idade, ficou órfão de pai. As décadas que se seguiram foram de relativa pobreza, numa pequena casa na cidade de Aix-en-Provence.  Depois de ter fracassado em sua tentativa de ingressar na faculdade, em 1859, Zola começou a trabalhar numa editora, como publicitário, e em seguida como jornalista. Era o início de uma gran­de carreira literária. Sua primeira novela de sucesso foi Thérèse Raquin (1867), já escrita com o estilo naturalista, detalhista à perfeição, que carac­terizaria sua obra. Os romances de Zola eram invariavelmente criticados pela crueza com que tratavam os vícios humanos e as precárias condições de vida do cidadão francês comum da virada do século. Inimigo feroz da Igreja, Émile Zola tomou para si a causa de Dreyfus, o oficial de exército judeu que foi injustamente acusado de passar segredos militares às nações inimigas da França. Condenado por uma corte marcial, Dreyfus foi levado à colônia penal da Ilha do Diabo. Em um célebre artigo que se tornaria um dos grandes libelos da liberdade no Ocidente, o J’Accuse, de 1898, Zola atacou o governo francês e as autoridades militares por terem mascarado a justiça no caso do militar, acusando-os de anti-semitismo. Processado, Zola foi obrigado a deixar a França, trocando seu país natal pela Inglaterra. Um ano depois, contudo, beneficiado por uma anistia, ele pôde retornar

 

-Senhor Zola?

“Não, senhor, este não é o número 21 bis - é o número 21”.

 

Como justificativa para o tom áspero da resposta, a zeladora me disse que todo mundo cometia o mesmo erro. "Parece uma procissão sem fim”, continuou ela. “Senhor Zola está? Senhor Zola?, Senhor Zola?” Sem parar. “Como eu queria que as pessoas aprendessem o endereço certo.”

 

Pelo menos eu devia estar mais bem informado, pois já tinha visitado o senhor Zola. Por isso, me sentindo envergonhado, retirei-me depressa e dirigi-me ao número 21 bis. Ao contrário da maioria dos parisienses, Zola tem um apartamento só para ele e, como se percebe logo ao entrar, um apartamento ricamente decorado. As tapeçarias, os objetos de bronze, os baixos-relevos e as esculturas em pedra e mármore ficam dispostos com cuidado na ante-sala e na elegante escada. O efeito geral, sob a luz dos vitrais, não podia ser mais artístico. No primeiro andar, lanças, espadas e armaduras de tipos diferentes brilham atrás de plantas tropicais. Nesse andar é o escritório de Zola, cheio de indicações da sua paixão pelas antiguidades - uma paixão que não é levada a extremos, entretanto, já que as desconfortáveis cadeiras de encosto alto dos nossos antepas­sados, nas quais os colecionadores como ele (ou as visitas) acham que devem sentar-se, foram substituídas por poltronas modernas.

 

Não esperei por muito tempo.

Ainda bem que o dia está feio ou seria provável que o senhor se arrependesse de estar perdendo a oportunidade de ir ao Bois de Bologne.

 

Essas são as primeiras palavras do mestre depois de um aperto de mão caloroso.

 

Então o senhor quer saber tudo sobre mim. Deixe ver o que eu posso contar sem ser repetitivo.

 

Então Zola sentou-se em uma poltrona pequena e confortável, tendo em um dos lados uma mesinha em estilo turco, para café e cigarro, repleta de livros, e do outro, um antigo guarda-fogo de ferro batido diante de uma lareira enorme, e deu início, calmamente, ao seguinte monólogo, que vou tentar relatar usando as palavras dele tanto quanto possível.

 

O pai da minha mãe era um corfiota*, meu pai era veneziano e minha mãe, parisiense.  Eles se conheceram em Paris, durante uma das inúmeras visitas que meu pai fez ao país, por causa de um aqueduto que ele queria construir em Aix-en-Provence. Pouco depois do primeiro encontro, eles se casaram. Casaram-­se por amor. Eu nasci em Paris, em 1840 e, portanto, estou com 53 anos. Em 1847, meu pai morreu e deixou muito pouco, exceto os processos, que, por inexperiência mais do que por qualquer outro motivo, minha mãe e minha avó perderam. Foi só então que a minha educação teve início, mas até os 12 anos, quan­do eu finalmente tive que ir para a escola, as coisas aconteceram à minha manei­ra. Isso quer dizer que eu trabalhei muito pouco e passei a maior parte do tem­po ao ar livre, nos nossos gloriosos campos do sul, aprendendo como amar e admirar a natureza. No colégio, o meu desempenho era variável. As matérias das quais eu mais gostava eram matemática e ciências.  Eu detestava grego e latim.

