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Grandes entrevistas
Ernest Hemingway 2

Entrevista “conduzida” por Robert Milt Machlin, publicada na revista Argosy, setembro de 1958 e republicada no livro ALTMAN, Fábio (org.). A arte da entrevista. São Paulo: Scritta,1995, de onde foi extraída.

Ernest Hemingway (1889-1961), escritor americano, iniciou sua carreira como jornalista durante a Primeira Guerra Mundial. Seu romance de estréia, The sun also rises (O sol também se levanta), de 1926, relata a desolação dos expatriados americanos na Paris do entre-guerras. Seu segundo livro, Farewell to arms (Adeus às armas), de 1929, é uma história de amor ambientada no campo de batalha na fronteira entre a Áustria e a Itália, onde Hemingway esteve presente como soldado-enfermeiro. Em For whom the bells tolls (Por quem os sinos dobram), de 1948, ele escreveu um vigoroso painel da Guerra Civil Espanhola, que também conheceu de perto. Os textos de Hemingway, ainda que romanceados, são peças de jornalismo. Em 1945, ele passou a viver em Cuba, onde escreveu The old man and the sea (O velho e o mar). Premiado com o Nobel de literatura em 1954 pelo conjunto de sua obra, Hemingway viveu seus últimos dias em Idaho, nos Estados Unidos onde se suicidou.

Robert Milton Machlin nasceu em Nova York em 1924. Depois de servir o exército americano durante a Segunda Guerra Mundial, ele se formou em jornalismo pela Brown University e pela Sorbonne, de Paris. Nos anos 50, foi editor da People Magazine. De 1960 a 1975, trabalhou como editor-executivo da revista Argosy. Machlin escreveria uma biografia sobre o escritor americano, The private hell of Hemingway (O inferno privado de Hemingway), em 1962, a partir da amizade que construiu com Papa, como o escritor era conhecido, ao entrevistá-Ia para a Argosy.

                                                     * * *

Na última vez em que vi Papa ele me deixou meio chateado. É claro, foi tudo um mal-entendido. Mesmo assim, percebi que o Chefe superestimara minha influência com Ernest Hemingway, o grande Pai Branco da literatura americana e o maior escritor de aventuras que jamais existiu.
   "Você diz que é tão amigo do Hemingway", o Chefe comentou. "Por que não vai até Cuba e pergunta a ele o que há de novo? "
   Antes que pudesse dizer Farewell to arms (Adeus às Armas), fui empurrado a um avião, e a única coisa da qual consigo me lembrar é de enfrentar um daiquiri gigante no bar Floridita, em Havana. Esse daiquiri em particular foi chamado de Papa's Special porque foi inventado por Hemingway. Continha uma dose de soda, uma de suco de grapefruit, um pouco de gelo, e cerca de cem mililitros de rum. Normalmente eu precisaria só de cerca de cinquenta mililitros de rum para me animar a visitar Papa em sua fortaleza, Finca Vigia, em São Francisco de Paula, a uns trinta quilômetros de Havana.
   A situação era essa. Um: Hemingway é o maior escritor do mundo e uma autoridade em caça, pesca, bebida e outras ocupações masculinas. Dois: esse é o ano de Hemingway, ano em que não menos que três novos filmes dele estão lançados nos cinemas. Três: a obra mais recente de Hemingway é a história de pescador mais provocante e masculina que já chegou às telas - O velho e o mar
   Essa era a situação do ponto de vista do Chefe; do ponto de Hemingway era um pouco diferente.
   Um: Papa detesta entrevistas e não as dá nunca, exceto quando seu braço é torcido, e quem ia querer fazer isso?
   Dois: Papa não daria duas iscas num balde, para seus amigos pescadores, por todos os filmes realizados sobre sua obra, inclusive a sua obra-prima.
