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Grandes Entrevistas

 

Mark Twain

 

Entrevistado Por Rudyard Kipling - Extraída do livro: A arte da entrevista:

From Sea to sea, 1889                 uma antologia de 1823 aos nosos dias,

                                                      organizada por Fabio Altman. São Paulo: 

                                                       Scritta, 1995

 

Mark Twain era o pseudônimomo de Samuel Langborn Clemens (l835-1910), escritor americano, trabalhou como gráfico, ourives e marinheiro de embarcações no rio Mississippi antres de editar um jornal em  Nevada.  “Mark Twain” era o grito dos homens que sondavam a profundidade do leito do Mississippi,  significando, numa corruptela do inglês, uma medida de duas braças, ou 20 palmos. Depois de viajar pela Europa e Palestina, ele publicou um divertido relato de viagem,  Innocents Abroad, em 1869. Seguiram-se dois romances clássicos Tom Sawyer (As aventuras de Tom Sawyer), de 1876 e Huckleberry Finn, de 1884.

 

Rudyard Kipling (l865-1936), o escritor inglês, nasceu em Bombaim, na Índia. Seu pai era diretor da escola de arte da cidade de Lahore -  e foi ali que Kipling inicioou sua carreira literária em 1880, como jornalista da Civil and Military Gazette. Seu primeiro livro de poesias  Departmental ditties, foi publicado em 1886, e sua primeira coleção de pequenas estórias Plain tales from the hills, em 1888.  From sea to sea é uma coleção de artigos escritos ao longo de uma viagem através dos Estados Unidos. Este encontro entre dois grandes nomes da literatura universal é particularmente interessante pela fobia que o próprio Kipling, o cronista do auge do período colonialista, desenvolveria mais tarde pelos jornalistas e pelas entrevistas.

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Os senhores formam um grupo de pouca importância. Alguns podem ser representantes governamentais, outros, vice-governadores. Outros podem ter o privilégio de caminhar pelo Mall de braços dados com o vice-rei. Mas eu vi Mark Twain nessa manhã radiante, apertei sua mão, fumei um charuto - não, dois charutos - em sua companhia e conversei com ele por mais de duas horas! Compreendam que não os desprezo, decerto que não. Apenas lamento muito a sorte de todos, exceto do vice-rei.  Para amenizar-lhes a inveja e provar que ainda os considero meus iguais, vou contar-lhes a história.

 

Disseram-me em Buffalo que ele se encontrava em Hartford, em Connecticut, e depois disseram-me que "talvez tivesse viajado para Portland". Um caixeiro-viajante alto e gordo jurou-me que o conhecia intimamente, e que Mark estava passando o verão na Europa, informação que me aborreceu de tal maneira que acabei embarcando no trem errado e sendo deixado pelo condutor a cerca de O.5 km da estação, em meio à solidão dos trilhos da linha férrea. O senhor já tentou, atrapalhado por um pesado casaco e uma valise, esquivar-se de locomotivas vindo das mais diversas direções enquanto o brilho do sol ofusca seus olhos?  Mas esqueci-me de que os senhores, pessoas tão sem importância, nunca encontraram Mark Twain.

 

Salvo do limpa-trilhos, vagando solitário, deparei-me com um estranho.

 

"Ele está em Elmira. Elmira, no estado de Nova lorque - este Estado, e não a 300 quilômetros daqui," e acrescentou, sem necessidade,"Vamos, Kelley, em frente!"

 

Viajei até quase meia-noite, quando fui despejado na porta de um hotel de quinta categoria em Elmira.  Claro, eles sabiam tudo sobre "aquele sujeito chamado Clemens", mas achavam que ele não se encontrava na cidade. Fora para algum lugar no leste. O melhor a fazer era controlar minha impaciência até o dia seguinte e então procurar o cunhado do "sujeito chamado Clemens", que lidava com carvão.

