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POR CONTA DO CLIENTE

Jorge Fernando dos Santos

A partir de hoje – sempre aos domingos – publicaremos semanalmente, em forma de folhetim, o novo romance de Jorge Fernando dos Santos: Por conta do cliente. O autor é jornalista, escritor e compositor com mais de 40 livros publicados. Entre os mais conhecidos estão “Palmeira Seca” (Prêmio Guimarães Rosa em 1989, adaptado para teatro e televisão, tese de mestrado na Itália); “O Rei da Rua” (novela infantojuvenil com mais de 20 edições esgotadas); “ABC da MPB” (selo Altamente Recomendável da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil em 2005); “Alguém tem que ficar no gol” (finalista dos prêmios Barco a Vapor e Jabuti, em 2015); e “Primavera dos Mortos” (também publicado em capítulos no Tiro de Letra).

“Por conta do cliente” narra a saga de um ghost writer envolvido na corrupção política e empresarial. O novo livro é dividido em duas partes, cada uma com vários capítulos. A primeira é narrada pelo protagonista e a segunda, por outro escritor, contratado para terminar suas memórias. Segundo o autor, qualquer semelhança com personagens e fatos reais não terá sido “mera coincidência”.

Boa leitura!

 

 

Caro leitor,

 

este livro foi escrito por um ghost writer.

O título – que aqui não se lê – ficou

por conta do cliente.

Jorge Fernando dos Santos

 

 

 

                       “Todo homem decente de nossa época é e deve ser covarde e

         escravo. É a sua condição normal... É a lei da natureza para todos os

             homens decentes sobre a terra.”

                                                       (Dostoievski, em Memórias do Subsolo)

 

 

 

PRÓLOGO

         Quando o produtor de televisão ameaçou cortar relações comigo, caso continuasse insistindo na cobrança de sua dívida, eu simplesmente disse a ele para entrar na longa fila dos meus desafetos... Reescrevi essa frase dezenas de vezes e isso acabou atrasando o novo romance.

       Começar um livro pode ser tão complicado quanto terminá-lo ou apenas lhe dar um nome. Este, ao mesmo tempo em que deve expressar o conteúdo da narrativa e ser agradável aos leitores e críticos, precisa soar comercialmente aos ouvidos do editor para motivá-lo a publicar o original. Exatamente por isso, fugindo à responsabilidade pelo possível fracasso da obra em questão, sempre convém ao habilidoso ghost writer deixar o título por conta do cliente.

 

 

PRIMEIRA PARTE

A Firma

I

       Além de me proporcionar uma renda extra com a qual era possível complementar o salário pago pela firma, escrever sob encomenda às vezes me causava dissabores. Ver os livros que escrevia publicados com o nome de outras pessoas na capa e na folha de rosto era de somenos importância. O maior problema era ter que lidar com fregueses oportunistas, que, além de se apropriarem de minhas ideias e palavras, ainda tentavam renegociar o preço ou dar o calote depois do serviço pronto. Contudo, não era difícil supor que, do ponto de vista da clientela, o errado fosse eu. Afinal de contas, se existe alguém intelectualmente prostituído neste mundo, esse alguém é o ghost writer.

       Eram tempos difíceis, aqueles. Homens de bons costumes andavam de cabeça baixa, como cabe aos sábios e aos tolos. Dissimulação e ostentação davam o tom da convivência e o cinismo parecia ser o único “ismo” que sobrevivera ao fim das utopias. Ninguém mais queria salvar o mundo ou a humanidade. Esta, por sua vez, parecia longe de querer se salvar. As pessoas, em sua maioria, viviam sob o lema do cada um por si e Deus por ninguém.

       Enquanto as grandes corporações dominavam a política e o mundo dos negócios, a felicidade individual se fazia proporcional à capacidade de consumo. Esta frase poderia ter sido surrupiada de uma novela de Orwell ou Loyola Brandão – modéstia às favas – mas, infelizmente, está longe de ser ficção.

       Por tudo isso, mesmo seguindo as normas vigentes, eu preferia manter certo equilíbrio nas relações pessoais e profissionais. Nem perto nem longe, nem quente nem frio, se é que me entendem. Procurava ser leal na medida do possível até mesmo ao gerente de produção, o sujeito mais asqueroso com o qual eu já havia lidado nos meus seis anos de trabalho na firma.