   Três: Papa está escrevendo o trabalho mais abrangente de sua vida que segundo rumores, é uma série de três a seis novelas sobre a Segunda Guerra Mundial e o período posterior, e não está com vontade nenhuma de ser interrompido. Quando Papa trabalha, ele não atende ao telefone. Quando não está trabalhando ele o atende de vez em quando, se tiver vontade, e se a pessoa que ligou puder explicar o que pretende em especial a René, o criado da casa. Quando Papa não está trabalhando, ele prefere pescar no Pilar, sua “máquina da pescar” de 42 pés . Vai atrás do marlim branco – caso estejam nadando por ali – ou qualquer outra coisa grande e suficientemente excitante, se não estiverem.
   Papa é um homem muito gentil. Todo mundo diz isso e é verdade. Mas é um homem para quem a privacidade é uma coisa valiosa. A primeira vez em que eu o vi, subi à sua varanda sem ser convidado enquanto ele lia a correspondência e tomava seu medicamento noturno das mãos de MacNish. Isso foi antes do seu grande acidente de avião na África, em que ele esmagou a espinha, rompeu o rim direito, feriu o intestino e sofreu uma concussão. Isso aconteceu quando ele ainda estava em ótimas condições. Depois de ouvir as histórias de jornalistas que foram enxotados da propriedade pelo mestre em pessoa, resolvi fortalecer-me na vila com um anestésico local - rum puro.
   Bati na porta com determinação. Ouvi um rugido doloroso vindo de dentro da confortável casa em estilo espanhol.
   "Com os diabos, o que você quer?"
   Descrevi minha peregrinação.
  "Com os diabos, por que você acha que eu me mudei para cá?", perguntou Papa, e respondeu à sua própria pergunta: "Para fugir de bastardos como você!"
   Foi para isso que serviu a dose de rum que eu tomara na vila. Não sentia medo.
   "Veja, senhor Hemingway", eu disse, com uma dignidade simples, fui enxotado essa tarde pelo seu criado, e depois pela empregada. Resolvi que ou seria enxotado pelo próprio patrão, ou - ou qualquer coisa."
   Acho que foi minha resposta corajosa que o tocou, porque ele convidou-me a entrar, sentar, tomar um drinque, bater um papo, e não publicar nada. Essa era uma ajuda e tanto, e imaginei, com os diabos, não voltaria para casa com sede.
   Não sei da parte dele, mas eu passei momentos ótimos naquela tarde, bebendo e conversando. Papa gosta de beber e gosta de conversar. Uma garrafa e meia de uísque mais tarde, ele falara sobre os seguintes assuntos: mulheres (espanholas, francesas, italianas, japonesas e gregas), peixes (trutas, marlins e sierra en escabeche; uma espécie de cero em conserva); escritores esportivos (ele gosta de Jimmy Cannon); lutadores (Joe Louis); jogadores de beisebol (DiMaggio, quem mais?); vinho (valpolicella, orvieto, manzanilha); cerveja (uma vez ele escreveu um anúncio para uma marca americana), e futebol, entre outras coisas.
   Posso dizer que Papa é um especialista em todas essas coisas, e mais. Porém, surpreendentemente, ele ouve mais do que fala e se você não tomar cuidado acabará dando- lhe uma entrevista ao invés de conseguir uma.
   Quando chegamos ao futebol americano, comecei a explicar como o jogador adversário interferira na minha alma mater, querido velho Brown. Papa demonstrou como os jogadores centrais imobilizaram os adversários quando ele jogava no Oak Park High em Illinois. De certa maneira, ambos acabamos ficando meio deprimidos condição em que míss Mary, a loira esposa de Hemingway, nos encontrou quando ela chegou para anunciar que já estava na hora de Papa jantar, e eu, de ir embora. Acho que ela estava certa. Fui para casa, e antes que eu saísse, Papa prometeu-me que da próxima vez ele me daria uma verdadeira entrevista.
   Há seis meses, voltei novamente à casa de Papa. A revolução estava a pleno vapor em Cuba. Apareci no meio da noite vestindo um macacão de pracinha, óculos escuros e tênis.
