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Grandes entrevistas históricas

                     

  Gandhi

Entrevistado conduzida por  H.N. Brailsford, publicada no jornal  Harijan, de 14 de abril de 1946 e republicada no livro: ALTMAN, Fabio (org.). A arte da entrevista: uma antologia de 1823 aos nossos dias. São Paulo: Scritta, 1995.   

 

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Mahatma (Mohandas Karamchand) Gandhi (1869-1948), líder político e espiritual da Índia, nasceu em Gujarat, na região oeste do país. Depois de iniciar sua carreira profissional como advogado na Inglaterra, ele se mudou para a África do Sul, onde inauguraria sua atividade política, à frente da causa dos direitos de cidadania dos indianos que lá viviam. O método de protesto pregado por Gandhi era a desobediência civil sem violência (satyagraha, em indiano). De volta a seu país natal, entre 1930 e 1934 Gandhi comandou um maciço movimento em protesto contra a pobreza no campo, a cartelização das indústrias têxteis britânicas e o sistema de divisão da sociedade por castas. Ao final da Segunda Guerra, depois de dois anos detido e inúmeras greves de fome, ele deixou a prisão e reforçou seu insistente clamor pela independência da Índia. Com o crescimento do naconalismo muçulmano, o governo inglês finalmente cedeu - e em 1947 teve fim o Império Britânico das Índias. Os muçulmanos formaram o Paquistão Ocidental e Oriental (futuro Bangladesh).As regiões do Ceilão e da Birmânia (atual Mianmá) tornaram-se independentes. O país foi dividido segundo critérios religiosos. Gandhi foi assassinado por um fanático em 1948.

 

Henry Noe1 Brailsford (1873-1958) é autor de uma obra clássica, de cunho

socialista, sobre a rivalidade entre os impérios que resultou na Primeira Guerra Mundial: The war of steel and gold (A guerra do aço e do ouro). Trabalhou como redator-chefe de jornais como The Manchester Guardian, Daily News e The Nation. Era especialista em temas relacionados à Índia.

 

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Quando estive em Poona pela última vez, Gandhi era um prisioneiro, e não me foi permitido vê-lo. Depois a cidade, melancólica e  zangada, foi envolvida numa greve geral. Hoje está celebrando o carnaval da primavera numa atmosfera mais alegre. Gandhi estava feliz quando o encontrei, pois o discurso do senhor Attlee no debate indiano abrira o caminho à independência. Ele estava com um bom aspecto e parecia bem mais jovem do que era realmente. Seus modos nunca eram sole­nes e muitas vezes ele relaxava, dando uma risadinha bem-humorada. De um modo difícil de definir, sentia-se que esse homem falava pela Índia... Entretanto ele ad­vertiu-me de que falava só por si mesmo e não pelo Congresso. Nossa conversa começou pelo reconhecimento, pelo primeiro-ministro, do direito da Índia de escolher a independência. Isso era bem-vindo para Gandhi, e não só isso, mas todo o teor do discurso. Ele continuou:

"Mas não posso esquecer que a história da ligação da Grã Bretanha com a Índia é uma tragédia de promessas não cumpridas e esperanças frustradas. Precisamos manter a mente aberta. Alguém que busque a verdade nunca começará qualificando as declarações de seu opositor como indignas de confiança. Por isso tenho esperanças e, de fato, nenhum indiano responsável se sente de outro modo. Dessa vez eu acredito que os britânicos querem mesmo negociar. Mas a oferta surgiu de repente. Será que a Índia vai ser empurrada à independência? Hoje eu me sinto como um passageiro, içado numa cesta ao tombadilho de um navio que navega num mar revolto, e que ainda não conseguiu firmar os pés no chão. Devíamos ter tido alguma preparação psicológica, mas mesmo agora ainda não é tarde demais. A maré de desgosto cresceu muito e isso não é bom para a alma. Os últimos dois meses deveriam ter sido plenos de gestos generosos. Esse é um marco, não só na história da Índia e da Grã-Bretanha, mas na história do mundo todo".

