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O fim de uma

POLÊMICA HISTÓRICA

O Brasil estaria melhor sob o domínio holandês?    

 

RECIFE-MANHATTAN

 

 Judeus lisboetas-amsterdãos-recifenses-nova-iorquinos foram proeminentes na configuração do mundo atual: ajudaram a criar os EUA, povoaram Manhattan e criaram a Bolsa de Nova Iorque

J.D. Brito

A História não lida com suposições; lida apenas com fatos, e o fato é que o Brasil foi colonizado pelos portugueses. No entanto, por que se insiste nessa polêmica de mesa de bar e até em salas acadêmicas? Certamente é porque existiu de fato um Brasil holandês, mesmo que por um curto período de 24 anos (1630-54). Mas qual a garantia que o Brasil estaria melhor se a colonização holandesa tivesse prevalecido em Pernambuco?

A documentação histórica é vasta sobre os benefícios trazidos por Maurício de Nassau. Não foram apenas os artistas e cientistas vindos para cá, que primeiro pintaram e estudaram o País. Foram também o planejamento urbano do Recife; a construção da maior ponte das Américas, além de diques e canais e jardins (botânico e zoológico); instalou o Observatório Astronômico; organizou serviços públicos essenciais como o Corpo de Bombeiros e coleta de lixo; construiu palácios que estão aí como patrimônio da cidade. Não se constrói palácio onde não se quer viver. O conde Mauricio de Nassau, nobre e empresário, não veio aqui a passeio; tampouco veio apenas negociar como gerente da Companhia das Índias Ocidentais. Ele veio criar uma colônia holandesa, fundar um país, e assim tentou fazer - e fez muito bem - do Recife uma metrópole mundial, tal como Amsterdam, Londres ou Paris na época.

 

Para tanto, veio junto com ele boa parte da elite judaica-portuguesa (que vivia em Amsterdam) fugidos de Lisboa devido a Inquisição. Eram os prósperos e sábios judeus que mantinham a Escola de Sagres. Eram hábeis navegadores numa época de descobrimentos continentais. Acharam que aqui poderiam se estabelecer e viver em paz com sua religião sob a proteção de um governo tolerante. Era uma oportunidade para voltar às suas origens ibéricas. Afinal, a Companhia das Índias Ocidentais também era deles. Bem poderiam fazer uso da empreitada como uma nova fuga em busca da "Terra Prometida". Amsterdam não é ruim, mas Recife poderia ser melhor; situa-se num ponto estratégico do Novo Mundo que se apresenta cheio de oportunidades e descobertas. Não mediram esforços e capital empregados no empreendimento. Tanto é que criaram logo seu templo, a Sinagoga Kahal Zur Israel (Congregação Rochedo de Israel) a primeira sinagoga das Américas, ponto turístico e religioso do Recife.

 

Quem e quantos eram estes judeus? Dizem que naquela época havia mais judeus no Recife do que em Amsterdam. Um censo holandês estima que havia 600 judeus no Recife. Isto é quase metade da população civil branca do Recife na época. Quando os holandeses foram expulsos em 1654, a comunidade judaica teve o mesmo destino. É certo que muitos fugiram para o sertão e outros ficaram por ali mesmo clandestinos, disfarçados de cristãos. Essa população proliferou de tal modo, que mais tarde contribuiu decisivamente para a eclosão da Guerra dos Mascates, em 1710,  com os olindenses. Com isto conseguiram a emancipação do Recife como capital da província.

 

A expulsão dessa elite da comunidade judaica teve um tratamento diferenciado. A coroa portuguesa deu 90 dias para se retirarem do território brasileiro. As 150 famílias, que viviam em torno da sinagoga, fretaram 17 navios e embarcaram de volta à Holanda. Um deles, a fragata “Valk”, se desgarrou da frota durante uma tempestade no Caribe e foi assaltada por piratas. Mas logo foram resgatados por um navio francês e levados para um entreposto da Companhia das índias Ocidentais, em Nova Amsterdam (Nova Iorque). Mais especificamente, numa ilha na foz do Rio Hudson, chamada mais tarde de Manhattan, uma região parecida com a ilha do Recife.