   Quando a excitação diminuiu (foi essa a vez em que quase fiquei chateado), explicaram-me que há coisas que você não deve fazer em Finca Vigia. Você não deve vir sem avisar, especialmente no meio da noite durante uma revolução. Você não deve fazê-lo, principalmente se estiver usando tênis silenciosos. Você não deve usar macacões ou roupas do exército em nenhum lugar em Cuba, a menos que esteja pronto a tirá-lo, de um modo ou de outro. E você não deve aparecer sem um convite mais recente que cinco anos. Mesmo assim, Papa mostrou-se amistoso.
   Bebemos um pouco e conversamos sobre Paris (Dome, Coupole e as mudanças desde a guerra), lutadores (ele ainda gostava de Louis, mas admirava Ray Robinson também), revistas (ele conseguiu algumas de suas primeiras provas rejeitadas pela Argosy) e porque eu não poderia obter a história que queria. Naquele momento eu estava interessado na coleção de armas de Hemingway.
  "Em primeiro lugar, eu não coleciono armas. Eu tenho algumas armas com as quais eu gosto de atirar. Eu gosto de minha Springfield 30-06. Mas não é uma boa idéia guardar armas dentro de casa em tempos como estes. E também não era nem mesmo uma boa idéia falar muito sobre elas", completa.
   Papa não parecia tão bem. Engordara um pouco e bebia somente um pequeno vinho leve. Tinha adquirido uma barriga. Papa geralmente ia para a cama às 22 horas desde o acidente. Parte da sua gentileza decorria do fato de não ter coragem de expulsar um convidado depois que se estabeleceu um agradável relacionamento, com muita conversa e bebida. Mas miss Mary servia bem como cão de guarda e consciência. As 21h 30min ela pigarreou, e às 21h 35min eu estava me despedindo, diante da porta, com a promessa de que na próxima vez, de verdade, eu teria uma história real.
   No meu terceiro cerco a Papa, descobri certas coisas. Papa nunca romperá uma promessa a um amigo, ou mesmo a um conhecido, mas ele não atrapalharia sua agenda de trabalho por ninguém. A partir das primeiras luzes do dia até, pelos menos, 13h 30min, Hemingway escreve em uma torre branca (literalmente) que se destaca em Finca Vigia e provavelmente é responsável pelo seu nome (significa Rancho da Vigia e tem uma vista fantástica de Havana e dos arredores).
   Depois de três dias tentando, consegui. contactar Papa pelo telefone. Ele disse que ficaria feliz em me ver uma hora qualquer, mas não poderia falar no momento. Ele me chamaria quando estivesse pronto.
   Depois de um dia, mais ou menos, eu já perdera 150 dólares jogando um jogo nervoso de mico-preto no cassino do Hotel Riviera, onde eu estava hospedado, esperando impacientemente que o telefone tocasse.
   O tempo passou. Planejei uma isca para pegar Papa antes de gastar todo meu dinheiro e ficar à mercê de um barco de bananas para voltar para casa. Procurei todos os velhos amigos de Papa. Fui até Cojimar, a vila de pesca onde ele mantém seu barco ancorado, e falei com os pescadores que o conheciam. Conversei com seu marinheiro, Gregorio Fuentes, um ilhéu das Canárias, que estava celebrando seu vigésimo ano como capitão do Pilar. Conversei com Elicio Arguelles, um esportista cubano e milionário, principal companheiro das pescarias de Papa, junto com o primo de Arguelles, Mayito Menocal, outro milionário esportista cubano. Descobri que os amigos de Papa são quase todos cubanos, e nenhum, pelo que pude descobrir, é escritor ou ligado às artes. À parte o fato de ser um escritor e um grande leitor, Papa é um dos bastardos menos ligado às artes que você poderia encontrar, de um ponto de vista exterior.
   Finalmente, quase por acidente, eu consegui. Estava lendo uma notícia para ele por telefone, sobre o O velho e o mar, de um folheto da Warner Brothers que tinha em mãos. Chamei a atenção de Papa ao comentário que se referia a Arguelles de um modo ambíguo, e disse-lhe que tinha outras notícias expedidas pelo pessoal do cinema, e - quem sabe? - elas talvez fossem confusas também, ou então até totalmente falsas. Papa mordeu a isca como um marlim míope.