 

A idéia de revirar uma cidade de trinta mil habitantes em busca de meia dúzia de parentes além do próprio Mark Twain manteve-me acordado. O amanhecer revelou-me Elmira, cujas linhas férreas davam às ruas um aspecto de desolação e cujos subúrbios se dedicavam totalmente à fabricação de caixilhos e umbrais de portas e janelas. A cidade era cercada por pequenas colinas agradáveis, que eram contornadas por árvores e utilizadas para o cultivo. O rio Chenung atravessava toda a cidade e havia acabado de inundar algumas das principais ruas.

 

O atendente do hotel e o telefonista me asseguraram que o tão procurado cunhado estava fora da cidade, e ninguém sabia por onde andava o tal "sujeito chamado Clemens".  Mais tarde, descobri que ele não passava o verão ali há quase dezenove anos e isso era o mesmo que começar tudo de novo.

 

Um policial muito prestativo informou-me que tinha visto Twain "ou alguém muito parecido com ele", dirigindo uma charrete no dia anterior. Isso me deu uma deliciosa sensação de proximidade. Imagine o que é viver em uma cidade onde se pode ver o autor de Tom Sawyer, ou "alguém muito parecido com ele", passeando pelas ruas de charrete!

 

"Ele mora lá longe, em East Hiil", informou o policial, "a cinco quilômetros daqui.”                              

 

Foi então que começou a busca – em uma charrete alugada, no alto de uma imensa colina, onde   os girassóis floresciam à beira da estrada, onde ficavam as plantações ondulantes e onde vacas dignas da revista Harpers Magazine viviam na mais perfeita tranqüilidade, todas prontas para serem transferidas para uma fotogravura. O ilustre escritor deve ter sido perseguido por forasteiros durante muito tempo, e subiu a colina para se refugiar.

 

Então, o cocheiro parou em frente a uma choupana pequena, branca e miserável, e perguntou plo senhor Clemens.      

 

"Eu sei que ele é uma pessoa importante", explicou , mas nunca se sabe qual a idéia que esse tipo de gente faz de um lugar para morar."

 

Uma jovem, que desenhava flores, virgas-áureas e cardos em meio a uma enorme variedade delas, guiou o grupo na direção certa.

 

“É uma linda casa em estilo gótico, do lado esquerdo, um pouco mais adiante.”

 

Casa em estilo g..." disse o cocheiro. "Muito poucos cocheiros aceitam fazer este percurso, principalmente quando sabem para onde estão indo", e lançou-me um olhar furioso.

 

Era uma casa muito grande e bonita, construída em estilo que não tinha nada de gótico. Era coberta de heras e tinha uma varanda cheia de cadeiras e redes. O teto da varanda era de trepadeiras, por onde os raios do sol penetravam, iluminando as mesas que ficavam abaixo.

 

Decididamente esse lugar remoto era ideal para trabalhar, se alguém conseguisse em meio a essa brisa e ao murmúrio das plantações ao longe.

 

De repente, surgiu uma senhora acostumada a lidar com forasteiros ansiosos. "O senhor Clemens acabou de sair para ir ao centro.  Ele foi à casa do cunhado”

 

Então ele estava perto e, afinal, a busca não tinha sido em vão. Saí rápido e o cocheiro, derrapando e praguejando alto, chegou ao pé da colina sem nenhum acidente. Foi no intervalo entre o toque da campainha e a porta aberta, que ocorreu-rne, pela primeira vez, que era possível que Mark Twain tivesse outros compromissos além de divertir um lunático foragido da índia, mesmo porque eles nunca mereceram grande admiração. E na casa de um outro homem, afinal de contas, o que eu iria dizer?  E se a sala de visitas estivesse cheia de gente, e se um bebê estivesse doente, como eu iria explicar que tudo o que queria era apertar sua mão?

 

Então tudo aconteceu mais ou menos da seguinte maneira. Uma ampla sala de visitas envolta na penumbra, uma pesada cadeira, um homem de olhar vigilantge, uma cabeleira grisalha, um bigode castanho que cobria uma boca tão delicada quanto a de uma mulher, a mão forte e firme apertando a minha e a voz mais calma, mais macia e mais pausada do mundo dizendo:

 

O senhor acha que me deve algo e veio me dizer isso. É o que eu chamo desaldar uma dívida como um cavalheiro.

