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Tendências literárias

 

AUTOFICÇÃO

       De acordo com Eunice Figueiredo, "a maneira de construir e encarar as categorias de autobiografia e ficção sofreu grandes tranformações nos últimos 30 anos, e hoje as fronteiras entre elas se desvanecem. A autoficção é um gênero que embaralha as categorias de autobiografia e ficção de maneira paradoxal ao juntar, numa mesma palavra, duas formas de escrita que, em princípio, deveriam se excluir". Procurando uma definição para o novo termo, ela recorre ao "pai da criança" Serge Doubrovsk, que "sentindo-se desafiado por Philippe Lejeune que, no livro Le pacte autobiographique, indagava se seria possível haver um romance com o nome próprio do autor, já que nenhum lhe vinha ao espírito, Doubrovsky decidiu escrever um romance sobre sí próprio. Assim ele criou o neologismo de autofiction para qualificar seu livro Fils". E como ele define o novo termo?

       "Autobiografia? Não, isto é um privilégio reservado aos importantes deste mundo, no crepúsculo de suas vidas, e em belo estilo. Ficção, de acontecimentos e fatos estritamente reais; se se quiser, autoficção, por ter confiado a linguagem de uma aventura à aventura da linguagem, fora da sabedoria e fora da sintaxe do romance, tradicional ou novo. Encontro, fios de palavras, aliterações, asonências, dissonâncias, escrita de antes ou depois da literatura, concreta, como se diz em música. Ou ainda: autofricção, pacientemente onanista, que espera agora compartilhar seu prazer".

       Por falar em autofricção onanista, Eunice Figueiredo desenvolve mais o conceito em seu ensaio "Autoficção feminina: a mulher nua diante do espelho, publicado na Revista Criação & Crítica, nº 4, de abril de 2010.

X X X

Com a finalidade de melhores esclarecientos, ou melhor, de botar mais lenha na fogueira, vejamos um texto do jovem escritor gaúcho Antônio Xerxenesky, que escreve "pra caramba", mantém a "Não Editora" e os "Cadernos de Não Ficção".

 

Algumas notas perdidas

demais sobre autoficção

Antônio Xerxenesky

“Tudo que eu sei sobre autoficção é que o termo foi cunhado de 1977 por Serge Doubrovsky e que eu supostamente escrevo auto-ficção” (1) disse uma vez Vila-Matas. Sobre a segunda parte da sua afirmação, é bastante unânime entre a crítica( 2) que (desde um certo conto no Suicídios Exemplares) o escritor tem enveredado pelo caminho do gênero, trabalhado com o que ele mesmo chamada de “recuerdos inventados” (mais ou menos: “lembranças inventadas”) transformando-se em protagonista de suas histórias e ficcionalizando sua vida.

Até aí tudo bem.

Adelante. Já vi, por exemplo, “O filho eterno” do Tezza, ser chamado de autoficção. A história, autobiográfica até a raiz dos cabelos, mas narrada em terceira pessoa, é, de fato, uma ficcionalização de uma autobiografia. Mas não seria toda autobiografia também ficcional? Até as mais fiéis aos supostos “fatos”, ao apresentar um recorte, não se tornariam ficção? Ou melhor, ao apresentar um ponto de vista do “fato” (que, por si só não existe – porém aí a discussão fica por demais abstrata e filosófica) o estatuto de “verdade” já não estaria comprometido? Bem. Então se toda autobiografia é ficção, não seriam todas autoficção? Não para a crítica. Você não espera encontrar Bill Clinton ao lado de Vila-Matas ou Paul Auster ou J.M. Coetzee em uma lista do tipo. O que separaria a autobiografia do gênero autoficcional? Seria a – pasme – intenção? A crítica não tinha assassinado o autor e enterrado a noção de “intenção” há muito tempo atrás? “My Life” do Bill Clinton se pretende verdade, se vende dessa forma. Já Vila-Matas, por outro lado, se vende como um grande enganador, um contrabandista de identidade falsas (3). Estaria a intenção vivíssima na hora de definir o que é ou não autoficção?

A cousa se complica mais quando pegamos a crítica menos acadêmica, mais jornalística. Veja bem: eu demorei anos e mais anos para romper meu preconceito contra John Fante e ler seu “Pergunte ao Pó”. Aquele livro é um exemplo clássico de autoficção, tanto como, sei lá, “Juventude” do Coetzee. Mas Fante e todos seus influenciados são chamados de umbiguistas. Você já viu uma pessoa chamar o Coetzee de umbiguista? Ou o Bolaño? No pior dos casos são colocados em oposição aos “escritores de mundo” (gente preocupada em contar histórias de Outros (4)) o aos “escritores de imaginação” (eufemismo usado por pessoas que tem preconceito contra gêneros como a ficção-científica e a fantasia).

Bem. Eu não sei o que pensar de tudo isso. Seria “autoficção” apenas um termo besta inventado por um francês empolado (5) e pervertido pela crítica para dar sinal de status a um o outro escritor? Ou ele (o termo) tem uma definição muito precisa que me escapa? Eu realmente não sei.

NOTAS:

(1) A frase é mais ou menos essa. Citações de cabeça, nunca dão certo.

(2) Ver Vila-Matas Portatil: el escritor ante la crítica.

(3) Vila-Matas chega um nível de absurdo de auto-consciência no seu último livro, Dietario Volube, um diário com toques ficcionais. O escritor catalão, que escolhe suas próprias capas, colocou uma foto sua na capa, de costas, e, na orelha, de óculos escuros. A foto de divulgação da época é ele, de óculos escuros, abrindo um sobretudo cheio de fotos diferentes dele. Daí que tirei a expressão “contrabandista de identidades falsas”.

(4) “Mas o eu não é um outro?” é a pergunta que salta da leitura Doctor Pasavento. Algo me diz que Lacan já refletiu sobre isso, só que na boa, quem consegue ler Lacan?

(5) O termo, pelo jeito, é extremamente pop na frança. O artigo na Wikipédia francesa é três vezes maior que na norte-americana, e usa como exemplo geralmente aqueles escritores franceses que ficam falando quase apenas de sua intensa vida sexual.

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Antônio Xerxenesky

ficcionista, autor do romance Areia nos dentes (Não Editora, 2008; Rocco, 2010) e do volume de contos A página assombrada por fantasmas (Rocco, 2011). Atua como editor na Não Editora, onde organiza a revista online de crítica literária Cadernos de Não-Ficção.

Fonte: http://blog.antonioxerxenesky.com/


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