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Grandes entrevistas históricas

                             Pablo Picasso
Entrevista conduzida por Jerome Secker, publicada no jornal New Masses, de 13/03/1945 e republicada no livro ALTMAN, Fábio. A arte da entrevista. São Paulo: Scritta, 1995, de onde foi extraída.

* * *

     Pablo Ruiz Picasso (1881-1973), pintor espanhol nascido na Catalunha, ingressou na academia de artes de Barcelona aos 14 anos de idade. Em 1901 ele se mudou para Paris, onde alugaria um quarto no bairro de Montmartre, reduto de artistas como Toulouse-Lautrec e Degas. A trajetória de Picasso é a história da arte no século XX - das fases azul e rosa ao cubismo, ele revolucionou a pintura ocidental. Uma de suas telas mais conhecidas, citada com freqüência nesta entrevista, é Guernica, de 1937, que expressa o horror do bombardeio da cidade basca de Guernica durante a Guerra Civil Espanhola. Inimigo das atrocidades do regime de Francisco Franco, Picasso chegou a trabalhar como diretor do Museu do Prado no período mais duro da ditadura franquista, entre 1936 e 1939. Durante a Segunda Guerra Mundial, ele permaneceu em Paris. Depois da libertação da cidade, o pintor se filiou ao Partido Comunista Francês - esta simpatia de Picasso pelo PCF motivou o interesse do jornal New Masses em entrevistá-lo.
      Nos últimos dez anos meus amigos e eu discutimos, analisamos e recapitulamos Picasso ao ponto da exasperação. Digo exasperação porque simplesmente foi isso mesmo. A única conclusão a que conseguimos chegar foi a de que Picasso, em suas diversas fases, refletiu com bastante precisão as contradições intensas de seu tempo, mas só as refletiu, sem pintar qualquer coisa que pudesse incrementar nosso entendimento desse tempo. Vários artistas e críticos que ganharam a vida rotulando as pessoas identificaram-no com uma ampla variedade de escolas - surrealista, clássica, abstracionista, exibicionista e até mesmo contorcionista. Mas fora esse monte de bobagens, essas pessoas nunca realmente explicaram Picasso. Ele permaneceu um enigma.
      Então veio a bomba. No meio das últimas horas de agonia da Espanha legalista, Picasso pintou seu mural Guernica, e assim emergiu como um poderoso e penetrante pintor de protesto social. ,Mas foi só Guernica. Até o momento em que a França entrou na guerra, não se ouviram mais ecos, na pintura de Picasso, do furioso protesto que produziu Guernica. Veio o desastre militar da França e sua humilhante ocupação pelos alemães. Circularam histórias desagradáveis sobre Picasso; que estaria vivendo bem na Paris ocupada e que jogava bola com a Gestapo, que em troca permitia que ele pintasse sem ser molestado. Falavam que estaria vendendo falsificações aos nazistas - obras que assinara, mas que na verdade haviam sido pintadas pelos seus alunos; e também que estaria morto. De 1940 até a libertação de Paris, Picasso foi uma figura totalmente cercada de mistério e obscuridade.
      Então no mês de outubro, logo após a libertação, chegaram as notícias eletrizantes de que Picasso entrara no Partido Comunista.
      Nesse mesmo mês, a Paris liberada sediou uma exibição gigantesca de arte francesa contemporânea, com uma sala especialmente dedicada a Picasso - 74 pinturas e cinco esculturas, a maioria executada durante a ocupação. A exposição deixou-me atônito. Era o Picasso de Guernica, pintando poderosa e lindamente, pinturas de vida e de esperança.
      Fiquei tão excitado com a sua obra que fiz questão de ir visitá-lo. Através de um jovem artista francês que o conhecia, obtive seu endereço. Em seu ateliê disseram-me, depois de uma conversa sussurrada na sala ao lado, que Picasso não "estava em casa". Seu secretário explicou: "Picasso não pintou nada nos últimos dois meses, com tudo o que tem acontecido, e agora ele quer tranquilidade para trabalhar um pouco". Mas finalmente meu amigo artista conseguiu um encontro para mim, e cheguei ao seu ateliê num sábado de manhã, às 11h 30min. Fui introduzido no local, e pediram-me que aguardasse.