       Ele era daquele tipo que só não vende a mãe pelo fato de ser órfão. Fazia qualquer coisa para manter o poder que lhe garantia um bom salário, um carro importado e uma casa de luxo num condomínio-fechado nos arredores da cidade. Tudo isso sem contar o séquito de bajuladores à sua volta. Nada mau para um pulha hedonista pouco mais velho que eu.

       Mas também devo observar que tipos como aquele não sabem que o poder é igual à teia da aranha, que prende os pequenos seres que dela se aproximam, a começar pela própria aranha. Igual a viúva-negra no centro de sua rede tecida de baba, ou mesmo o cão pastor que do alto da colina observa as ovelhas com astúcia de lobo, o gerente de produção passava seus dias confinado no seu gabinete. Vigiava os subalternos através do blindex do aquário ou pelos monitores do sistema interno de câmeras de segurança.

       Diziam as más línguas que um dos seus passatempos prediletos era dormir com funcionárias carreiristas, jovens inexperientes que se entregavam a ele na ilusão de serem promovidas ou de garantir o emprego em tempos de vacas-magras. Esse teria sido um dos motivos do fracasso de seus quatro ou cinco casamentos.

       Era no leito, com tais subalternas, que o Don Juan de araque se inteirava de fato do ambiente corporativo. E assim ficava sabendo quem falava mal de sua conduta pessoal ou dos péssimos resultados de sua gestão administrativa cada vez mais caótica.

 

II

       O edifício-sede da firma era largo na base e afunilado da metade para cima, qual uma pirâmide asteca feita de vidro, aço e concreto. Seis andares e um subsolo no qual ficava a garagem. Bem na entrada havia uma placa de bronze com a frase “o trabalho dignifica o homem”. Isso me fazia lembrar os campos de concentração construídos pelos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial.

       Nos dois primeiros andares funcionavam os departamentos da fábrica, incluindo o laboratório de pesquisas e a expedição, no primeiro; a gerência de produção e uma lanchonete, no segundo. O terceiro comportava os setores de compras, vendas, segurança e serviços gerais. No quarto andar ficavam os setores de comunicação interna, marketing e propaganda, englobando a Central de Atendimento ao Cliente. No quinto, a gerência de recursos humanos e os setores de informática e contabilidade, incluindo a tesouraria.

       Já o sexto e último andar era todo reservado aos diretores e ao conselho de acionistas, e por isso mesmo era considerado o cérebro da firma. Lá ficava a luxuosa sala de reuniões e o gabinete do diretor-executivo, com direito a um jardim suspenso a céu aberto repleto de cactos e mandacarus originários da caatinga brasileira.

       O principal fruto do nosso trabalho, que deveria ser considerado o pãozinho de sal da nossa padaria – se é que uma grande firma pode ser comparada a uma simples padaria –, vinha sendo processado com certo desdém pelo pessoal da linha de produção.

      Chefetes e gerentes de plantão se viam forçados pelas circunstâncias a exigirem cada vez mais de seus subalternos e a tratar os clientes com certa displicência. Na verdade, a clientela havia perdido a razão de ser, tornando-se mero detalhe no processo produtivo e por isso mesmo já não comprava nossas mercadorias como antes.

       Não era preciso ser doutor em marketing ou consultor em controle de qualidade para perceber que o envolvimento da firma com o governo e as instituições mais controvertidas do nosso tempo prejudicava sua imagem junto aos consumidores. Para não ter que fazer mea-culpa e reconhecer os equívocos de tais relações e do modelo administrativo ali praticado, a diretoria responsabilizava a variedade de opções disponível no mercado pela queda no faturamento – mesmo com todo o dinheiro gasto em publicidade e propaganda.

       Quando um escândalo ocupava as manchetes, denunciando a corrupção praticada pelos políticos e apontando suas relações com a firma, éramos os últimos a ser devidamente informados a respeito. E isso, quando ocorria, geralmente se dava por meio de memorandos que reproduziam a fala nada convincente do nosso diretor-executivo. Explicações sem objetividade destinadas a empregados e clientes, que indiretamente pagavam nossos salários e geravam o alto lucro dos acionistas. Estes, por sua vez, pressionavam a gerência de RH exigindo cortes na folha de pagamento. Todos alegavam aumento nas despesas administrativas e nos gastos com a compra de matéria-prima e de novos equipamentos.