 

"Puft" de um cachimbo de sabugo (eu sempre disse que o cachimbo de espuma-do-mar do Missouri era o melhor do mundo) e eis que Mark Twain acomo­da-se na poltrona grande. E eu fumando de forma reverente, como na presença de um superior.

 

O que ocorreu-me primeiro foi que ele era um homem idoso. Depois de um minuto de reflexão, contudo, percebi que a coisa era bem diferente e, em cinco minutos, enquanto aqueles olhos me observavam, percebi que o cabelo grisalho era um acidente sem importância. Ele era bem jovem. Eu apertava a sua mão, fumava seu charuto e o ouvia falar. Esse homem que eu aprendera a amar e a admirar a quase quarenta mil quilômetros de distância.

 

Lendo seus livros, esforcei-me para formar uma idéia da sua personalidade. Todas as minhas noções preconcebidas estavam erradas e aquém da realidade. Abençoado aquele que não se decepciona quando encontra com um escritor ve­nerado. Aquele foi um momento para ser lembrado. Fisgar um salmão de cinco quilos não era nada perto daquilo. Eu tinha fisgado Mark Twain, e ele me tratava como se, de certa forma, eu fosse igual a ele.

 

A essa altura, percebi que ele estava discutindo a questão dos direitos autorais. Preste atenção às palavras do oráculo transmitidas por intermédio desse veí­culo sem importância. O senhor jamais será capaz de imaginar as vibrações lentas e contínuas da fala arrastada, a seriedade solene do rosto, a contorção singular do corpo, o pé jogado por sobre o braço da cadeira, o cachimbo amarelo preso a um canto da boca e a mão direita alisando descuidada o queixo quadrado:

 

Direitos autorais? Alguns homens têm princípios, outros não.  Eu acho que os editores são humanos. Eles não nascem editores. São levados a essa atividade... pelas circunstâncias. Alguns editores têm ética. O meu tem. Ele me paga pelas edições inglesas dos meus livros. Quando ouvir alguém falar na publicação sem o pagamento de direitos autorais das obras de Bret Harte e de outros, assim como dos meus livros, diga para essa pessoa verificar os fatos. Acho que vão descobrir que os direitos estão sendo pagos. Sempre foi assim.

 

Lembro-me de um editor inescrupuloso e formidável. Talvez já esteja morto. Ele costumava pegar meus contos - não posso chamar isso de roubo. Era algo diferente. Ele pegava minhas histórias uma a uma e, com elas, fazia um livro. Se eu escrevesse um ensaio sobre odontologia ou teologia ou qualquer coisa desse tipo - algo bem pequeno (e indicou o tamanho com os dedos), qualquer tipo de ensaio - esse editor corrigia e aumentava o trabalho.

 

Ele arranjava um outro homem para acrescentar ou cortar partes do meu trabalho até obter exatamente aquilo que desejava. Então, publicava um livro chamado “Dentistry by Mark Twaín” (Odontologia, por Mark Twain), que consistia daquele pequeno ensaio e de algumas outras coisas acrescentadas por ele. O ensaio sobre teologia seria um outro livro e assim por diante.  Não considero isso justo. É um insulto.  Mas acho que ele agora está morto.  Eu não o matei.

 

Fala-se muita besteira a respeito dos direitos autorais internacionais. A maneira adequada de lidar com eles é tratá-los como uma propriedade em todos os sentidos. As coisas deviam funcionar da seguinte maneira: se o Congresso outorgasse uma lei estipulando que a vida de um homem não poderia ultrapassar 160 anos, todos iam achar graça.  Essa lei não afetaria ninguém. Todos estariam livres da autoridade da corte. Um prazo de alguns anos para os direitos autorais vem a ser a mesma coisa. Não há lei que possa fazer um livro viver ou morrer antes do período estipulado.