      Picasso ocupa os dois últimos andares de um edifício definitivamente despretensioso, de quatro andares, próximo ao rio Sena. Para subir ao seu estúdio entra-se num dos buracos da parede que passa por vãos de portas e sobre três lances de uma escadaria estreita entre paredes nuas e de degraus de madeira bem gastos. Esse foi o seu lar e o seu estúdio ao longo dos oito últimos anos.Você entra diretamente em um de seus estúdios, uma sala com vários cavaletes, quadros, livros - sem ordem nenhuma. Enquanto esperava, notei uma de suas pinturas recentes sobre um cavalete, e que representava um jarro de metal sobre uma mesa. Preso acima da pintura havia um pequeno croqui a lápis da composição, que havia sido copiado, até a última linha e o último detalhe, no quadro. Apesar de ser só um croqui rápido, ele o copiara com tanta fidelidade que quando as linhas se cruzavam no canto da mesa ele também as cruzava na pintura.
      Perguntei ao secretário se Picasso tivera problemas com os alemães. "Como todo mundo", disse ele, "tivemos tempos difíceis". Picasso fora proibido de expor sua obra. Uma vez a Gestapo apareceu e acusou Picasso de ser, na verdade, um homem chamado Leipzig. Picasso simplesmente insistiu: "Não, eu sou Picasso; isso é tudo". Os alemães não o incomodaram depois disso, mas ficaram de olho nele o tempo todo. Nesse meio tempo Picasso manteve um contato bem próximo com o movimento clandestino da Resistência.
      Depois de cerca de dez minutos, Picasso desceu do estúdio superior, e dirigiu-se a mim diretamente. Com uma olhada rápida, fitou-me bem nos olhos. Usava um terno leve cinza claro, uma camisa de algodão azul e gravata idem, e um lenço amarelo claro no bolso do paletó junto ao peito - as suas mãos eram pequenas, porém sólidas. Apresentei-me e ele estendeu a mão imediatamente. Tinha um sorriso quente e sincero, e falava sem restrições, o que logo me deixou à vontade.
      Expliquei que sempre tivera interesse em seu trabalho mas que ele sempre me confundira, e como subitamente eu sentira, na sua última exposição, que conseguira entender aquilo que ele estava tentando dizer. Queria conhecê-lo pessoalmente e perguntar-lhe se minha análise de seus quadros estava correta, e se estivesse, se poderia escrever sobre eles na América. Então descrevi minha interpretação de sua pintura The sailor (O marinheiro) que eu vira no Salão da Libertação. Disse a ele que cheguei a pensar que fosse um auto-retrato - a roupa do marinheiro, a rede, a borboleta vermelha mostrando Picasso como uma pessoa que procurava uma solução para aqueles tempos, tentando encontrar um mundo melhor, os trajes do marinheiro como indicação de uma participação ativa nesse esforço. Ele ouviu atentamente e finalmente disse: "Sim, sou eu, mas não quis conferir-lhe nenhum significado político".
      Perguntei-lhe porque pintara a si mesmo como um marinheiro. "Porque", respondeu, "eu sempre uso uma camiseta de marinheiro. Vê?" Abriu a camisa e puxou a camiseta que usava por baixo - era branca com listas azuis!
      "Mas e a borboleta vermelha?", perguntei. "Será que você não a pintou de vermelho deliberadamente, devido ao seu significado político?"
      "Não particularmente", respondeu. "Se há algum significado, então veio do meu subconsciente!"
       "Mas",insisti,"ela deve ter um significado para você, mesmo que você não o diga. O que está no seu subconsciente é o resultado do seu pensamento consciente. Não há escapatória da realidade."
       Ele olhou para mim por um segundo e disse: "Sim, é possível e normal". Picasso então perguntou se eu era um escritor. Contei-lhe a verdade - eu não era um escritor, nunca escrevera antes, e por vocação trabalhava com trastes velhos. E que eu era pintor também, mas só por passatempo, porque tinha que ganhar a vida. Picasso riu e disse: "Sim, eu compreendo". Então perguntei-lhe se me daria o consentimento de escrever um artigo a seu respeito.
       "Sim", disse ele, e acrescentou: "Para qual jornal?"
Disse-lhe que era para o New Masses. Ele sorriu e respondeu: "Sim, eu o conheço."
       Olhou para a porta aberta. Havia várias pessoas esperando por ele. "Vamos subir ao estúdio por um instante", disse ele. Subimos as escadas até o grande estúdio onde ele pintava seus quadros. A sala era ampla e limpa, e não tinha a aparência poeirenta e bagunçada da sala do andar inferior.