 

Foi durante o meu último ano de vida escolar, que eu conheci dois jovens que talvez tenham contribuído muito para que eu me tornasse o que sou hoje em dia. Como nós tínhamos quase o mesmo gosto, sempre que possível corríamos pelos campos, seguíamos pelas margens de um riacho e, durante horas, debaixo de uma árvore, líamos todos os romances que caíam nas nossas mãos. Depois que a gente terminávamos um livro, nós discutíamos os méritos dele, capítulo por capítulo, estudávamos os personagens e a trama de um ponto de vista mui­to mais metafísico do que literário. Terminei a escola em 1848 e vim para Paris trabalhar para ajudar minha mãe. Arrumei um emprego que eu tive que largar logo depois e, até 1861, passei por todas as dificuldades que um rapaz pobre tem de enfrentar em Paris. Com freqüência, eu passava a melhor parte do dia no meu sótão, deitado na cama para me aquecer.

 

Embora, como o senhor  mesmo pode ver, eu esteja em melhor situação no momento, muitas vezes me lembro daqueles tempos com saudades. Veja, tudo era sofrimento e privações, mas eu tinha o fogo da juventude. Tinha também saúde, esperança, uma autoconfiança sem limite e ambição. 'Ah oui!’  Foi um tempo glorioso. Eu me lembro como costumava escrever durante horas na cama; como tudo era novo para mim, como a minha inexperiên­cia me fazia olhar para o futuro com esperanças. Enfim, a vida parecia bonita, alegre e esplêndida.

Apesar de tudo, eu acho que a esperança é uma satisfação maior do que a riqueza.

 

Mas eu me desviei do assunto. Vamos ver, quando o assunto foi interrompido, eu estava na cama, tentan­do me aquecer e esperando que alguém me desse dinheiro para jantar. Afinal, em 1861, encontrei um emprego satisfatoriamente remunerado na editora Hachette. No começo, recebia duzentos francos por mês. Fazia meu trabalho com tanto cuidado que logo recebi um aumento. Depois de um certo tempo, fui colo­cado no departamento de publicidade e lá entrei em contato com escritores e jornalistas que me ajudaram nos meus primeiros esforços literários. Durante o tempo que trabalhei lá, nunca deixei de escrever. O senhor deve saber que eu sempre fui uma pessoa trabalhadora e conscienciosa.

 

No fim do meu dia de trabalho na editora, eu lia e escrevia à luz de velas durante horas. Na verdade, o hábito de escrever durante a noite se tornou tão arraigado que, muito depois, quando passei a ter tempo durante o dia, eu abaixa­va as persianas do quarto e usava a luz para trabalhar. Mais ou menos naquela época, eu reencontrei os meus dois amigos da escola. Um deles tinha conseguido alguma fama como pintor, o outro estudava na École Polytechnique. Nós retomamos os passeios pelos bosques e as discussões. Isso, estou convencido, foi muito proveitoso para mim, já que a maneira dife­rente como víamos as coisas me permitia fazer julgamentos de caráter e avaliar opiniões diferentes.

 

Antes de sair da escola, isto é, quando eu tinha 17 anos, eu escrevi Contes à Ninon.  Modifiquei um pouco o livro e resolvi tentar a sorte como escritor com ele; Como sempre acontece com os escritores jovens e desconhecidos, os edi­tores me recebiam e devolviam educadamente os originais. Tentei o meu patrão, mas, embora ele me encorajasse e demonstrasse gostar do meu trabalho, dando-­me cargos de responsabilidade cada vez maior, ele se recusava a publicar o meu livro. Afinal, eu mostrei o livro ao senhor Hetzel e, para minha grande alegria, ele o aceitou.

 

As críticas ao livro foram muito favoráveis, mas ele vendeu muito pouco. Logo depois, eu comecei a colaborar com o Víe Parisienne e com o Petit journal, e assim me lancei como jornalista. Como as minhas noites não eram o bastante para que eu fizesse todo o trabalho que tinha que fazer, pedi demissão do emprego em 1867 e me dediquei exclusivamente à literatura. Isso não melhorou a minha situação em nada, e eu fui obrigado, durante um certo tempo, a passar por novas dificuldades e privações. É desnecessário seguir a minha carreira passo a passo. O senhor sabe tanto quanto eu que ela foi bem-sucedida.

- É verdade, mon cher maitre, poucos homens podem se gabar de ter feito tanto sucesso quanto o senhor.  Na verdade, há muitos indícios desse sucesso neste mesmo quarto.