       Desnecessário dizer que o resultado dessa política era um clima organizacional marcado pelo sofrimento moral, estresse e insegurança, o que refletia no resultado final da nossa atividade. Todos nós reclamávamos da sorte na firma, mas resistíamos à tentação de  deixar o emprego devido à crise que abalava o cenário financeiro com sérios reflexos no mercado de trabalho.

       Paralelamente ao discurso da diretoria, corriam boatos criados por uma rede de intrigas a serviço de forças ocultas que minavam o espírito de corpo dos poucos profissionais ainda empenhados na defesa de valores éticos e na luta pela verdade dos fatos. A verdade, a bem da verdade, havia se tornado um artigo de luxo nos brechós do idealismo. Certos valores pelos quais já havia valido a pena viver, morrer ou sacrificar a própria liberdade estavam fora de moda e cogitação.

       Humanismo é coisa do passado, diziam alguns. Talvez por isso, buscando novos ideais, pessoas de alguma sensibilidade se engajavam na luta em defesa de outras espécies. O bicho-homem parecia mesmo não ter solução, estando condenado pelos próprios atos que praticara ao longo de séculos contra a natureza e a própria espécie. Até porque, as preocupações com o meio ambiente garantiam altos lucros a um amplo mercado de produtos e serviços ecologicamente corretos, cujo uso aliviava consciências sem, no entanto, salvar o planeta.

       O sucesso desse ramo de negócios havia inspirado até mesmo um movimento nacional pela criação de um instituto de previdência para cães, gatos e outros bichos de estimação. A máxima dos militantes dessa causa era o velho ditado de que mais vale um cachorro amigo do que um amigo cachorro. E certamente esse lema influenciava o ambiente de trabalho e a convivência social na firma, pois fazer amizade entre os colegas era algo difícil e cada vez menos recomendável.

       Contudo, minha rotina de vida ainda incluía uma passada no bar da esquina quase todas as noites, depois do expediente, quando dávamos por encerradas as tarefas do dia. Sentava-me à mesa com os colegas de sempre, com os quais passava a limpo planos e metas a serem devidamente cumpridos. A maioria fazia comentários dos mais jocosos sobre os bastidores da firma e por isso não era recomendável ser um dos primeiros a sair do local deixando a retaguarda à mercê dos falastrões.

       Em meio à fumaça dos cigarros e ao cheiro rançoso de uísque, cerveja e cocaína, falava-se da sensualidade das novas estagiárias, dos escândalos abafados a mando da diretoria-executiva, quem saía com quem e quais os fundamentos da boataria sobre demissões que deveriam ocorrer em breve para aliviar a folha de pagamento tão sobrecarregada de parentes e apaniguados da cúpula administrativa.

       Eu, da minha parte, falava pouco e ouvia muito. Apenas tentava adivinhar entre os companheiros de mesa qual seria o informante do gerente de produção. Aquele que, no desempenho do ofício da delação, costumava dedurar quem falou mal dele e de outros membros da diretoria ou do condomínio de acionistas da firma.

       De volta a casa, o melhor a fazer era tomar uma ducha para esfriar a cabeça, lavar o corpo e aliviar a alma da sensação de tédio e cansaço. Quando tinha que escrever algum texto sob encomenda, ficava em frente ao computador até de madrugada, embora preferisse me dedicar a essa tarefa nos finais de semana. De qualquer modo, antes de ir para a cama, eu sapeava os canais da TV a cabo em busca de alguma novidade no noticiário a fim de não chegar desinformado ao trabalho, no dia seguinte.  

       Quando não era acometido de insônia, o que me obrigava a tomar soníferos cada vez mais potentes, eu tinha a noite assombrada por pesadelos. De manhã, mergulhava em mais um ciclo de produção. Afinal, nossos superiores pareciam ignorar que a rotina corrói a alma e que as novidades de cada dia é que fazem a vida valer a pena. A vida apenas não basta, é preciso reinventá-la para que tenhamos algum sentido em vivê-la de fato. Essa conclusão fazia parte do prólogo de uma peça teatral que eu havia escrito há alguns anos sob encomenda de um dramaturgo decadente cujo nome, por razões éticas, não devo revelar.