 

Tottletown, na Califórnia, era uma cidadezinha nova, com uma população de três mil habitantes - bancos, bombeiros, prédios de tijolos e todas as vantagens da vida moderna. Ela existiu, prosperou e desapareceu. Hoje, ninguém pode botar os pés em qualquer vestígio de Tottletown. Ela não existe mais. Londres continua a existir. Bill Smith, autor de um livro pronto para ser publicado por volta do ano que vem, é como uma propriedade em Tottletown. William Shakespeare, cujas obras são exaustivamente lidas, é como uma propriedade em Londres.  Vamos deixar que Bill Smith, bem como o falecido senhor Shakespeare, tenha o completo controle sobre seus direitos autorais, assim como sobre suas propriedades.Vamos deixar que ele perca seu direitos no jogo, gaste-os com bedidas ou vá doá-los à Igreja.  E que os seus herdeiros façam o mesmo.

 

De vez em quando vou a Washington, determinado a apresentar esse tipo de visão ao Congresso. O Congresso se opõe aos direitos autorais internacionais já prontos e ele não é muito forte. Apresentei a teoria da propriedade a um dos senadores. Eu disse: “Vamos supor que um bomem escreva um livro que nunca deixe de ser publicado”. Ele respondeu: “Nós não vamos viver para ver os herdeiros desse homem colocando em prática a sua teoria”. Eu disse: “Na sua opínião, ninguém tem senso comercial. O lívro que nunca vai deixar de ser publicado não pode ser mantído artificialmente a preços inflacionados. Sempre haverá edíções muito caras e edições baratas sendo lançadas simultaneamente.

 

Vamos tomar como exemplo o caso dos romances de sir Walter Scott, prosseguiu Mark Twain, voltando-se para mim. Quando havia direitos autorais para protegê-los, eu comprava as edições mais caras que podia, porque gosto deles. Ao mesmo tempo, o editor vendia edições que qualquer um podia comprar. Ele tratava esses romances como uma propriedade e, como não era idiota, percebia que uma parte da terra podia ser explorada como uma mina de ouro; outra, como uma horta; e outra, como se fosse mármore.  O senhor entendeu?

 

O que entendi com a mais perfeita clareza foi que Mark Twain estava sendo forçado a defender a simples teoria de que o homem possui tantos direitos sobre o seu trabalho intelectual (imagine que heresia!) quanto sobre o seu trabalho manual.  Quando o rei fala, os súditos se calam.  Calei-me por estar de acordo, e o tema da conversa desviou-se dos livros em geral para os de sua própria autoria.

 

Enchendo-me de coragem e sentindo-me como se tivesse o apoio de centenas de milhares de pessoas, indaguei se Tom Sawyer se casara com a filha do juiz Thatcher e, se algum dia, ele escreveria sobre Tom Sawyer adulto.

 

Eu ainda não decidi, disse Mark Twain, levantando-se, enchendo o cachimbo e andando de um lado para outro da sala, metido em seus chinelos.  Andei pensando em escrever a sequencia de “As aventuras de Tom Sawyer” em duas versões. Em uma, eu o faria ascender e chegar ao Congresso.  Na outra, eu o enforcaria. Assim, os amigos e os inimigos do livro poderiam fazer sua escolha.  "

 

Nesse momento, perdi toda a reverência e protestei contra qualquer teoria do gênero, pois, pelo menos para mim, Tom Sawyer era real.

 

Ah, mas ele é real, respondeu Mark Twain. Ele é a representação de todos os meninos que conheci ou que me vieram à memória, mas essa seria uma boa forma de terminar o livro.  Dando meia-volta, prosseguiu: porque, quando se pára para pensar nisso, não há religião, treinamento ou educação que possa combater a força das circunstâncias que movem o homem. Vamos supor que pegássemos os próximos 24 anos da vida de Tom Sawyer e alterássemos um pouco as circunstâncias que o controlavam. É lógico que, dependendo das alterações, ele se tomaria um anjo ou um criminoso. 