       Contei a Picasso que muitas pessoas estavam dizendo que agora, com sua nova filiação política, ele se tornara um líder na cultura e na política e que sua influência no progresso mundial poderá ser tremenda. Picasso inclinou a cabeça com ar sério e disse: "Sim, eu sei disso". Mencionei o fato de termos discutido isso várias vezes em Nova Iorque, especialmente quando foi feito o mural Guernica (atualmente emprestado ao Museu de Arte Moderna de Nova Iorque). Falei do significado do touro, do cavalo, as mãos com as linhas da vida etc. e as origens dos símbolos na mitologia espanhola. Picasso continuou balançando a cabeça enquanto eu falava. "Sim", disse ele, "o touro representa a brutalidade e o cavalo as pessoas. Ali eu usei o simbolismo, mas não nos outros”
      Expliquei minha interpretação de dois de seus quadros da exposição, um de um touro, uma lâmpada, uma palheta e um livro. O touro deve representar o fascismo, disse eu, a lâmpada, através de seu brilho poderoso, a palheta e o livro, todos representariam a cultura e a liberdade - coisas pelas quais estamos lutando - e a pintura mostraria a luta ferrenha entre ambos.
     "Não", disse Picasso, "o touro não é o fascismo, mas é a brutalidade e o obscurantismo" . Mencionei que agora estaríamos vislumbrando um simbolismo talvez transformado, mais simples e claramente compreensível, dentro da sua linguagem muito pessoal.
     "Minha obra não é simbólica", respondeu ele. "Só o mural Guernica é simbólico. Mas no caso do mural, isso é alegórico. É essa a razão pela qual usei o cavalo, o touro e assim por diante. O mural serviu como uma expressão deflnitiva e a solução de um problema, e é por isso que eu usei o simbolismo."
      "Algumas pessoas", continuou ele, "num certo período, chamaram meu trabalho de surrealista. Não sou um surrealista. Nunca estive fora da realidade. Sempre estive na essência da realidade (literalmente, o real da liberdade). Se alguém quisesse expressar a guerra, iria fazê-la de um modo mais elegante e literário para se sobressair, porque seria mais estético: mas para mim, se eu quisesse representar a guerra, eu usaria uma metralhadora! Nesses tempos de mudança é a hora de se usar uma maneira revolucionária de pintar e não continuar mais pintando como antes." Então ele me olhou diretamente nos olhos e perguntou:" Vous me croírez?"
     Disse-lhe que eu conseguira entender muitas de suas pinturas da exposição, mas algumas eu não conseguira decifrar de jeito nenhum. Virei-me em direção a um quadro pendurado na parede à minha esquerda e que retratava um nu e um músico, e que estivera no Salão de Outubro. Era uma tela grande, com as figuras distorcidas, medindo cerca de 1,5 por 2 metros. "Essa, por exemplo", eu disse. "Não consigo entendê-la."
     "É simplesmente um nu e um músico", respondeu ele. "Eu a pintei para mim mesmo. Quando você vê um nu pintado por outra pessoa, percebe que ela usa a maneira tradicional de expressar a forma, e as pessoas que representam um nu. Mas no meu caso, uso uma expressão revolucionária. Nesse quadro não há um significado abstrato. É simplesmente um nu e um músico."
     Perguntei-lhe: "Por que você pinta de um modo que dificulta a compreensão das pessoas?"
     "Eu pinto desse modo", respondeu, "porque é o resultado do meu pensamento.Trabalhei durante muitos anos para obter esse resultado e se der um passo para trás (ao falar ele efetivamente deu um passo paras trás) seria uma ofensa para as pessoas (em francês era isso mesmo, offense) porque esse é o resultado do meu pensamento. Não posso usar uma expressão comum só para sentir a satisfação de ser entendido. Não quero descer a um nível mais baixo."
     "Você é um pintor", continuou ele. "Você sabe que é impossível explicar porque faz isso ou aquilo. Eu me expresso através da pintura e não consigo explicar-me com palavras. Não consigo explicar porque fiz isso desse modo. Para mim, quando desenho uma pequena mesa (rabiscou uma pequena mesa para ilustrar o que dizia), vejo cada detalhe. Vejo o tamanho, a espessura, e traduzo tudo isso a minha maneira." Acenou em direção à grande pintura de uma cadeira no outro extremo da sala, (que também estivera no Salão da Liberação) e explicou: "Você está vendo como eu faço."
      "É engraçado", continuou ele,"as pessoas vêem nas pinturas coisas que você não colocou nelas - elas fazem um bordado sobre o assunto. Mas não importa, porque se viram isso, é até estimulante - e a essência do que elas viram é realmente a pintura.”