III

       Os chefes da firma constituíam uma fauna incomum naquele zoológico de egos inflamados e doentios. O encarregado do setor de marketing e propaganda, por exemplo, dizia-se comunista e, talvez para manter a aparência coerente com o discurso, usava barba e cabelos longos e isso lhe dava um aspecto de urso e certa semelhança física com Marx – não o Grouxo, meu humorista preferido; mas o Karl, seu filósofo de  cabeceira.

       Contraditoriamente, o sujeito estava sempre a dissuadir jovens profissionais e estagiários recém-contratados de se filiarem ao sindicado, pois considerava esse tipo de agremiação um simples paliativo na luta de classes. Orgulhoso de suas convicções e dos muitos livros que já havia lido, ele temia ser confrontado em público e, sempre que possível, simplesmente fugia ao debate.

       Sua submissão ao gerente de produção e o fato de ser sobrinho-neto do presidente do conselho de acionistas irritava até mesmo o chefe do laboratório de pesquisas. Este, entre todos, era o mais conservador e havia colaborado com a ditadura que governara o país durante duas décadas. As más línguas diziam que, no serviço militar, ele fora recrutado como informante do regime e ajudara a desbaratar grupos armados que lutaram em nome das liberdades democráticas. Era gordo feito um porco e seu grande prazer era comer ou falar de comida. Estava sempre trocando receitas com os colegas, pois a culinária era seu hobby, com especial devoção pela cozinha alemã.

       O chefe do setor de informática, por sua vez, era afilhado do diretor comercial e costumava publicar artigos em jornais da cidade defendendo ideias esdrúxulas que ora pareciam de esquerda ora de direita, o que muitas vezes poderia dar no mesmo e não fazer a mínima diferença em tempos como aqueles. Afinal, a prática costumava ser o avesso da teoria defendida nos discursos. Uma coisa era falar bonito para conquistar as massas no período eleitoral, outra seria exercer o poder ou tentar fazer uma omelete sem quebrar os ovos – impossibilidade apontada pelo camarada Lênin há mais de um século.

       Pessoalmente, ele até que era tratável, chegando mesmo a inspirar confiança entre os subalternos e demais chefetes, muito embora na intimidade com os diretores faltasse abanar o rabo como um cão adestrado. Estava sempre com um isqueiro prateado na mão, pronto para acender-lhes o cigarro, muito embora não fumasse e sustentasse entre os colegas mais próximos um discurso antitabagista. A cantilena contra o fumo tinha um motivo plausível: seu pai, que havia sido ministro de Estado, morrera de câncer pulmonar depois de um longo período de tratamento.

       O fato de sempre acender o cigarro dos superiores, embora fosse convicto dos malefícios causados pelo vício ao organismo humano, talvez encontrasse explicação na teoria freudiana que aponta a influência do inconsciente em algumas de nossas atitudes mais corriqueiras. Alguém chegou a aventar a hipótese de ser ele próprio o mais corajoso dentre nós, uma vez que seu isqueiro mágico contribuía deliberadamente, dia após dia, para encurtar o tempo de vida de nossos diretores.

       Provavelmente ele nem se dava conta disso, mas no fundo de sua alma cristã o mais secreto dos seus desejos talvez fosse ver os diretores agonizando como seu pai, que chegou a fumar três maços por dia até que a febre e as crises de tosse fossem diagnosticadas. Quando ficou órfão, era pouco mais que um garoto e jamais perdoou o velho pelo vício, chegando a considerá-lo um suicida. A sorte de todos é que, no gozo de serem bajulados, os diretores jamais desconfiaram que sob a máscara do servilismo se ocultasse tamanha ira.

       Já a chefe do setor de compras, uma das poucas mulheres em cargos de comando na firma, mereceria um capítulo à parte não fosse minha ojeriza por ela desde o dia em que fizemos sexo no elevador durante um blecaute que durou cerca de meia hora. Na verdade, assim que ficamos no escuro, ela se pôs de joelhos, avançou em minha braguilha e, antes que eu pudesse reagir, grudou a boca no meu membro como se o pircing em sua língua fosse uma ventosa.

