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Crônica

       

  Memória in/em glória da

      av. São João  

                                                                         

Cícero da Mata

 

Alguma coisa acontece em meu coração, quando cruzo a Ipiranga com a Av. São João.

      Desci a praça Antônio Prado contente com o tratamento dado ao entorno. No lugar de um amontoado de caixas de engraxate, botaram uma  engraxataria num  quiosque moderno em estilo antigo. Os paulistanos, chegados que são numa desculpa qualquer para um descanso, encontram ali um ótimo pretexto para uma parada e lustrar o sapato. Ao cruzar o Anhangabaú, deparo admirado com o parque ali instalado. Uma beleza! A praça do Correio ficou ligada a praça Ramos de Azevedo por uma esplanada e livre de carros. Subo um pouco mais, esperançoso para rever o largo do Paissandu,  recanto  boêmio da cinelândia paulista.  

      Na medida em que vou chegando, o contentamento vai se esvaindo dando lugar à decepção. Não há mais boemia alguma por ali. A degradação se expõe em todos os cantos do largo: um bando de prostitutas ocupa a pracinha; barracas e camelôs ocupam as ruas; rockeiros e hippies pé-de-chinelo tomaram a avenida. O cine Art-Palácio foi transformado em salas de cinema de sexo explícito. Tudo isso envolto por uma zona comercial de baixo nível.  Só restou - incrustado ali, resistindo não se sabe por quanto tempo – o Ponto Chic, com seu velho Bauru.

     Prossigo pela avenida com a calçada alargada e transformada numa extensão do largo. A degradação segue o  alargamento.  Ao chegar na Ipiranga, vagueio de um lado para o outro e me espanto com uma dúzia de grandes prédios lacrados e outros feito garagens. Parece uma zona em ruínas. Um trânsito de carros e gente toma todo o espaço, fazendo daquilo apenas um lugar de passagem, e rápido, pois pode ser perigoso. Restou apenas o Bar Brahma, que sabiamente avançou na calçada, mas perdeu muito de seu antigo encanto.  Nesse instante meu coração já combalido não aguenta mais e evoca a canção de Caetano Veloso.

      Exausto, não tanto pela caminhada,  preciso de um descanso para a mente. Basta seguir  um pouco mais e sentarei naqueles bancos da praça Júlio Mesquita, ao lado da fonte d’água, embaixo de uma árvore. Foi a segunda decepção: a fonte não funciona, os bancos sujos ou quebrados, e as árvores escassas, a “zona” achou seu centro. Por sorte encontrei o Moraes ainda lá, também resistindo. Comi seu filé com alho, e descanso um pouco ali mesmo dentro do restaurante. Ficar na praça seria uma temeridade.

      Prosseguindo mais um pouco, cruzo com a Av. Duque de Caxias e tenho a terceira decepção. Encontro um monstrengo  invadindo e tomando toda a avenida de lado a lado, o tal do “minhocão”. A enorme serpente de concreto cobriu o passeio público e abriu um albergue de mendigos e vagabundos em seu lugar. Fiquei com medo de entrar naquele “cortiço”  lúgubre e sujo. Como chegar na praça Marechal Deodoro? Coragem! Pressinto, “pelo andar da carruagem” uma quarta decepção. Onde já se viu cobrir uma praça como aquela com uma avenida elevada de mão dupla e trânsito intenso?  

      Fico sabendo que a serpente não acabou apenas com parte da av. São João. Engoliu também a rua Amaral Gurgel, e boa  parte do tradicional bairro de Santa Cecília. Um estrago e tanto ao centro da cidade. Depois de tanta decepção, resta ainda uma esperança de salvação daquela parte do centro. Me informaram que aquela aberração da arquitetura urbana vem sendo denunciada há tempos, e sua demolição já se constituiu em projeto apresentado pela prefeitura. No entanto agentes do mercado imobiliário estimam que se isso ocorrer, não será antes de 2025. Gostaria muito de estar vivo até lá! Não poderia ser antes?

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Cícero da Mata é da década de 1930, criado no agreste pernambucano até 1945, quando passa a viver em São Paulo até 1959, e retorna à terra natal. O relato acima é fruto de uma visita à São Paulo, em janeiro de 2013, aos 83 anos.

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