  "Esteja aqui às 18h 30min, e traga essas coisas da Warner consigo!", esbravejou ele.                                                                                               As 18h 25min, o fotógrafo cubano Tony Ortega e eu apontamos no portão branco de Papa, onde havia uma grande placa: NÃO SÃO PERMITIDAS VISITAS; SÓ AS MARCADAS COM ANTECEDÊNCIA. Pela primeira vez eu conseguira uma visita marcada com antecedência.
   Notei um novo enfeite no portão da frente de Papa, que eu não vira da última vez em que estivera lá. Umas cinco fileiras de arame farpado rodeavam a cerca da propriedade, de seis hectares, e o portão de entrada. Perguntei ao velho homem que vigiava o portão, o porquê daquilo. Rebeldes?
   "Ladrones de mangos." Sorriu mostrando as gengivas desdentadas.
   Ladrões de manga? Foi tudo o que eu consegui saber através do velho. Estava quase escuro. Subimos de carro pela estrada mal iluminada acompanhados pelo cacarejar das galinhas, o latido dos cães, o grunhido dos porcos e o choro das crianças, que emanava das casas vizinhas, a nossa direita. Além disso, ouvimos a vibração da batida de uma música alta proveniente da juke box de um bar na cidade, a uns quatrocentos metros de distância.
   Papa saudou-nos à porta. Estava gentil, mas contido. Um incidente deixou-o nervoso com o fotógrafo. Eu prometera que não tiraríamos fotografias, mas Tony implorou- lhe que o deixasse tirar só uma foto para seu uso pessoal.
   Papa disse: "Prefiro levar um soco no nariz", mas ele acabou posando.
   Nunca vi um homem tão amedrontado por uma câmera. Ele gelou.
  "Vocês estão sempre tentando fazer com que a gente fique com cara de bobo. O que está querendo com isso?", perguntou ele a Tony. "Deixar-me com a boca aberta? É domingo. Estou tentando ficar calmo. Não sou ator de cinema. Afaste a câmera."
   Ele estava aterrorizado. Eu descobrira do que Papa tinha medo! Disse a Tony que guardasse a sua Rollei.
  "Veja", disse Papa, "é domingo. Não tenho muito tempo para relaxar. Se você quiser conversar e ficar calmo, tudo bem. Senão ... ". E mudou de assunto. "Quer um drinque?"
   Aceitei um uísque. Ele me passou a garrafa para que eu me servisse sozinho, mas ficou me olhando enquanto eu vertia a bebida no copo.
  "Perdeu um pouco de peso, não foi?"
   Eu já notara que ele tinha uma memória fenomenal, lembrando-se até da maioria dos detalhes daquele nosso primeiro encontro, cinco anos antes. Levantou-se. Vestia uma guayaberra cubana sem mangas - uma espécie de camiseta esportiva franzida usada por fora das calças, e shorts de estilo inglês, que ele usava habitualmente em casa e no barco. As calças estavam uns 15 centímetros mais largas na cintura. Desafivelou o cinto e afagou o local plano onde havia uma barriga da última vez em que eu o vira.
"Também emagreci. Desci para 93 quilos. É um bom peso para mim."
Olhou para mim novamente. Mesmo com 14 quilos a menos, eu não sou um peso-leve.
  "Fez algum exercício?" , perguntou ele.
   Disse-lhe que corria regularmente para pegar o metrô, mas era só.
  "Isso não é bom. Você deveria fazer exercícios regularmente. Deve começar a se prevenir contra os ataques do coração, essas coisas." Afagou o estômago novamente. "Faço os oito por oitenta [jardas] na piscina, todos os dias”. Sentou-se e folheou os informes da Warner que eu trouxera, lendo intensa e rapidamente enquanto eu olhava ao meu redor, pela sala de estar de 12 metros de comprimento.