       A pós-balzaquiana se esforçava para manter os vestígios de antiga beleza, com uso do Botox e de roupas que deixavam pressupor as curvas do corpo esculpido pela lipoaspiração. Aquele que a observasse com apurada atenção poderia notar que havia injetado silicone nos seios e usado raios laser contra estrias e varizes. Seu perfume doce e enjoativo era de espantar até mesmo os mosquitos que às vezes vinham da lanchonete do prédio para nos atormentar. Pior que isso era seu hálito de peixe, que fazia supor uma doença do fígado ainda não detectada pelos exames periódicos que o RH exigia dos gestores para garantir que nenhum de nós caísse morto no local de trabalho – o que poderia comprometer a imagem institucional da firma.

       Realmente, quem vê cara não vê coração. A serpente de voz macia havia batido o recorde de demissões na empresa, substituindo nada menos que 15 funcionários num prazo inferior a dois anos, sem nenhum motivo que parecesse justo aos olhos de quem quer que fosse. O curioso é que ela comandava apenas sete pessoas, o que lhe dava um baixo índice de resiliência para com os subalternos.

       Diziam pelos corredores da firma que a megera havia sido amante do ex-diretor- executivo, pai do atual, e que por isso o gerente de produção não ousava repreendê-la pelo excesso de substituições num período tão curto de tempo. Contudo, além de injustas, tais medidas resultavam no aumento de despesas do RH com contratações e idenizações funcionais.       

       Enquanto isso, o chefe do setor de vendas havia desenvolvido um estilo próprio no trato com seus comandados. No momento de repreendê-los por qualquer falha cometida ou que ainda haveriam de cometer, ele nunca elevava o tom de voz. Preferia atraí-los a uma conversa amigável na qual os chamava de incompetentes, inoperantes, seres desprezíveis que tiveram a sorte de trabalhar numa grande firma sob a chefia de um profissional tão afável, experiente e compreensivo como ele. Parecia um bicho-preguiça e, revelando extrema coerência com o aspecto físico, de vez em quando cochilava na mesa de trabalho.

       Apesar de tudo, esse tipo era o gestor preferido do gerente de produção. De bigode fino e sobrancelhas grossas, que se elevavam diante da menor contrariedade, poderia facilmente interpretar um vilão de telenovela mexicana. Se me fizessem tal encomenda, eu não perderia a oportunidade de usá-lo como modelo. Sabia dizer impropérios com um leve sorriso espremido nos cantos da boca, de modo que alguém que testemunhasse a cena de longe, sem ouvir suas palavras – como num filme do cinema mudo – provavelmente pensaria se tratar de elogios e não de assédio moral deliberado contra os profissionais sentados à frente de sua mesa sempre com caras de idiota.

       O chefe da contabilidade era outro que procedia com tal fleuma e naturalidade que nem mesmo os subalternos, quando repreendidos, pareciam acreditar nas palavras que saíam de sua boca com a delicadeza de uma borboleta ao deixar o casulo. Além de ser extremamente cuidadoso nos gastos, o que também somava pontos à sua imagem junto da direção da firma era o fato de ser adepto de uma dessas religiões que destacam a caridade como a maior das virtudes. Sob esse pretexto, sempre fazia correr listas de donativos para ajudar crianças e idosos assistidos por sua igreja. No entanto, alguns desconfiavam que parte desses recursos fosse usada em benefício próprio. Além de ser o cara mais pão-duro da firma, ele também emprestava dinheiro a juros aos colegas.

       E havia ainda o chefe de segurança e serviços, setor conhecido como a SS da firma. Irmão do diretor do departamento jurídico, ele tinha olhos frios e injetados como os de um gavião. Sua fama era gostar de rapazes e diziam que pagava bem ao office-boy que saísse consigo depois do expediente. No entanto, quando se sentia esnobado pelo funcionário, era capaz de persegui-lo sem nenhuma complacência. Outro atributo que o destacava na firma era o caráter competitivo. Bastava um colega trocar de carro ou comprar um terno novo para que ele fizesse o mesmo. E fazia questão dos produtos de grife, tentando mostrar a todos que estava sempre por cima da carne seca.