 

Fica implícito, é claro, que o senhor acha que eu tenho uma enorme conta bancária. O senhor está errado. Cada centavo que eu ganho vem da venda dos meus livros, dos direitos de tradução, etc. Meu royalty é de sessenta centavos por livro. Isso me dá uma renda de trezentos mil francos por ano, e eu não sou ho­mem de fazer economias. Toda a mobília e os objetos que o senhor vê espalhados pelo apartamento foram acumulados devagar. Comecei a comprá-los com as primeiras economias que fiz. Essa paixão, que me obrigou com freqüência a mudar de casa para ter espaço para um número sempre maior de objetos, foi despertada através da leitura de Victor Hugo durante a infância.  Infelizmente, ela já não é tão ardente agora.

 

- Quando ele se levantou para me mostrar o apartamento, a luz iluminou o seu rosto. Pensei notar um olhar de melancolia e fiz um comentário sobre aquele efeito. Ele respondeu com um suspiro,

 

Mon cher monsieur, repito que eu sempre penso no meu sótão com saudades.  Naquela época, eu não tinha preocupações.  Eu era, como gosto de dizer, completamente independente.

 

-Mas do que o senhor depende agora?

 

De mais coisas do que o senhor imagina. Naquela época, eu era o meu único leitor e crítico.  O ato de escrever era a minha razão de viver e eu achava tudo o que escrevia perfeito. Desde então eu pertenço ao público. Do seu julgamento depende o meu sucesso, e da sua avaliação, a minha recompensa. Não pense que eu não sofro muito com freqüência, que não fico magoado, e que não me sinto mortificado e desencorajado quando os meus motivos não são compreendidos. Tudo é passageiro, mas posso lhe garantir que não é agradável.

 

Enquanto ele desabafava, nós percorríamos o apartamento. Seria impossível descrevê-lo no curto espaço de um artigo, já que devo admitir que quase nunca vi tanta quantidade e variedade de objetos colecionados. O bom gosto domina o ambiente.  A escolha, a disposição, o agrupamento e as cores. A origem sulista do anfitrião se revela no amor pelas cores vivas, a educação e o refinamento, nos tons suaves e nos harmoniosos “ensemble”. Ele não hesitou em me mostrar tudo; infelizmente, entretanto, se visse menos, me lembraria melhor. Enquanto nos dirigíamos de novo ao escritório, voltei ao assunto anterior e perguntei-lhe se, como se imaginava, ele escrevia livros com rapidez depois de um cuidadoso trabalho preliminar. Ele disse que não.

 

Isso é um erro; eu trabalho muito.

 

-Então como o senhor procede, cher maitre?

 

Eu nunca preparo uma trama. Não consigo fazer isso. Com frequência, pensava durante horas, segurava a cabeça entre as mãos, fechava os olhos e quas ficava doente por causa disso. Mas de nada adiantava. No final, eu desisti. O que faço é escrever três tipos de estudos para cada romance. O primeiro chamo de esboço, isto é, nele, eu determino a idéia principal do livro e os elementos necessários para desenvolver essa idéia. Também estabeleço certas relações lógicas entre uma seqüência de fatos e outra. O dossiê seguinte contém um estudo de cada um dos personagens.  Eu me aprofundo ainda mais nos personagens principais. Pesquiso o caráter tanto do pai quanto da mãe, suas vidas, a influência de suas relações no temperamento do filho.  A forma como este foi educado, os tempos de escola, o ambiente e os conhecidos até a hora em que ele é apresentado no meu livro. Como vê, portanto, eu me aproximo da realidade tanto quanto possível e levo em consideração, até mesmo, a aparência pessoal do personagem, sua saúde e hereditariedade.  Minha terceira preocupação é o estudo do ambiente onde pretendo colocar meus personagens, o lugar onde certas cenas devem acontecer.  Eu pesquiso as maneiras, os hábitos, o caráter, a língua e mesmo as gírias dos habitantes do lugar. Eu faço esboços a lápis com freqüência, tiro medidas de lugares e imagino a exata disposição da mobília.  No final, eu sei como são esses lugares de dia e de noite.  Depois de reunir todo esse material, eu trabalho toda manhã e não escrevo mais do que três páginas por dia.

- Quanto tempo demora para fazer tudo isso?