   Nas paredes havia uma enorme variedade de troféus, inclusive um grande búfalo e muitos veados e antílopes graciosos. Havia também muitos cartazes de touradas, e em uma outra parede, uma cesta jai-alai. No chão havia um grande tapete taitiano, de ponta a ponta. A sala estava mobiliada confortavelmente com poltronas antigas estofadas e algumas cadeiras cubanas de vime e de mogno. Entre duas poltronas havia um bar, com uma boa variedade de bebidas alcoólicas e alguns vinhos.
   Hemingway bufou ao ver uma notícia afirmando que ele presenteara Batista com uma taça.
"Isso é um monte de asneira. Eu nunca vi o homem!" Com as outras, porém, ele parecia satisfeito. No entanto não estava muito propenso a falar sobre O velho e o mar.
  "Filho, eu não quero falar sobre o filme até conversar com Hayward [Leland Hayward, o produtor]. É como um mágico que tenta serrar uma mulher ao meio. Ele não conta à audiência como a coisa é feita antes de fazê-la, não é?"
   Eu vi que havia algo aborrecendo-o com o filme, mas ele não parecia estar inclinado a contar-me o que era. Disse que gostara muito dele, e que fora fiel ao livro. De acordo com algumas reportagens publicadas, ele recebera 250 mil dólares pelos direitos da novela ganhadora do Prêmio Nobel, mais um terço dos lucros, divididos em partes iguais com Hayward e o astro do filme, Spencer Tracy. Isso foi o máximo que ele já recebera pelos direitos de um filme, e foi o único em que ele aceitou receber uma participação.
   De alguma forma Hemingway sempre ficou com a pior parte nos acordos dos filmes.
   Pelo To have and have not, que está sendo rodado agora pela terceira vez, apesar dos seus protestos, ele recebeu uns meros dez mil dólares. Por O sol também se levanta ele não recebeu nada, pois doara os direitos à sua primeira mulher, que os vendeu por dez mil dólares. The killers, o filme que ele desprezou menos dentre todos os que foram feitos baseados em suas obras, rendeu-lhe 37,5 mil dólares e continha menos de cinco minutos de seu próprio diálogo.
   O velho e o mar mantém os diálogos de Hemingway quase intactos, na forma de um comentário constante por trás da ação da história da pescaria mais clássica do mundo. É a história da batalha de três dias entre Santiago, um velho pescador cubano, e o maior marlin jamais visto, e como, depois de capturar o peixe, o velho é obrigado a lutar até o final de suas forças contra os tubarões que eventualmente reclamam sua presa.
   O cenário é a pequena vila dos pescadores de Cojimar, a alguns quilômetros de distância da casa de Hemingway. Papa conhece quase todos os pescadores dessa cidade pessoalmente, e pelo nome. Ele tem orgulho de seus relacionamentos com profissionais, os únicos com quem ele realmente gosta de conversar sobre as pescarias.
   Quando O velho e o mar foi lançado, houve uma onda de adivinhações para saber quem era o velho na realidade. Alguns diziam que era um velho pescador chamado Anselmo, que vivia em Cojimar. Outro velho habitué da praia contou aos jornalistas que ele era o velho pescador.
   Hemingway ficou furioso. Arrastou o velho pretendente ao Teraza, o famoso restaurante de frutos do mar de Cojimar, e obrigou-o a se submeter a um júri dos seus colegas da cidade. O pretendente não só confessou que ele não era o velho, mas também que não era nem mesmo um pescador.
"Então por que você disse ser o velho?", perguntou Hemingway. "Porque eles me deram cinco dólares."
   Papa disse que toda aquela especulação foi só para descobrir depois que o homem era um simples lenhador.
"A história é uma ficção - o conflito entre um homem e um peixe. O velho não é ninguém em particular. Isso é estúpido. Várias pessoas têm alegado que tal pessoa é o velho e uma outra pessoa é o menino. Tudo isso é um monte de besteiras. Escrevi uma história de trinta anos de pescaria por aqui, e antes disso tambem .A maioria desses pescadores de Cojimar teve experiências como essas. Um deles ficou lutando dois dias contra um peixe, e quando o encontraram ele estava fora de si. Isso é até pior do que aquilo que meu velho pescador vivenciou. Se o velho tiver que ser alguém, então ele é o pai de Chago, que morreu há quatro anos. Fui várias vezes pescar com ele."