IV

       A firma era uma das maiores empresas do seu ramo de negócios em todo o país. Por isso sempre havia filas de profissionais interessados numa vaga em seu quadro funcional, ainda que fosse para lavar banheiro ou polir a escarradeira do diretor-executivo que cuspia a cada cinco minutos. Onde quer que ele fosse, era acompanhado por um anão que levava consigo aquele utensílio esdrúxulo sempre posicionado para receber a cusparada. Havia adquirido a mania na infância, depois que um padre do colégio interno o surpreendera fazendo sexo oral num colega de sala, obrigando-o a lavar a boca com sabão para que espinhos não brotassem em sua língua como castigo dos céus.

       Como a oferta de mão-de-obra era sempre excedente no mercado de trabalho, os salários pagos pela firma tendiam a diminuir a cada renovação do quadro de pessoal, o que se tornara uma política no planejamento estratégico adotado pela diretoria. Uma vez por ano, geralmente no mês anterior à data-base da categoria, o RH promovia uma espécie de expurgo dos maus funcionários. Dispensava os que já não produziam a contento ou aqueles que mesmo tendo cumprido as metas de produção fossem demasiadamente críticos ao modo como a firma vinha sendo administrada nos últimos tempos.

       “Trabalhe sem pensar”, era o lema da empresa nos cursos de treinamento. Qualquer subalterno que discordasse de alguma deliberação da diretoria ou do gerente de produção tinha seu nome prontamente anotado pelo chefe imediato no relatório de avaliação funcional. Quando chegava a temporada de caça aos rebeldes, o gerente de RH analisava os registros e elaborava a lista de demissões, convocando novos profissionais a preencherem as vagas mediante o recebimento de salários inferiores.

       Eu mesmo elaborei desses relatórios algumas vezes, forçado pelas circunstâncias e prerrogativas do meu cargo, contribuindo para substituírem subalternos que tentavam se mostrar mais realistas que o rei e garantindo meu bônus-extra de produtividade – naturalmente.

       Com a adoção de tal política de pessoal, era previsível que o valor da mão-de-obra caísse a cada ano na mesma proporção que a qualidade dos produtos oferecidos ao mercado. O que os nossos diretores não percebiam – ou não queriam admitir – é que, devido à queda do poder aquisitivo, os próprios funcionários já não consumiam os produtos que eles mesmos faziam. Isso naturalmente tinha reflexos negativos tanto na qualidade da produção quanto nas vendas e na imagem institucional da firma. Afinal, se o produto fosse bom, haveria de fazer parte da lista de compras daqueles que o fabricavam.

       A regra poderia não valer para mecânicos que trabalhassem numa indústria de carros de luxo, mas como explicar ao público – por exemplo – o fato de empregados de uma fábrica de bebidas serem flagrados consumindo a cerveja produzida pelo concorrente? E o que dizer de um periódico cujos repórteres preferissem assinar um jornal que não fosse aquele que ajudam a fazer? Claro que o chefe do setor de marketing e propaganda sabia disso, mas jamais se arriscaria a criticar a política da empresa. Isso poderia resultar em perda de função e de salário, este reforçado pela propina de agências de propaganda toda vez que uma campanha publicitária recebesse sua aprovação.

       Longe dele, na sua postura de perfeito lacaio, querer parecer mais inteligente que os superiores! E o mais incrível é que eu não poderia culpá-lo pela atitude. Embora fosse responsável pela comunicação interna da firma, tendo sob meu comando uma equipe de cinco profissionais, jamais me intrometeria nas suas funções. Mesmo não sendo um vassalo perfeito, eu não seria louco de dizer aos diretores aquilo que não me caberia dizer e que provavelmente eles não estavam interessados em ouvir. Vale lembrar que houve um tempo na antiguidade em que o mensageiro portador de más notícias era rapidamente decapitado.

       Aliás, havia um lema na firma inspirado em George Bernard Shaw afixado em quadros de avisos pelos corredores do edifício-sede: “Quem sabe não diz e só quem não sabe ensina”. Mas a frase preferida do gerente de produção havia sido adaptada de um discurso histórico proferido por um presidente americano: “Nunca pergunte o que a firma pode fazer por você, mas o que é possível fazer por ela para que obtenha maiores lucros”.