 

- Então é assim que o senhor pensa?

 

É. Não é a isso que chamam de destino?

 

 

- Certo. Mas não publique duas versões da vida dele, pois ele não é mais sua propriedade. Ele nos pertence.

 

Ele deu uma grande risada e começou a dissertar sobre os direitos do homem de fazer o que bem entende com suas próprias criações, o que, sendo um assunto de interesse puramente profissional, eu irei indulgentemente omitir.

 

Voltando à grande poltrona, ele, falando sobre a verdade e outros conceitos semelhantes na literatura, admitiu que uma autobiografia era o único trabalho no qual um homem, contra sua própria vontade e apesar do árduo esforço em sentido contrário, revelava-se plenamente para o mundo.

 

- Uma boa parte da sua vida no Mississippi é autobiográfica, não é?,  indaguei.

 

Tanto quanto é possível, quando um homem escreve uma ficção e uma autobiografia ao mesmo tempo. Mas na autêntica autobiografia, eu acho impossível que um homem diga a verdade sobre si mesmo ou evite impressionar o leitor com a verdadeira história.

 

Eu fiz uma experiência certa vez. Tenho um amigo, um homem que sempre diz a verdade a qualquer custo e que jamais sonharia em dizer uma mentira, e convencia a escrever sua autobiografia para que nós nos divertíssemos. E ele o fez. O resultado daria um volume in-octavo, mas, mesmo sendo um homem bom e honesto, ao escrever, ele revelou-se um formidável mentiroso em cada mínimo detalhe que eu conhecia de sua vida.  Foi algo que ele não conseguiu evitar.

 

Não faz parte da natureza humana escrever a verdade sobre si mesma. Mas, ao ler uma autobiografia, o leitor consegue determinar se o autor é um bom homem ou apenas uma fraude.  O leitor não consegue explicar suas razões... não mais do que um homem consegue explicar por que uma mulher o atrai mesmo quando ele não se recorda dos cabelos, dos olhos, dos dentes ou da fisionomia dela.  E a impressão que o leitor obtém é correta.

 

- O senhor pretende escrever uma autobiografia algum dia?

 

Se escrever, será da forma como outros já o fizeram, com o mais genuíno desejo de fazer de mim a melhor pessoa do mundo em qualquer pequeno fato que me tenha desacreditado. E pode ser que eu não consiga, assim como os outros não conseguiram, fazer meus leitores acreditarem em algo além da verdade. 

 

Esse assunto, naturalmente, levou-nos a uma discussão sobre a consciência. Então Mark Twain falou, e suas palavras foram fortes e dignas de serem lembradas:

 

A consciência é um estorvo. Ela é como uma criança. Se você enchê-la de mimos, brincar com ela e deixá-la ter tudo o que deseja, irá estragá-la, e ela vai se intrometer em todos os seus prazeres e pesares. Trate a sua consciência como se deve tratar uma criança. Quando ela se mostrar rebelde, bata nela, seja severo, discuta, evite que ela venha brincar com o senhor a qualquer momento. Assim o senhor terá uma boa consciência. Em outras palavras, uma consciência devidamente treinada. Uma consciência mimada acaba com todos os prazeres da vida. Eu acho que a minha me obedece. Pelo menos ela não me aborrece há algum tempo.  Talvez eu a tenha matado por excesso de severidade. É errado matar uma criança, mas, apesar de tudo o que disse, a consciência difere da criança em vários aspectos. Talvez o melhor seja matá-la. 