   Chago é Santiago Puig, o velho, um pescador que Hemingway encontrou em seus primeiros dias em Cuba. Seu filho, que tem o mesmo nome e também se tomou amigo de Hemingway, seguiu a mesma profissão e atuou como substituto e dublê ocasional de Spencer Tracy. Nós o encontramos mais tarde e ele nos contou essa história do encontro entre Hemingway e seu pai - o homem que, segundo Papa, é "tanto o velho pescador real quanto qualquer outro".
  "Estávamos pescando no barco de meu pai, o pequeno barco que você viu no cinema e que foi comprado de mim por 1,4 mil dólares, e levado a Hollywood. Nós havíamos pescado um grande marlim e estávamos com problemas para içá-lo a bordo. Eu ainda era um menino na época (está agora no final dos seus 40 anos). Hemingway aproximou-se com seu barco e nos ajudou. Logo depois ele perguntou se queríamos um drinque. Meu pai disse que gostaria de beber água, mas Papa lhe deu uma cerveja. Ele perguntou a meu pai se poderia ficar com a cabeça e a espada do marlim para homenageá-lo, e meu pai ficou orgulhoso em oferecer-lhe esses presentes. Papa tentou dar-lhe cinco dólares por eles, mas meu pai disse que jogaria o dinheiro ao mar se ele não o guardasse novamente. Então Papa guardou o dinheiro no bolso mas disse que queria ser seu amigo, e eles pescaram juntos muitas vezes depois disso."
   O vilão do filme é o tubarão, naturalmente. Na vida real, Hemingway foi um inimigo implacável do tubarão."Acho que é a única coisa que ele realmente odeia", disse um amigo.
   O primeiro grande peixe que Papa pegou, um atum contra o qual ele lutou durante horas, em Key West, foi finalmente comido por um tubarão. Naquela noite Papa apareceu com uma metralhadora; conseguira persuadir o milionário Bill leeds a dá-la ou vendê-la a ele. Desde então, ele persegue os tubarões com fuzis, rifles, espingardas e um 22.
  "Com o 22 o tiro é na cabeça", diz Hemingway. "Você tem que conhecer o ponto certo e atingi-los quando sobem à superfície." Ele atira neles, também.
   Papa tem uma invenção só sua para os tubarões. É uma lança de madeira de cerca de três metros de comprimento, com a lâmina afiada e temperada de uma mola de um Ford. Ele sempre leva umas duas ou três dessas lanças a bordo do Pilar.
  É claro que faz parte de uma história de pescadores o fato de ele ter trazido o primeiro atum das Bahamas não ferido por tubarões.
  "Com os diabos", disse ele. "Eu trouxe os dois primeiros. Você tem que içá-los a bordo depressa para afastar os tubarões. Se você deixá-los se cansarem ou ficarem apáticos, os tubarões avançam.”
   Seu colega Arguelles diz que Papa pegou esse primeiro atum em duas horas.                                                                                                             "Ele estava pescando descalço, e no momento em que terminou, os dedos de seus pés estavam cortados e sangravam por causa do atrito com a madeira. Foi muito mais pela violência e pela simples força física que Papa foi capaz de puxar aqueles peixes - presos a uma vara rígida e firme."
   No entanto, por baixo do ódio de Papa há um profundo respeito por alguns tubarões. O mako - dentuço, em espanhol - é o primeiro tubarão a atacar o marlim do velho na história de Hemingway.
  "Ele não é um comedor de carniça", diz Papa. "Ele caça e tem o bote mais rápido do mar. Luta tão bem quanto qualquer peixe esportivo quando é fisgado." Ao falar, Papa chegava às raias da admiração por esse campeão dos tubarões. Ele gostava de conversar sobre isso.