Não demoro muito tempo. O assunto fica tão claro para mim que o trabalho se desenvolve devagar mas sem interrupções. Na realidade, eu quase nunca faço alterações e, quando acabo de escrever uma página e a coloco de meu lado, nunca a leio de novo. No dia seguinte, eu recomeço e a história prossegue até o fim em uma progressão lógica. Eu trabalho como um matemático. Antes de começar eu já sei em quantos capítulos eu vou dividir o romance. As partes descritivas têm um espaço definido e, se forem muito longas, eu as termino em outro capítulo. Também tento descansar a cabeça do leitor, ou remover um pouco a tensão causada por uma passagem muito longa e agitada, entremeando algo que distraia a atenção por um certo tempo. Finalmente, repito, não tenho nenhuma trama decidida por antecipação. No inicio de m capítulo, eu não sei como ele vai terminar. As situações devem seguir uma sequência lógica e isso é tudo.

É claro que depois disso, a conversa girou em torno dos trabalhos principais de Zola, particularmente La terre. Em resposta à crítica feita ao livro, um dos argumentos dele é que o progresso e a ciência fizeram do homem um ser diferente do que era no incio do século passado, e insistiu em que hoje em dia nós devemos abandonar o estdo do homem metafísico de anos atrás, para investigar o ser psicológico dos nossos dias.

Essa é a minha opinião, e foi em defesa dessa convicção que eu trabalhei durante anos.

O assunto que considerei que podia abordar em seguida foi Débácle.

Como eu preparei Débácle? Da mesma maneira como preparei os outros livros. O senhor sabe que eu passei pela maioria das dificuldades descritas por mim. Além disso, recebi várias cartas sobre o assunto. As mais interessantes vieram dos professores de escolas de Paris, que, ao perderem o emprego, se alistaram. Essas cartas, enviadas por homens cultos, contém, sem excessão, as mesmas reclamações e relatam privações e sofrimentos parecidos. Todos eles contam que tiveram vários dias esfarrapados e sem comida, e com que rapidez seus companheiros forma dizimados. Todos lembravam de histórias que ilustravam a ignorância de seus comandantes! Fui violentamente atacado quando Débácle foi publicado. Fizeram todo tipo de críticas, como sempre, e muitos detalhes forma considerados imprecisos. Mas eu lhe pergunto se é possível ser sempre tão preciso nos menores detalhes quando se escreve um romance, quanto se é ao escrever a história. Algumas datas estavam erradas, e certos detalhes relacinados à cor do colarinho dos soldados não estavam corretos, mas críticas a detalhes tão absurdos não podem afetar o tratamento e o desenvolvimento do assunto e as conclusões a que se chega. Disseram que o marechal MacMahon está furioso comigo e que está preparando uma resposta para o meu livro. Sempre tentei evitar nomes conhecidos. Nunca acusei MacMahon, mas os fatos provam que ele agiu de maneira estúpida. A história será mais rigorosa e, quando aqueles que a escreverem forem pesquisar a documentação como eu fiz, eles não vão tratá-lo com o respeito que eu tratei. O general Gallifet também é meu amigo. Sabe por quê? Porque eu não mencionei o nome dele.

- Débacle está vendendo bem agora, caro mestre?

Não tanto quanto vendia no início, e a razão para isso é o escândalo do Panamá. Quando a falta de escrúpulos em uma certa classe de homens foi desmascarada, aqueles que iniciaram a investigação foram acusados por uma parte da nação de falta de patriotismo. Curiosamente, a mesma acusação foi feita ao meu livro, portanto, ao invés de me agradecerem pela coragem de denunciar os problemas, fui punido por isso. As mesmas influências agiram contra mim nas últimas eleições para a Academia. Antes do caso do Panamá, eu tinha certeza de obter uma cadeira.

- O senhor continuará a se candidatar?

Claro, até conseguir uma cadeira. Não há razão para me excluirem daquela associação e, se eu deixasse de me candidatar, talvez interpretassem o fato como uma admissão da minha parte de que eu considerei justa a atitude dos acadêmicos contra mim.

-Quando seu romance sobre Lourdes será publicado?

Não vai demorar mais do que o senhor pensa. No momento, estou no Doutor Pascal, que encerra a minha série de romances Rougon-Macquart.

-Seria uma indiscrição da minha parte perguntar qual o assunto que o senhor pretende tratar dessa vez?

Não. Vai ser uma defesa filosófica e científica do trabalho mais importante da minha vida - os vinte volumes da Rougon-Macquart. Como vê, dou a maior importância a isso e, portanto, dou uma atenção especial ao meu trabalho, que deve ser uma justificativa das minhas teorias e hardiesses. Depois disso, vou começar a trabalhar no Lourdes, que será seguido pelo Roma e depois pelo Paris. Eles vão formar uma trilogia.