       Perguntei a Picasso quando poderia voltar a vê-lo, e ele disse que me receberia com prazer a qualquer momento que eu quisesse. Apertamos as mãos e fui embora.
       Foi difícil visitar Picasso novamente logo em seguida, mas algumas semanas depois, num sábado de manhã, eu liguei a ele pela segunda vez. Picasso recebeu-me em seu dormitório onde, quando entrei, eu pude ouvi-lo discutindo problemas políticos que deviam ser resolvidos com vários amigos, a Unidade dos Aliados. Ao me ver, ele caminhou em minha direção, apertou minha mão sorrindo e saudou-me: "Bon jour! Ça va bien?" Ele foi novamente tão simples e sincero que eu me senti como se o conhecesse há anos. Desculpou-se por me receber no quarto. "Tive que me organizar neste quarto pequeno", disse, "com meu cão, meus papéis, meus desenhos, minha cama, porque eu estava congelando lá embaixo." Como de hábito suas mãos acompanhavam expressivamente suas palavras, como as mãos de um maestro conduzindo uma orquestra. Para um quarto pequeno, sem dúvida ele estava bem entulhado. A cama desfeita, várias escrivaninhas, uma mesa de desenho inclinada e um grande cachorro de olhos gentis, todos se amontoavam em volta de uma pequena estufa de carvão, com um bule de água em cima. Espalhados sobre a cama e a mesa estavam sete ou oito grandes esboços coloridos que ele acabara de fazer - com vermelhos, azuis e amarelos misturados. Sobre a cama também havia cinco ou seis jornais, inclusive o L'Humanité. Sobre uma escrivaninha encostada à parede havia uma matriz de gravação, de zinco, com duas gravuras já impressas, de um limão e uma taça de vinho, feitas com as mesmas belas cores brilhantes. Sobre outra escrivaninha havia uma antiga fotogravura de Rubens - um homem e uma mulher num enleio amoroso - ricamente executada, de um modo sensível. Em outra parede havia uma pequena paisagem de Corot.
      Peguei a reportagem de nossa primeira entrevista e demos uma olhada nela juntos. O artigo estava em inglês, e eu tive que traduzi-lo para o francês. Tudo lhe agradou, mas ao traduzir o que ele dissera sobre a pintura do touro, da palheta e da lâmpada, devo ter derrapado no meu francês e ele entendeu outra coisa, pensando que eu o citava literalmente ao dizer que o touro representava o fascismo.
     "Não", protestou, "ele não representa o fascismo." Expliquei que de fato ele dissera que o touro não representava o fascismo, mas sim a obscuridade e a brutalidade. "Mas é essa a questão", eu respondi. "Você fez uma distinção entre os dois. Mas que diferença pode haver aí? Você sabe, e as pessoas no mundo sabem, que as duas são a mesma coisa, que onde existiu o fascismo reinou a obscuridão e a brutalidade, a morte e a destruição. Não há distinção."
      Picasso sacudiu a cabeça enquanto eu falava. "Sim", disse ele, "você está certo, mas não tentei mostrar isso conscientemente em minha pintura. Se você o interpreta dessa maneira então está certo, mas não foi minha idéia apresentá-lo dessa maneira."
     "Mas", insisti, "você efetivamente pensa e sente profundamente essas coisas que estão afetando o mundo. Você reconhece que aquilo que está em seu subconsciente é o resultado de seu contato com a vida, e os seus pensamentos e reações a ela. Não pode ter sido meramente acidental o fato de você ter usado precisamente esses objetos em particular e tê-los apresentado dessa maneira. O significado político dessas coisas está aí, você tendo ou não pensado nelas conscientemente."
     "Sim", respondeu ele, "o que você está dizendo é verdade mas eu não sei porque usei esses objetos em particular. O touro é um touro, a palheta é uma palheta e a lâmpada é uma lâmpada. É tudo. Mas definitivamente ali, não há nenhuma conexão política para mim. Obscuridade e brutalidade, sim, mas não fascismo."
      Virou-se para a gravura colorida do copo e do limão. "Ali", disse ele, "estão um copo e um limão, com suas formas e cores - vermelhos, azuis, amarelos. Você consegue ver algum significado político nisso?"
      "Simplesmente como objetos", eu disse, "não".