 

Essa viagem durou seis meses e já foi contada num romance baseado em fatos verídicos: A saga do Valk: questão de escolha (Curitiba: Nogueira Editorial, 2009), publicado por Victor Pinie, relata em detalhe a saga destes judeus na atribulada viagem do Recife à ilha de Manhattan.  

 

Em 7 de novembro de 1654 chegaram 23 judeus num grupo de seis famílias, encabeçadas por quatro homens: Abrão Israel Dias, Moisés Lombroso, David Israel Faro e Asher Levy. Os três primeiros haviam assinado o livro de atas, inaugurando a Sinagoga do Recife, em 1648. Entre os descendentes destes judeus pioneiros encontramos a família Mendes Seixas, cujo patriarca Isaac Mendes Seixas, nascido em Lisboa (1708-1780), foi a base genealógica de uma elite judaica americana.

 

Isaac teve sete filhos, dentre os quais Gershom Mendes Seixas (1745-1816) é considerado o primeiro líder religioso judaico nascido nos EUA. Outro filho, Benjamin Mendes Seixas (1747-1817), próspero comerciante, ajudou a fundar a Bolsa de Valores de Nova Iorque. A trineta de Isaac, Emma Lazarus (1849-1887) é autora do poema The New Colossus, fixado na Estátua da Liberdade. Outro trineto, Benjamin Nathan Cardoso (1870-1938), foi o segundo judeu nomeado Juiz da Suprema Corte. Consta, também, um descendente mais distante – Arthur Ochs Sulzberger – como o principal acionista do “The New York Times”.

 

A família Mendes Seixas teve papel relevante na própria construção dos EUA como nação. Gershom é considerado um dos heróis da Revolução Americana de 1776, como auxiliar de George Washington. Empenhou-se na defesa da liberdade religiosa e foi destacado educador  com atuação no King's College (atual Columbia University). Seu irmão Benjamin também participotu da guerra da independência dos EUA e da fixação dos judeus no novo país. Porém, destacou-se mais no comércio como corretor. Junto com outros comerciantes judeus e cristãos, assinou o Buttonwood Agreement, em 17/05/1792, documento que deu origem a Bolsa de Valores de Nova Iorque.    

 

Poderia se dizer que estes fatos eliminam de vez a tal polêmica para saber se o Brasil estaria melhor sob o domínio holandês. Mas não obstante a quantidade de estudos, teses e livros existentes sobre o assunto – Evaldo Cabral de Mello chegou a aprender o idioma holandês para estudar melhor essa História – ainda hoje estamos tratando de um capítulo pouco conhecido da história do Brasil (e dos EUA) que permanece na penumbra.

Nos EUA a história é mais conhecida e até comemorada anualmente pela comunidade judaica. Eles mantêm, guardado a sete chaves, o cemitério, no centro da cidade, onde estão os pioneiros vindos do Recife

Talvez essa falsa polêmica fosse dissipada no grande público se tivessemos um filme contando toda a história. É sabido que o Cinema é para milhões; já a Literatura é para milhares; e o estudo/pesquisa, então, é para as centenas. O fato, a saga histórica vem sendo estudada há muito tempo. Esse capítulo da História do Brasil e dos EUA merece e deve ser contado pelo Cinema aos milhões de espectadores.

Pode parecer incrível, mas o fato é que temos o filme!: O Rochedo e a Estrela foi concluído pela cineasta Kátia Mesel com os recursos da Lei Rouanet, em 35mm e tem 85 minutos, filmado nos Estados Unidos, Holanda, Curaçao e Brasil. Em 2004 fizeram uma versão de 30 minutos apresentada em Nova York, por ocasião dos 450 anos da chegada dos judeus de Pernambuco em Nova Amsterdam (NY). Mais tarde foi exibido no 15º Cine PE Festival de Audiovisual, em maio de 2011, cujo trailer pode ser visto na Internet. No entanto as distribuidoras não se interessam pelo filme, alegando que não é comercial.

Trata-se de um filme de grande interesse à história de dois grandes países, que não foi distribuido no circuito dos grandes cinemas. É o caso de se perguntar: o que vem impedindo a distribuição desse filme? Existem forças conspiratórias para que não se propague essa história? Perguntei isto a autora do filme, e que me prometeu uma cópia.

- "É isso, Brito: existe uma má vontade em exibir o filme".  

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