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Parabéns São Paulo: 462 anos

 

Revisitando São Paulo 56 anos depois

Memória in/em glória da avenida São João

e o fim do minhocão

Cícero da Mata

“Alguma coisa acontece em meu coração

Que só quando cruza a Ipiranga com a avenida São João”

(Caetano Veloso. “Sampa”)

 

    Desci a praça Antônio Prado contente com o tratamento dado ao entorno. No lugar de um amontoado de caixas de engraxate, botaram uma engraxataria num quiosque moderno em estilo antigo. Os paulistanos, chegados que são numa desculpa qualquer para um descanso, encontram ali um ótimo pretexto para uma parada e lustrar o sapato. Ao cruzar o Anhangabaú deparo admirado com o parque ali instalado. Uma beleza! A praça do Correio ficou ligada à praça Ramos de Azevedo por uma esplanada livre de carros.

     Subo um pouco mais, esperançoso para rever o largo do Paissandu, recanto boêmio da Cinelândia paulista. À medida que vou  chegando, o contentamento vai se esvaindo dando lugar à decepção. Não há mais boêmia alguma por ali. A degradação se expõe em todos os cantos do largo: um bando de prostitutas ocupa a pracinha; barracas e camelôs ocupam as ruas; rockeiros e hippies pés-de-chinelo tomaram a avenida. O Cine Art-Palácio foi transformado em salas de cinema de sexo explícito. Tudo isso envolto por uma zona comercial de baixo nível. Só restou – incrustado ali, resistindo não se sabe por quanto tempo – o Ponto Chic, com seu Bauru. Prossigo pela avenida com a calçada alargada e transformada numa extensão do largo. A degradação segue o alargamento.

     Ao chegar na Ipiranga, vagueio de um lado para o outro e me espanto com uma dúzia de grandes prédios lacrados e outros transformados em garagens.  Parece uma zona em ruínas. Um trânsito de carros e gente toma todo o espaço, fazendo daquilo apenas um lugar de passagem, e rápido, pois pode ser perigoso. Restou apenas o Bar Brahma, que sabiamente avançou na calçada, mas perdeu muito de seu encanto. Nesse instante meu coração já combalido não aguenta mais e evoca a canção de Caetano Veloso.

     Exausto, não tanto pela caminhada, preciso de um descanso para a mente. Basta seguir um pouco mais e sentarei naqueles bancos da praça Julio Mesquita, em baixo de uma árvore ao lado da fonte das Lagostas. Mas onde estão as lagostas de metal subindo nas beiradas da fonte? Não há nem sinal delas. Levaram há muito tempo e a Prefeitura desistiu de repô-las. Bancos também não existem, apenas alguns quebrados. O lugar hoje é mais conhecido como o centro da “zona”. Por sorte encontrei o Moraes ainda lá, também, resistindo. Comi seu filé com alho e descansei um pouco ali mesmo, dentro do restaurante. Ficar na praça seria uma temeridade.

     Prosseguindo mais um pouco, cruzo a Duque de Caxias e tenho a terceira decepção: Encontro um monstrengo invadindo e tomando a avenida de lado a lado, o tal do Minhocão. A enorme serpente de concreto cobriu o passeio público e abriu um albergue de mendigos em seu lugar. Fiquei com medo de entrar naquele cortiço lúgubre e sujo. Como chegar na praça Marechal Deodoro? Coragem! Pressinto uma quarta decepção. Onde já se viu cobrir uma praça como aquela com uma avenida elevada de mão dupla e trânsito intenso? Quem foi o arquiteto que fêz isso?

     A serpente não acabou apenas com parte da avenida São João. Engoliu também a rua Amaral Gurgel e estragou boa parte do tradicional bairro de Santa Cecília. Um estrago e tanto àquela parte do centro da cidade. Depois de tanta decepção, resta ainda uma esperança. Informaram-me que aquela aberração da arquitetura urbana vem sendo denunciada há tempos e que sua demolição já se constituiu em projeto apresentado pela Prefeitura. No entanto, agentes do mercado imobiliário estimam que, se isso acontecer, não será antes de 2025. Gostaria muito de estar vivo até lá. Não poderia ser antes?

     Na busca de mais informações, fico sabendo que em 2014 foi aprovado um novo Plano Diretor que prevê a demolição ou a transformação daquilo num parque ou jardim suspenso. Estão querendo copiar um projeto existente em Nova Iorque (High Line). Uma via elevada ferroviária foi desativada, tendo uma parte demolida e outra transformada num grande parque linear elevado. Infelizmente essa mania de imitar os americanos ainda persiste. Acho muito esquisito um estreito parque elevado cercado por prédios antigos, e  ainda mais estranho esse gosto pela densidade urbana carente da luz do dia.

     Diante do fato surgiram movimentos (mais ou menos) públicos contra e a favor da permanência do minhocão: “Movimento Desmonte Minhocão”, “Associação Parque Minhocão” e “SP sem Minhocão”. Felizmente o bom senso anda prevalecendo e talvez tenhamos a avenida São João de volta, revitalizada. De preferência restaurada com uma linha de bonde moderno/antigo ligando o Vale do Anhagabaú a praça Marechal Deodoro. Por que, em vez de copiar os americanos, os paulistas não copiam algumas cidades alemãs e holandesas com seus coloridos bondes circulando pelo centro da cidade? Se é para copiar os EUA, porque não copiam São Francisco, na Califórnia, cujos velhos bondes é uma das atrações da cidade?

      Esta é a minha singela contribuição que deixo à cidade que tão bem me acolheu há mais de 50 anos. A partir de agora passarei a visitar a cidade anualmente no seu aniversário, até o ano da demolição do Minhocão. Mas, convenhamos, 2025 para mim está muito longe.

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Cicero da Mata é da década de 1930, criado no agreste pernambucano até 1945, quando passou a viver em São Paulo. Retornou à terra natal em 1960. O relato acima é fruto de uma visita à São Paulo em janeiro de 2016, aos 86 anos.  

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