 

Foi  então que me contou um pouco de sua infância e criação, aquele tipo de coisas que se conta a um estranho, e revelou-me como foi bem influenciado pelo exemplo dos pais. Expressava-se sempre através dos olhos, duas luzes sob as espessas sobrancelhas. De vez em quando, atravessava a sala com os passos tão leves quanto os de uma moça e mostrava-rne um ou outro livro. Em seguida, voltava a caminhar de um lado para o outro da sala, fumando o cachimbo de sabugo. Eu daria tudo para ter coragem de pedir aquele cachimbo, que custava cinco centa­vos quando novo, de presente. Compreendi porque certas tribos selvagens desejam tanto possuir o figado dos bravos que morrem em combate. Aquele cachimbo talvez me desse a aguçada percepção da alma humana do seu dono. Mas ele nunca o deixava ao alcance das ninhas mãos.

 

Uma vez, no entanto, ele colocou a mão sobre o meu ombro. Aquele gesto foi como uma investidura da Estrela da Índia, seda pura, trombetas, jóias cravejadas de diamantes, tudo enfim.  Se, após esse episódio, por uma ironia do destino, eu cair na mais completa ruína, direi ao superintendente do asilo de pobres que Mark Twain um dia pousou a mão sobre meu ombro. Talvez ele me conceda até um quarto individual e um suprimento dobrado de tabaco barato.

 

Eu particularmente nunca leio romances, confessou, exceto quando sou forçado pela pressão popular, quando as pessoas me atormentam para saber o que penso do último livro que todos estão lendo.

 

- E o que o senhor achou do último romance que foi forçado a ler?

 

Robert?  Perguntou. Fiz um gesto afirmativo com a cabeça.

 

Eu li, é claro, em função do trabalho. Isso me fez pensar que desprezara os romances durante muito tempo e que talvez existissem livros de boa qualidade e estilo elegante em algum lugar nas prateleiras. Por isso dei início a um período de leitura de romances. Agora já deixei isso de lado. Não era divertido. Mas, quanto a Robert, o efeito sobre mim foi o mesmo que sobre um cantor de rua que ouve uma excelente música vinda do órgão de urna igreja. Não parei para perguntar se a música era autêntica ou necessária. Apenas escutei e gostei. Estou falando da graça e da beleza do estilo.

 

Sabe, prosseguiu, todo homem tem sua opinião pessoal sobre um livro. Mas essa é só a minha opinião pessoal. Se eu tivesse vivido no início dos tempos, talvez procurasse saber qual era a opinião popular a respeito do assassinato de Abel antes de condenar Caim. É claro que eu teria a minha opinião pessoal, mas não a expressaria até me sentir seguro. O senhor conhece rninha opinião pessoal sobre esse livro. Não sei qual seria a minha opinião pública sobre ele. O mundo não está preocupado com ela. 

 

Ele tornou a afundar na poltrona e passou a falar sobre outras coisas,

 

Eu passo nove meses do ano em Hartford. Já faz muito tempo que me convenci de que não dá para trabalhar muito durante esses nove meses. As pessoas não deixam. Querem falar comigo a toda hora, sobre todos os assuntos possíveis. Certa vez pensei em fazer uma lista das interrupções. Ela começava da seguinte maneira:

 

Um homem chegou querendo falar somente com o senhor Clemens. Trata­va-se de um vendedor de reproduções de fotogravuras para ilustrações. Eu quase nunca utilizo ilustrações em meus livros. Após esse homem, chegou um outro recusando-se a falar com qualquer um que não fosse o senhor Clemens. Ele veio para me pedir que escrevesse a Washington sobre um assunto qualquer. Eu o recebi.  Recebi ainda um terceiro e um quarto homens.  Mas, a essa altura, já era meio-dia. Eu já estava cansado de fazer a lista. Queria descansar.

 

Mas o quinto homem era o único que apresentava um cartão pessoal. Entregaram-me o cartão: 'Ben Koontz, Hannibal, Mo.' Eu fui criado em Hannibal. Ben era um velho colega de escola.  Por isso escancarei as portas da casa e apressei-me estendendo as mãos para saudar um homem grande e gordo, que não era o Ben que eu conhecera, nem se parecia com ele. 'Mas é você mesmo, Ben?' perguntei. 'Você mudou depois de todos esses anos. O homem gordo então respondeu: 'Eu não sou o Koontz, mas conheci-o no Missouri, e ele me disse para procurá-lo, deu-me o seu cartão e... Nesse mo­mento, ele começou a representar a cena para mim. “Se o senhor puder esperar um instante até que eu pegue as circulares. Não sou o Koontz, mas tenho uma completa linha de hastes de pára-raios como o senhor nunca vai ver igual.