- O senhor pode ser mais preciso?

No primeiro, vou tentar provar que o grande deenvolvimento cientifico do nosso tempo colocou, na cabeça de todas as classes, esperanças que não foram concretizadas a ponto de satisfazer as pessoas mais influenciáveis e, portanto, mais insensatas e rigorosas. Essas pessoas voltaram com grande convicção à crença na existência de algo mais poderoso do que a ciência, capaz de aliviar os males dos quais sofrem, ou imaginam sofrer. Entre eles, acho que vamos encontrar até mesmo filantropos sociais, que talvez pensem que a mediação divina seja mais eficaz na cura dos sofrimentos do povo do que as teorias anarquistas. No Roma, vou discutir os neo-catolicismo com suas ambições, suas lutas, etc., tão diferentes do puro sentimento religioso dos peregrinos de Lourdes. Finalmente, no Paris, vou tentar denunciar a corrupção e o vício que devoram a cidade; vício e corupção de que todo o mundo civilizado compartilha. Não preciso dizer que eles serão romances. Já coletei todo o material para o Lourdes. Como o senhor sabe, eu acompanhei uma peregrinação e recebi assistência do clero, que me permitiu consultar toda a documentação que possui. Como de costume, recebo todo dia cartas de leigos e padres, que me dão informações espontâneamente

Logo depois, Zola se levantou, abriu uma gaveta e me mostrou uma pilha das tais cartas. Entre elas, eu li uma enviada por uma padre, que parecia convencido de que Zola iria se converter em breve. Perguntei-lhe o que vira em Lourdes.

Nada que não estivesse esperando, considerando-se que antes de ir lá eu tivera longas conversas com eminentes especialistas em doenças nervosas. Vi curas que seriam consideradas extraordinárias pelos que ignoram o poder curativo da fé sobre as doenças nervosas. Mas nã ovi braços ou pernas colocadas de volta no lugar, nem qualquer monge ou padre me mostrou ou fez qualquer alusão a tais curas. Mas o que me impressiou foi que, ao contrário do que as pessoas esperam, eu não encontrei no clero nenhum proselitismo agressivo ou ostentoso. Tudo é conduzido de forma digna, tranquila e despretensiosa.

Ao continuar a examinar as cartas, peguei uma enviada por umasenhora inglesa, expressando a genuía esperança de que o Débácle desse frutos, que ele servisse de aviso para a França e salvasse a nação dos erros cometidos durante o império. Quando terminei, Zola me assegurou que se alegrava em dizer que, desde o Débácle, ele recebera várias cartas como aquela da Inglaterra. Na sua opinião, isso é um sinal de que os sentimentos hostis contra ele tendem a desaparecer. Antes de me retirar, perguntei-lhe se ele tivera mais notícia do ladrão que, dizendo-se jornalista, roubara algumas das estátuas de bronze dele. Com uma risada, Zola disse que não e explicou que o roubo ocorrera graças ao Lourdes.

- Como se sabia que eu estava preparando esse livro, os jornais clericais me mandaram seus repórteres. Recebi todos eles, sem excessão. Nessa ocasião, eu estava conversando com um amigo quando me foi apresentado um cartão com o nome de um pequeno jornal. eu pedi a um dos empregados que levasse o portador à sala de visitas. Cinco minutos depois, eu estava com o rapaz, que me fez umas poucas perguntas. Ao invés, entretanto, de esperar pelas informações completas, que eu me ofereci para dar, ele se retirou educadamente, e, só no dia seguinte, eu descobri que ele levara objetos no valor de setencentos francos.

Não sei por quanto tempo eu poderia ficar conversando com o romancista, mas, nesse momento, depois de ouvi-lo por mais de uma hora e meia, eu me levantei para ir embora. E agora que a pesada porta se fechou atrás de mim, será que eu deveria tentar compor uma figura de Zola como eu vi lá, no seu  quarto aquecido, com um casaco tirolês cheio de bolsos, debruado de verde e abotoado até o pescoço? Talvez isso não seja necessário, porque as suas características, a essa altura, já são conhecidas por todos. Como todos os sulstas, Zola gesticula muito, enquanto fala, mas não tem nada da eloquência exuberante de sua raça. Na sociedade, ele ainda é, até certo ponto, e sempre será, uma vítima da timidez, e a sua única tentativa de flar em público foi um complet fracasso. ele nã otem nenhuma sofisticação e só está feliz quando está trabalhando. A inatividade forçada seria terrível para ele.

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*Natural da ilha grega de Corfu

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