"Os peixes-martelo atacarão se estiverem com fome ou se a água estiver turva. Alguns são perigosos porque são bobos. Um cação até engolirá uma lata de óleo se estiver com fome: pensará que é uma tartaruga. O mako é um peixe bom - muito ativo. Pode até pular mais alto que um marlin; é um grande peixe esportivo da Nova Zelândia. Se você sair com os rapazes de Cojimar, observe quando eles o içarem a bordo. Ele costuma quebrar muitos equipamentos bons. Muitas vezes, depois de levar pauladas e ser arpoado, ele volta à vida no fundo do barco e morde um pedaço da perna de alguém."
   As opiniões de Hemingway sobre tubarões e outros peixes são muito respeitadas, até mesmo por ictiologistas de museus. Um deles até colocou seu nome num peixe-rosa.
  "Existem só dois tubarões que são realmente maus: o dentuço e o grande tubarão branco. Alguns desses rapazes costumam aproximar-se de um tubarão cação e quando estes não fazem nada, dizem que tubarões não são perigosos. Em todos esses filmes, são os cações que você vê lutando com eles. Eles jamais se atreveriam a fazer isso com um mako. É por isso que tiveram tanta dificuldade em conseguir as cenas de tubarões em O velho e o mar. Disse-lhes que fossem a Bimini durante a migração do atum. É quando o mako também migra. Mas eles enrolaram tanto que já era tarde demais, e então foram a Nassau, onde não havia mais nenhum."
   Pude ver um pedaço dos lucros de Papa ser mordido como um naco de carne de atum vermelho. Ele começou a pensar em outra coisa. Uma das mordomias mais caras da produção do filme - que custou mais que o dobro de seu custo original previsto de dois milhões de dólares - foi a viagem de cem mil dólares em que Hayward o enviou a Cabo Blanco, no Peru, atrás do grande marlim.
  "No início conseguimos filmar bastante, mas foi tudo jogado fora porque era em Cinemascope e eles decidiram não fazer o filme em Cinemascope. Então esse material foi filmado por Fred Glasell. Foi incrível, foi o maior marlim jamais fisgado - um recorde mundial. Eu disse a Hayward que não conseguiríamos nada melhor do que isso, mas ele nos pediu para tentar, de qualquer modo. O maior marlim jamais fisgado tinha mais de quatro metros e cerca de seiscentos quilos, mas HolIywood queria um de cinco metros.”
   Hemingway foi ao Peru com Gregório, seu barco e Arguelles. Miss Mary também foi.
  "Nós pescamos durante 23 dias sem conseguir nada. De qualquer modo nem nos divertimos, porque tínhamos que usar linhas tão pesadas para simular a linha de pesca de mão no filme, que mesmo se pegássemos algo não seria nada. ArguelIes fisgou um de quatrocentos quilos em duas horas, na linha pesada. Finalmente conseguimos três ou quatro dos grandes e enviamo-los a Havana, mas não eram suficientemente grandes, e não saltaram - nem uma vez. Havia três barcos empenhados nesse trabalho, e estavam custando uma fortuna. Ofereci-me para ficar com um dos barcos e uma câmera, mas nesse momento eles decidiram suspender o filme por algum tempo. Finalmente, acabaram usando a filmagem de Glasell. Gregório estava humilhado. Ele tinha certeza de que conseguiria quebrar um recorde se lhe dessem mais tempo."
   Servi-me de outro uísque e ofereci a garrafa ao Papa. Ele a recusou com um gesto da mão.
  "Estarei bebendo esse por um bom tempo ainda depois que você já tiver ido embora." Agitou o uísque com soda que estava degustando. "Só tomo dois por noite, e tenho que fazê-los durar."
   Contei-lhe que estivera bebendo o Papa's Special com um amigo seu, na noite anterior, e que ficamos comparando nossas capacidades de beber.
   Papa pareceu interessado e um pouco saudoso dos velhos tempos.    "Você quebrou meu recorde?"
  "Qual foi?"
  "Quinze."
   "Quinze! Eu já fiquei meio grogue só com quatro. E qual foi o seu tempo?
