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Origens

Itinerário de

Por que escrever?

 

J.D. Brito

Em meados do século passado, a pergunta “Por que escrevo?” passou a ser estudada em diversos cantos do mundo, e cá entre nós de modo inusitado: o professor Cyro dos Anjos é abruptamente interpelado por um aluno impertinente: ”Por que escreve?” A pergunta deixou-o perplexo, ainda mais com a insistência do rapaz: “Dê-nos uma aula sobre o tema”. A questão levou-o a empreender um estudo bem circunstanciado sobre a motivação literária. “Que impulso levaria o homem a se desviar do quotidiano, para se entregar à contemplação de mundos sonhados?” Desse questionamento surgiu A criação literária, que mereceu as luzes de uma publicação em separata da Revista Filosófica, de Coimbra, ano IV, nº 12, 1954.

     Posteriormente o estudo foi publicado em livro, pelo MEC-Ministério de Educação e Cultura (1956), pela Editora da Universidade Federal da Bahia, em 1959, e pela Ediouro, em 1967. O autor não imaginava que o tema “vinha alimentando imemorial controvérsia entre estetas e artistas de todos os tempos”, obrigando-o a fazer um exaustivo levantamento dos estudos filosóficos anteriores que fundamentam a formulação da pergunta. Analisou e apresentou as idéias de pensadores como Felicien Charllaye, Huizinga, Delacroix, Ernst Meumann, Bergson, Benedetto Croce, André Maurois e Sartre entre outros.

     Na ânsia de dar um tratamento científico à questão, Cyro dos Anjos esclarece, logo de início, que “método a seguir no estudo do problema, não poderá ser puramente psicológico, mas há de basear-se em depoimentos e reflexões dos artistas sobre a sua própria atividade”. Tal esclarecimento me ficou gravado na mente. Na época (1980) eu contava com mais de duas mil entrevistas de escritores, podendo extrair dali os depoimentos sobre o fazer literário. Esta foi a gênese da obra “Mistérios da criação literária”, que iniciei em 1999.   

     A obra de Sartre utilizada por Cyro dos Anjos foi o ensaio O que é literatura? (1947), o mergulho mais fundo na questão refletida por um filósofo e escritor reconhecido nas duas áreas. O denso ensaio conta com três capítulos: O que é escrever? Por que escrever? e Para quem se escreve? Seguido de um quarto analisando a situação do escritor em 1947. Até hoje é considerado um estudo fundamental sobre o assunto.

     Vinte anos se passaram e o crítico literário português João Gaspar Simões retoma o assunto sob outro ponto de vista e publicou um livro de “ensaios de literatura e estética literária” intitulado Novos temas velhos temas (1967). Entre os velhos temas, incluiu o ensaio “Para que escrevem, por que escrevem, para quem escrevem os escritores”, onde faz uma crítica ao estudo realizado por Sartre. Em sua opinião, Sartre formulou indevidamente o problema que se propôs resolver. “O que havia a perguntar não era “Que é literatura?”, mas “Que é que faz com que uma obra literária seja precisamente uma obra literária?”.

     Anos depois, a questão é, de novo, enfocada por um crítico brasileiro, talvez não por acaso, amigo de Cyro dos Anjos. Fábio Lucas, em seu livro Razão e emoção literária (1982) dedica um capítulo à questão “Por que escrever?” incluído aportes do ponto de vista filosófico (Sartre) e literário (Alain Robbe-Grillet e Augusto Abelaira), demonstrando a amplitude do estudo. Esmiuçando autores como Jorge Luis Borges, Graciliano Ramos e, particularmente, Clarice Lispector, o autor considera que a obra literária de valor, “além de uma pergunta, encerra um convite à reflexão”, e conclui: “o conhecimento aprazível de um trecho literário nos faz imaginar o mundo inteiro, evoca-nos o destino do homem, acorda em nós o gosto da associação ideativa, caminho pelo qual tentamos recuperar a realidade”. 

     Quase vinte anos depois, e devido à elaboração desse estudo, Fábio Lucas é convidado à prefaciar o livro Por que escrevo? (1999), organizado por mim. Trata-se de uma coletânea de depoimentos de mais de 100 escritores em resposta à pergunta, seguido de uma pesquisa bibliográfica sobre o assunto. Tais respostas não foram obtidas a partir da pergunta feita diretamente aos escritores, e sim extraídas de milhares de entrevistas, onde os escritores são costumeiramente questionados sobre o ofício de escrever. O que motivou a edição deste livro foi o surgimento, em 1985, de uma edição feita pelos editores do jornal françês “Libération” François Fogel e Daniel Rondeau: Pourquoi écrivez-vous?: 400 écrivains répondent. A enquete incluiu 13 autores brasileiros, entre os quais Carlos Drummond de Andrade, que deu uma resposta evasiva: “Escrevo porque sou escritor, por que amo escrever”. Foi esta (não) resposta que me levou a publicar o livro, uma vez que dispunha de uma resposta mais plausível.

     Na introdução da enquete francesa, viu-se que a questão é mais antiga. Em 1919, André Breton, na direção da revista “Litterature”, decidiu concretizar um antigo desejo: investigar a motivação de seus colegas surrealistas com a pergunta: “por que você escreve?”. Defensor de uma arte do inconsciente, sem direito a grandes depurações, achava que “o escritor será capaz de responder à queima-roupa a uma pergunta bem simples”. Obteve 83 respostas e publicou-as nos números 9,10 e 11 da revista.

     A quantidade de respostas, incluindo aquelas extraídas das entrevistas com escritores, se aproxima de 700 e tudo indica que a pergunta não foi saciada. Para Fábio Lucas a questão continua aberta, e ele mesmo pergunta e responde: “Não é estimulante continuar? A busca é a literatura e a busca não tem fim”.  

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José Domingos de Brito

Organizador da obra “Mistérios da criação literária” em 5 volumes, publicada em 2007 com o patrocínio da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo e divulgada no site www.tirodeletra.com.br – literacria@gmail.com 

Texto distribuído durante o Congresso Brasileiro dos Escritores, Ribeirão Preto (SP), em 12-15 de novembro de 2011

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