 

V

       O caráter de um homem não se mede com régua, esquadro ou compasso, mas por suas ações e reações no cotidiano. Alguém já disse que a gratidão é a maior das virtudes, o que me leva a deduzir que a ingratidão é o pior dos vícios. Ainda haveria de escrever isso num texto que me fosse encomendado, de preferência um discurso. Por saber dessas coisas é que eu sempre dizia que a melhor solução para quem quer viver em paz é não se meter nos negócios alheios. Em outras palavras – este é um chavão do qual não conseguia me livrar: em outras palavras –, as coisas são como são e não como

       Quando escrevi o roteiro a pedido do produtor de televisão, cobrei o preço que achava justo e ele concordou sem regatear. O programa foi ao ar em rede nacional, com sua assinatura, obteve sucesso de audiência e o sacana simplesmente passou a me evitar toda vez que eu lhe telefonava perguntando pelo dinheiro. No início, desconversava, dizendo que a verba havia sido insuficiente para custear as despesas de produção e que deveríamos renegociar o preço. Depois de certo tempo, ameaçou cortar relações

       A partir daí, toda vez que eu ligava, a recepcionista da emissora dizia que ele não estava disponível, que não tinha autorização para informar o número do seu celular e que retornaria minha ligação assim que pudesse – coisa que jamais ocorreu. Ele tampouco respondia aos meus e-mails ou torpedos. Tal situação já durava três meses, desde o dia em que lhe entreguei o roteiro que me fora encomendado. A história falava do amor impossível entre o pierrô e a colombina, e o argumento se baseava na marcha intitulada Máscara negra, um clássico dos antigos carnavais.          

       Como costumava fazer depois do expediente, certa noite sentei-me à mesa do bar da esquina com os colegas de sempre e pedi ao garçom que trouxesse a habitual dose-dupla de uísque com gelo que tanto me relaxava. A conversa mal havia engrenado, girando em torno de temas corriqueiros, quando vi o tal produtor adentrar o recinto e se sentar numa mesa ao fundo em companhia de uma louraça com ares de garota de programa. Ele era um cara branquelo, de corpo malhado, com a tatuagem de uma serpente no braço direito e um brinco de argola na orelha esquerda.

       Não comentei nada com os colegas, pois não gostava de falar sobre o trabalho de ghost writer – até porque o sigilo é a alma desse tipo de negócio. Permaneci em silêncio, ouvindo as baboseiras de sempre, tendo como novidade da noite o fato de o gerente de produção ter trocado de concubina, estando de caso com a funcionária ruiva do meu setor. Como sempre, não fiz comentários, pois entre nós havia um Judas a espionar.

       Lá pelas tantas, quando me levantei para ir ao banheiro no fundo do bar, passei pela mesa do tal produtor. Ele simplesmente desviou os olhos ao me ver na penumbra, como se não tivesse me reconhecido. Na volta do banheiro, parei diante de sua mesa, raspei a garganta ruidosamente e cuspi no seu copo de cerveja.

      A louraça com ares de garota de programa emitiu um gritinho histérico, enojada e ao mesmo tempo surpresa diante da cena. O caloteiro, de tão perplexo, sequer esboçou reação. Gostaria que ele tivesse reagido, pois teria uma boa desculpa para lhe acertar a cabeça com a garrafa que estava sobre a mesa. No entanto, embora tivesse o dobro do meu tamanho, ele ficou apenas me olhando espantado, como se pressentisse o perigo iminente ou sequer acreditasse no que eu havia acabado de fazer.

       Não sei se fiquei mais surpreso com a reação dele ou ele com a minha ação propriamente dita, já que eu colecionava desafeto e nunca tivera coragem de confrontar um deles com tanta veemência. Então, agi como se nada tivesse acontecido. Voltei ao meu lugar na mesa de onde os colegas, também boquiabertos, me observavam em silêncio. Pouco depois, o produtor chamou o garçom, pagou a conta e se retirou em companhia da loira, que me lançou um olhar insinuante sem que ele percebesse.

       – Meu herói – gracejou a chefe do setor de compras, sentada do meu lado.

       O chefe da contabilidade comentou que, se eu havia feito uma coisa daquelas, era porque o grandalhão na certa fizera por merecer, levando-se em conta o próprio fato de não ter reagido diante da ofensa. Não dei atenção às suas palavras e, talvez por isso, ninguém mais tocou no assunto naquela noite. Pouco depois, pedimos a conta, pagamos o garçom e nos retiramos, todos ao mesmo tempo.