  "Bem, de cerca de l0h 30min até às 19 horas. Guilhermo (um famoso jogador de jai-alai) apareceu no Floridita. Estava deprimido. Acabara de perder uma partida de trinta a 16. Eu disse: Anime-se, rapaz, vamos tomar um drinque. Começamos a beber, calmamente. Não era uma competição, mas continuávamos lá às 19 horas, e voltei para casa para trabalhar. Eu sei que bebi 15 porque marquei na conta.”
  "E você foi trabalhar?"
  "Espere um minuto. Não, eu não trabalhei. Eu li." Ele começou a pensar. "Quanto álcool é isso? Deixe-me ver ... são 118 mililitros num especial .. "
Eu já havia calculado. "Mil setecentos e setenta mililitros - mais de dois quintos!"
"É claro, nós bebemos em pé. Você consegue beber mais desse jeito. Acho que comemos alguns saladitos [petiscos] também, e alguma outra coisa. Você tem que comer algo."
  "O que você acha do Vasco da Gama ali, isso te aborrece?" Referia-me ao busto de bronze de Hemingway colocado no canto preferido de Papa do bar Floridita.
  "Do jeito que está ficando, eu nem tenho mais vontade de ir lá. Esses bastardos não querem te deixar beber em paz. Não tenho mais nenhuma privacidade. Muitas pessoas pensam que a estátua é de Constante (a proprietária).A senhora Constante mandou fazê-la aqui, no final da estrada."
   Sorveu seu uísque com soda aos pouquinhos. Antigamente ele costumava orientar seu barco pela garrafa. Dois Fundador ao norte por um Bacardi ao leste.
   Perguntei-lhe se gostaria de ir à Rússia como correspondente da Argosy.
  "Já me convidaram umas três vezes - como escritor de intercâmbio, o que quer que seja isso. O Departamento de Estado também me convidou. Com os diabos, o que eu faria? Posar para fotografias, dar autógrafos e fazer um monte de discursos? Não conheço a língua.Você não consegue descobrir coisa alguma quando não conhece a língua. Eu me sinto bem em qualquer lugar onde falem francês, italiano, espanhol, ou até swahili. É só."
   Miss Mary entrou na sala, vestindo um short branco curtinho com uma estampa miúda, destacando suas pernas bem bronzeadas.
  "Vi-a no cinema", disse-lhe, referindo-me à fração de momento em que ela aparece, no final do O velho e o mar.
  "Ora, aquilo foi uma bobagem", disse ela, distraída. Virou-se para Papa. "Miss Puss desapareceu. Não a vejo há horas."
   Hemingway pareceu ter ficado tenso, mas tranqüilizou miss Mary. "Não se preocupe, ela vai aparecer."
   Miss Mary retirou-se para os fundos da casa novamente, mas depois que saiu, Papa parecia nervoso. Levantou-se e ficou ouvindo os ruídos da noite. Tudo o que se podia ouvir eram as insistentes batidas de atabaques.
   Pensei comigo mesmo: "Os nativos são incansáveis", mas percebi que era somente o barulho distante da caixa de música do bar em São Francisco de Paula.
   Perguntei sobre a recente colocação do arame farpado na cerca, e Papa encarou-me com um olhar penetrante.
  "Ladrões de mangas?", perguntei inocentemente.
Ele assentiu distraidamente, ainda atento aos ruídos da noite. "Talvez."
   Ouviu-se um som na escuridão, como o de um bebê chorando. Papa sorriu e relaxou.
  "Ela voltou. Miss Puss voltou", disse ele. Percebi que era um gato desaparecido que o preocupava. Há gatos em toda a propriedade, em Finca Vigia. "São só gatos de rua cubanos, mas nós os amamos", disse miss Mary.
   Miss Mary voltou à sala e olhou para mim significativamente. Captei o sinal.                                                                                                         "Avise-me se quiser contar uma história sobre os tubarões. É uma boa história e  ainda não foi escrita", disse Papa.
  Eu disse que o faria, e saí na escuridão embalado pelas batidas dos atabaques.
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