O que Gandhi queria dizer estava claro. O governo britânico fizera a coisa certa mas, na sua maneira de fazê-lo, não acertara o ponto crucial. Quando lhe pedi exemplos concretos, ele escolheu dois. A libertação dos prisioneiros políti­cos foi gradual e ainda era incompleta. Ele acrescentou "Não havia motivo para se ter medo do perigo. Se a independência está chegando, como esses homens po­deriam ser contra? Uma anistia completa teria conquistado a imaginação do povo. Se você pretende transferir o poder, deve fazê-lo corajosamente".

Continuou, falando da taxa do sal. "A sua abolição seria um gesto que o mais pobre camponês poderia ter entendido.Teria até mais significado  para ele do que a própria independência em si. O sal, nesse clima, é uma necessidade para a vida, como o ar e a água. Ele precisa para si mesmo, seu gado e sua terra. Esse monopólio cessará no momento em que obtivermos a independência. Por que então não aboli-lo hoje? Através dessas ações o governo poderia ter criado entre as massas um sentimento de que a nova era já despontou ... "

Lembrei Ghandi de que muitos ingleses acham difícil entender porque os indianos preferem a independência ao Estado de Domínio. Sua resposta foi surpreendente: "Houve um tempo em que eu costumava defender o Estado de Do­mínio, e até o preferia, à independência. Foi essa a minha atitude durante a Primeira Guerra Mundial. Até cheguei a usar, ao escrever ao lorde Chelmsford, o vice-rei naquela época, uma expressão que foi depois muitas vezes usada contra mim. Eu queria evocar, no peito dos indianos, a mesma lealdade à coroa britânica que existe no peito dos ingleses. Foi um jogador inglês de futebol que me converteu à independência".

Com uma risada Gandhi explicou que se referia a C.F.Andrews, um notável atleta em Cambridge e membro graduado dessa universidade.  Gandhi acrescen­tou: "Andrews me fez entender o significado do título Rei-Imperador. O rei britânico é rei também nos Domínios, mas ele é o Imperador da Índia. A Índia sozinha se constitui um Império. Os Domínios são povoados pelos seus primos. Mas nós indianos, com nossa cultura e nossas tradições tão diferentes, não poderíamos pertencer nunca à família britânica. Poderíamos pertencer a uma grande família global de nações, mas primeiro precisamos parar de ser cães submissos. Assim coloquei-me a favor da conquista da independência. Você pode argumentar que ao fazer isso eu estaria jogando fora a proteção do Exército e da Marinha britânicos. A Índia não precisaria deles, caso ela se tornasse realmente não-violenta. Se, no fulgor da liberdade, ela puder acreditar nisso, nenhum poder do mundo jamais dirigirá um olhar de cobiça sobre ela. Isso seria a glória da Índia e sua contribuição ao progresso do mundo.

"Se pelo menos os ingleses seguissem esse meu argumento, eles usariam outro tom para sua oferta da independência. Hoje eles insistem em dizer que o Estado de Domínio é o melhor presente que podem oferecer: ainda que os india­nos escolham a independência, eles o terão. Não, essa é uma atitude errada. Eu gostaria de ouvir os ingleses dizerem: Pelo bem do mundo e o nosso, assim como o seu próprio, vocês terão a independência hoje."

