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         463º Aniversário da Cidade de São Paulo

Relato publicado no Jornal da Besta Fubana (www.luizberto.com) na coluna Cachorra da Molesta sobre a visita à Cidade de São Paulo na semana de seu  463º aniversário, de um antigo morador residente em Nazaré da Mata (PE)

 

Revisitando

SÃO PAULO

50 anos após

nos seus 463 anos

Cícero da Mata

 

“Alguma coisa acontece em meu coração

Que só quando cruza a Ipiranga e a avenida São João”

 

 

Desci a praça Antônio Prado contente com o tratamento dado ao entorno. O mirante continua lá, ainda visitável, no topo do prédio do antigo Banespa. Os velhos prédios ao lado também continuam intactos. No lugar de um amontoado de caixas de engraxate, botaram uma engraxataria num quiosque moderno em estilo antigo. Os paulistanos, chegados que são numa desculpa qualquer para um descanso, encontram ali um bom pretexto para uma parada e lustrar o sapato.

 

Na medida em que vou descendo fico admirando com o “jardim da ladeira São João” fincado no trecho que vai até a rua Libero Badaró. Daquele alto dá para ver que a alameda se estende até o largo do Paissandu. Tudo alargado, bom de passeio, sem carros, sem o “buraco do Adhemar”. Mas, peraí: esse restaurante da esquina, o “Guanabara”, não era na rua São Bento? O garçon me explica: “Mudou pra cá com a construção da estação do Metrô na década de 1970”.

 

No Rio de Janeiro também tiraram o “Lamas” do Largo do Machado e botaram na Marquês de Abrantes, na mesma época. Realmente estes metrôs facilitaram a mobilidade, mas precisavam deslocar a tradição gastronômica? Por que a modernidade não incorporou a tradição? Aqui os metrôs são responsáveis pela perda da memória urbana, referente aos restaurantes. Não precisava ser assim, pois comer e passear não são incompatíveis. E estes não são casos isolados, o saudoso “Restaurante do Julio”, na rua Mauá, também foi escorraçado pela estação Luz, do Metrô. A estação Sé também desalojou o Restaurante Gouveia, onde se comia o melhor bife à parmegiana de São Paulo. Deve haver mais restaurantes desalojados pelo metrôs no centro de outras cidades.     

 

Ao cruzar o Anhangabaú deparo admirado com o parque ali instalado. Uma beleza! A praça do Correio ficou ligada à praça Ramos de Azevedo por uma esplanada livre de carros. Em suas extremidades, botaram duas estações do Metrô: São Bento e Anhagabaú. Aqui eles acertaram, pois o lugar hoje é palco de manifestações públicas e precisa de acesso e evasão fáceis. E o Cine Cairo, onde foi parar? Mantiveram apenas a fachada para dar alguma graça ao prédio que botaram em seu lugar: um enorme conjunto arquitetônico, denominado “Praça das Artes”, que dá acesso à av. São João e rua Conselheiro Crispiniano.    

 

Subo um pouco mais, esperançoso para rever o largo do Paissandu, recanto boêmio da Cinelândia paulista. À medida que vou  chegando, o contentamento vai se esvaindo dando lugar à decepção. Não há mais boêmia alguma por ali. A degradação se expõe em todos os cantos do largo: um bando de prostitutas ocupa a pracinha; barracas e camelôs ocupam as calçadas; rockeiros e hippies ocuparam o primeiro shopping center do Brasil, denominado “Grandes Galerias”. Agora é “Galeria do Rock”.

 

       O Cine Art-Palácio foi transformado em salas de cinema de sexo explícito. Assim, o largo do Paissandu transformou-se numa  zona comercial degradada, que nem de longe lembra a zona boêmia da Cinelândia ali existente no final da década de 1950. Só restou – incrustado ali, resistindo não se sabe por quanto tempo – o restaurante “Ponto Chic”, com seu velho sanduiche “Bauru”. Prossigo pela avenida com a calçada alargada e transformada numa extensão do largo. A degradação segue o alargamento. Ao chegar na Ipiranga, vagueio de um lado para o outro e me espanto com uma dúzia de grandes prédios lacrados e outros transformados em garagens.  Parece uma zona em ruínas. Um trânsito de carros e gente toma todo o espaço, fazendo daquilo apenas um lugar de passagem, e rápido, pois pode ser perigoso. Restou apenas o Bar Brahma, que sabiamente avançou na calçada, mas perdeu muito de seu encanto. Nesse instante meu coração já combalido não aguenta mais e evoca a canção de Caetano Veloso.

 

       Exausto, não tanto pela caminhada, preciso de um descanso para a mente. Basta seguir um pouco mais e sentarei naqueles bancos da praça Julio Mesquita, em baixo de uma árvore ao lado da fonte das Lagostas. Mas o local está muito mudado. Botaram a fonte sem água dentro de uma redoma de vidro, onde não dá para ver os peixinhos que lá nadavam. Dizem que aquilo ficou abandonado por anos e agora estão revitalizando. Mas não estão conseguindo: os vidros já foram quebrados algumas vezes, deram uma melhorada no piso e o entorno é mais conhecido como o centro da “zona” propriamente dita. Por sorte encontrei o “Moraes” ainda lá, também, resistindo. Comi seu famoso filé com alho e descansei um pouco ali mesmo, dentro do restaurante. Ficar na praça seria uma temeridade.

 

       Prosseguindo mais um pouco, cruzo a Duque de Caxias e tenho a terceira decepção: encontro um monstrengo invadindo e tomando  a avenida de lado a lado, o tal do Minhocão. A enorme serpente de concreto armado cobriu o passeio público e abriu um albergue de mendigos e vagabundos em seu lugar. Fiquei com medo de entrar naquele “cortiço” lúgubre e sujo. Como chegar na bela praça Marechal Deodoro? Coragem! Pressinto, pelo andar da carruagem, uma quarta decepção. Onde já se viu cobrir uma praça como aquela com uma avenida elevada de mão dupla e trânsito intenso?

 

       Fico sabendo que a serpente não acabou apenas com parte da avenida São João. Engoliu também a rua Amaral Gurgel e boa parte do tradicional bairro de Santa Cecília. Um estrago e tanto ao centro da cidade. Depois de tanta decepção, resta ainda uma esperança de salvação daquela parte do centro. Informaram-me que aquela aberração da arquitetura urbana vem sendo denunciada há tempos e que sua demolição já se constituiu em projeto apresentado pela Prefeitura. No entanto, agentes do mercado imobiliário estimam que, se isso acontecer, não será antes de 2025. Gostaria muito de estar vivo até lá. Não poderia ser antes?.

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Cicero da Mata é da década de 1930, criado no agreste pernambucano até 1950, quando passou a viver em São Paulo. Retornou à terra natal em 1967. O relato acima é fruto de uma visita à São Paulo em janeiro de 2017, aos 87 anos.    

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