 

- E o que aconteceu? indaguei ansioso.

 

Bati a porta. Ele não era o Ben Koontz, não o meu velho colega de escola, mas eu apertara suas duas mãos com carinho e fora desafiado por um vendedor de hastes de pára-raios na minha própria casa. Como dizia, eu trabalho muito pouco em Hartford.  Passo três meses do ano aqui e trabalho quatro ou cinco horas por dia em um escritório perto do jardim daquela casinha na colina. É óbvio que eu não faço objeções a duas ou três interrupções. Quando um homem está envolvido com o seu trabalho, essas pequeninas coisas não o afetam. Oito, dez ou vinte interrupções atrasam a redação.

 

Eu estava louco por fazer-lhe todo tipo de perguntas impertinentes, como qual de suas obras ele preferia, e assim por diante, mas, frente à admiração que me inspiravam seus olhos, não me atrevi a tal coisa. Ele continuou a falar, e eu a ouvi-lo, servil. O tema em discussão era a intelectualidade e eu ainda continuo a me perguntar se ele estava realmente falando sério.

 

Pessoalmente, eu nunca dei importância a livros de ficção. O que gosto de ler são fatos reais e estatísticas de qualquer tipo. Mesmo que sejam apenas fatos sobre o cultivo de rabanetes. Agora mesmo, por exemplo, antes de você chegar, ele apontou para uma enciclopédia que estava na prateleira, eu estava lendo um artigo sobre matemática. Matemática em sua forma mais pura. 

Meus conhecimentos de matemática só chegam até 12 x 12, mas gostei muito do artigo. Não entendi uma palavra sequer, mas os fatos, ou o que acreditamos serem fatos, são sempre interessantes. Aquele matemático acreditava no que estava escrevendo. E eu também. Reúna os fatos primeiro e... sua voz foi morrendo aos poucos até tomar-se um sussurro inaudível, então você poderá distorcê­los à vontade. 

 

Com esse conselho precioso, eu partia, enquanto aquele grande homem assegurava-me que, afinal, eu não o havia interrompido. Uma vez lá fora, contive-me para não voltar e fazer-lhe algumas perguntas, que me vieram à memória com facilidade, mas o tempo de Twain  pertencia a ele, embora seus livros me pertencessem. Eu devia relembrar aquele encontro durante os problemas enfrentados diariamente. Mas era triste pensar nas coisas sobre as quais ele não falará.

 

Em São Francisco, o pessoal do The Call contou-me diversas histórias a respeito do aprendizado de Mark Twain 25 anos antes. Disseram como era divertido ver que ele era um repórter incapaz de escrever reportagens de acordo com as necessidades do dia.  Ele preferia, conforme disseram, embrenhar-se no meio de uma pilha de papéis e meditar até o último minuto.  Por fim, produzia algo que não possuía qualquer tipo de relação com seu trabalho real - algo que fazia o editor blasfemar terrivelmente e os leitores do The Call pedirem mais.

 

Gostaria de ter ouvido a versão de Mark a respeito desse episódio, assim como as histórias do seu passado feliz e versátil. Ele foi auxiliar de tipografia (naqueles dias ele vagava do Missouri a Fiadélfia), piloto (aprendiz e profissional), soldado (por apenas três semanas), secretário particular de um vice-governador de Nevada (o que o aborreceu muito), mineiro, editor, correspondente especial nas Ilhas Sandwich e Deus sabe o que mais. Se um homem tão experiente pudesse de alguma maneira ser embriagado, seria ótimo enchê-lo de bebida e deixá-lo falar sobre o passado. Mas estes olhos jamais verão essa orgia digna dos deuses!

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