      "Bem", continuou ele, "acontece a mesma coisa com o touro, a palheta e a lâmpada". Ele olhou seriamente para mim e continuou: "Se eu fosse um químico, um comunista ou um fascista - e obtivesse um líquido vermelho em uma mistura qualquer, isso não significaria que eu estaria fazendo propaganda comunista, não é? Se eu pintar um martelo e uma foice as pessoas pensarão que é uma representação do comunismo, mas para mim é só um martelo e uma foice. Eu só quero reproduzir os objetos pelo que são e não pelo que significam. Se você quiser atribuir um significado a certas coisas em minhas pinturas, pode até estar certo, mas não foi minha idéia dar-lhes esse significado. As idéias e conclusões a que você chegou eu também cheguei, mas instintiva e inconscientemente. Faço uma pintura pela pintura. Eu pinto objetos pelo que eles são. Está no meu subconsciente. Quando as pessoas olham para elas talvez captem um significado diferente daquele captado por outros. Não penso em tentar obter qualquer significado especial. Não há nenhum sentido deliberado de propaganda em minha pintura".
     "Exceto no Guernica", sugeri.
     "Sim", respondeu ele, "exceto no Guerrnica. Nele há um apelo deliberado às pessoas, um sentido deliberado de propaganda."
      Peguei meus cigarros e acendi um para ele também, que começou a fumá-lo em sua piteira, sempre presente. Deu algumas baforadas meditativamente como se esperasse que eu dissesse alguma coisa, então falou tranqüila e simplesmente:
     "Eu sou um comunista e minha pintura é uma pintura comunista". Parou por um instante, então continuou. "Mas se eu fosse um sapateiro, monarquista, comunista, ou qualquer outra coisa, eu não consertaria os sapatos necessariamente martelando-os de um modo especial para mostrar minha política."
     "E mesmo assim", eu disse, "o que um homem é ou pensa pode ser deduzido a partir de suas pinturas. Mas para um pintor socialmente consciente, por exemplo, não é necessário mostrar uma cena de horror ou destruição nazista, com uma pessoa vertendo sangue pela boca, ou um soldado atirando com um rifle." Apontei para a pequena estufa de carvão com o bule de água aberto sobre ela e continuei: "Você pode pintar isso, você pode pintar uma mãe e um filho, ou uma criança, como o fez, ou uma família jantando ao redor de uma mesa - você pode pintar o copo e o limão. Através de suas cores e formas elas tornam-se coisas belas, o tipo de beleza que queremos que faça parte de nossas vidas, o tipo de vida pelo qual estamos lutando nessa guerra. Como seres sociais nós pensamos politicamente, queiramos ou não".
      Picasso pousou sua mão em meu ombro e ficou meneando a cabeça vigorosamente enquanto eu falava, dizendo: "Sim, sim, está certo, isso é verdade".
      Falei-lhe do alvoroço causado no mundo artístico pela sua adesão ao Partido Comunista - como a crítica, ainda rotulando-o de "surrealista", esperava que ele continuasse a pintar como nos anos anteriores - e alegava serem suas as palavras, que diziam não haver conexão entre arte e política.
     Picasso riu e disse: "Mas nós sabemos que há uma conexão, não é?", e acrescentou sorrindo,"mas eu mesmo não tento fazê-la, isso é tudo".
     Perguntei a Picasso se meu artigo (e nele eu pretendia incluir o que ele acabara de me dizer) teria a sua aprovação. "Sim", disse ele, "vá em frente com ele".
     Nesse momento alguns de seus amigos envolveram-se na conversa e começamos a discutir algumas tendências da pintura americana e francesa. Picasso parecia não estar muito familiarizado com nossos principais pintores americanos. Mencionei alguns, entre os quais Thomas Benton, mas ele não os conhecia, nem o seu trabalho.
     "Isso mostra a distância entre nossos dois países", disse um dos amigos de Picasso.
     "Nos Estados Unidos", eu disse, "não temos tantos artistas como na França, mas no conjunto nossos artistas são mais vigorosos, mais vitais, mais preocupados com as pessoas do que os pintores franceses. A França tem tido os mesmos grandes nomes na arte nos quarenta ou mais anos passados. Observei na exposição do Salão de Outono que os artistas mais jovens são muito introspectivos, preocupados principalmente com a técnica e dificilmente com a realidade viva. Na arte francesa ainda se utilizam as mesmas técnicas e pintam-se as mesmas naturezas mortas;'
     "Sim", disse Picasso, "mas os americanos estão na fase do consenso geral. Na França isso é passado para nós, estamos agora na fase da individualidade."
      Naquele momento alguém decidiu que era hora de almoçar. Agradeci a Picasso e ele me disse novamente para aparecer quando quisesse, e com um caloroso aperto de mãos, nós dissemos au revoir.
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