Pedi a Gandhi que considerasse as ansiedades de seus interlocutores ingle­ses e lhes dissesse se a independência indiana poderia trazer riscos à segurança da Grã-Bretanha e do mundo. Ele respondeu que os britânicos não precisariam nun­ca temer uma Índia independente. Se deixassem o país como amigos, a índia por seu lado permaneceria sempre uma amiga. Mas a Grã-Bretanha, contei-lhe, espera alguma garantia de amizade. Será que uma Índia independente entraria numa aliança com a Grã-Bretanha? A resposta de Gandhi veio logo:

"Supondo que a Índia dissesse não, vocês reconheceriam a sua indepen­dência só sob a condição de ela entrar numa aliança com a Grã-Bretanha? Se vocês o fizessem, imediatamente isso diminuiria o valor de sua oferta e lhe tiraria toda a graça. A atitude correta seria fazer o que a Índia pede como uma questão de direito, mesmo que ela quisesse ser inamistosa e pagar em sua própria moeda. Não havia nenhum cálculo na mente dos britânicos quando eles fizeram um acor­do com os boêres no final de uma guerra sangrenta, e os boêres tornaram-se seus amigos desde então". Respondi dizendo que a Grã-Bretanha já decidira terminar a ligação coerci­va com a Índia. Mas vivendo, como ela vivia, num mundo perigoso, era inevitável que ela se perguntasse se, como aliada numa guerra defensiva, ela estaria autori­zada a usar as bases estratégicas e os postos avançados da Índia contra o agressor. Se essa pergunta fosse feita num espírito de não-barganha, a Índia poderia dar uma resposta que o confirmasse?

Ghandi respondeu:

"Os ingleses têm que aprender á ser Brahmins, e não Banias. O Bania, devo explicar, é o negociante, ou como disse Napoleão, o dono da  loja. O Brahmin é o homem suficientemente inteligente para colocar o valor moral acima dos valores materiais da vida. Um romancista, Gujarati, disse que os ingleses são soldados e Brahmins, mas não Banias. Foi um veredicto generoso, mas errôneo. Os ingleses ainda têm que desenvolver o espírito brahmínico. Mesmo o soldado britânico ainda calcula e barganha como um Bania, e não consegue alcançar o mais elevado tipo de coragem. Ainda alimento a esperança de que os britânicos reajam ao espírito de não-violência da Índia. Como autor desse movimento, eu sei o que ele tem significado para o mundo. O espírito da não-violência é a maior conquista do mundo. Sinto que é minha responsabilidade ajudar meus irmãos a não se degradar com a barganha. Se você e nós podemos chegar a essa moral elevada, nenhum perigo poderá nos alarmar. É provável que muitos membros do Congresso não acatem esse ponto de vista e queiram discutir uma aliança hoje. Mas a independência chegará livre como o ar; não nos deixem barganhando sobre ela."

A uma outra questão, se a aliança defensiva deverá ser discutida quando a independência for ratificada por um acordo, Gandhi respondeu:  "Quando a Índia sentir o fulgor da independência, provavelmente ela entrará num acordo desses espontaneamente, por sua livre vontade. A amizade espontânea entre a Índia e a Grã-Bretanha será então estendida a outras potências, e entre elas seria mantido o equilíbrio, porque elas possuirão força moral. Para ver essa previsão realizada, quero viver 125 anos ... ".

Ele disse ter esperanças de um tratado comercial mutuamente cooperativo entre uma Grã-Bretanha amistosa e uma Índia independente.  Ele se prontificaria mesmo a dar à Grã-Bretanha a preferência caso a Índia precisasse importar bens. Enquanto conversávamos sobre o Paquistão, Ghandi disse que se nenhuma outra solução funcionasse, ele estaria preparado para submeter  toda a questão à arbitragem internacional. Também não se podia esquecer desse expediente, caso surgisse qualquer outra questão insolúvel entre a Grã-Bretanha e a Índia, sobre os débitos, por exemplo. Mas ele não via uma barreira muito grande de dificuldades pela frente. Suas últimas palavras foram: "As dificuldades fazem o homem... "

Saí de lá com a sensação de que estivera conversando com um homem valente, que tem a coragem de acreditar que a sociedade humana pode ser constru­ída só sobre princípios morais. Interpelado sobre nossas preocupações com os perigos militares, ele se esquivou e repetiu com fé inabalável sua crença de que a segurança somente será possível quando os homens aprenderem a tratar uns aos outros como irmãos e semelhantes. Nenhum outro método surtirá efeito.

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