VI

       No dia seguinte, bem cedo, fui chamado ao gabinete do gerente de produção, no segundo andar da firma. Lá estava ele atrás da mesa de trabalho, observando o painel de pequenos monitores que lhe proporcionavam imagens de diferentes pontos da fábrica. Era assim que controlava os operários, observando quem trabalhava e quem enrolava o tempo sem merecer o salário de cada mês. Seria um ótimo personagem de novela policial, um bom modelo de chefe mafioso, caso alguém me encomendasse algo do gênero, pensei.

       Mandou que eu me sentasse na desconfortável cadeira em frente à sua mesa – que era desconfortável justamente para evitar que o visitante demorasse mais que o necessário. Antes de dizer qualquer coisa, olhou-me através dos óculos bifocais como se tentasse encontrar um traço familiar ou algum sinal suspeito. E assim permanecemos calados por meio minuto, talvez um pouco mais, eu e o gerente de produção; ele e seu cavanhaque grisalho, sua franja hitleriana, suas sobrancelhas finas e aquele ar de quem diz “sei onde você estava e o que andou aprontando nas últimas horas”.

       – Gostaria de saber por que você cuspiu no copo de cerveja daquele homem, ontem à noite disse ele de repente, indo direto ao assunto.

       – Não faço a mínima ideia – respondi, sem pestanejar.

       – Convenhamos que essa não é uma atitude corriqueira retrucou.

       – Aquele homem me deve dinheiro e tem evitado meus telefonemas nos últimos meses – justifiquei.

       O gerente de produção coçou o cavanhaque com os dedos longos da mão direita. Dedos que provavelmente haviam acariciado a funcionária ruiva do meu setor na noite passada, disse com os meus botões. E ali estava ele, novamente me encarando em silêncio, como se estudasse um espécime raro de inseto sob as lentes de um microscópio.

       – Tenho observado você há algum tempo admitiu. É diferente da maioria. Tem prestado serviços a terceiros como ghost writer, o que faz de você o homem certo. Poderia melhorar o próprio salário aqui mesmo, na firma.

       – E o que eu teria que fazer?

       – O diretor-executivo precisa justamente de um ghost writer, alguém que escreva discursos, editoriais, pronunciamentos... Ele não leva jeito com as palavras e, convenhamos, tem uma secretária que mal sabe digitar um memorando. No entanto, não pode ser substituída porque sabe de coisas comprometedoras.

       – E por que me escolheriam para a função?

       – Seu trabalho na comunicação interna tem sido razoável, eu diria. Você já é um ghost writer lá fora e, para completar, nós gostamos de saber que teve coragem de cuspir no copo de um sujeito com o dobro do seu tamanho. A valentia é uma qualidade rara nos dias de hoje.

       Fiquei perplexo com a resposta, pois era a confirmação de que as notícias na firma corriam tão depressa quanto a eletricidade nos fios de luz. Pelo visto, o tal informante que espionava a nossa mesa não perdera tempo na noite anterior.

       – Aceita a promoção? insistiu o gerente de produção, dessa vez me olhando por cima dos óculos.

       O ganho compensará o risco?

       – Vinte por cento a mais do seu salário atual. É pegar ou largar, com a devida ressalva de que o diretor-executivo não gosta de funcionários que recusam promoções. Esse tipo de atitude pode motivar demissões... Essa, aliás, tem sido uma boa política praticada na firma, como você já sabe.

        Realmente eu sabia.

       – Diante de argumentos tão convincentes não posso recusar a oferta        – ironizei. – Que dia devo começar na nova função?

       – Amanhã cedo... Avise sua assistente que ela ficará em seu lugar até escolhermos outra pessoa para o cargo. Apresente-se à secretária do diretor-executivo, no sexto andar, e ela o introduzirá na sua nova rotina de trabalho. Boa sorte!

       Apertamos as mãos e ele voltou a mirar o painel de monitores atrás da mesa, enquanto eu me retirava com a sensação de estar andando nas nuvens.

 

                                     VII

 

       No meu primeiro dia de trabalho na nova função fui o primeiro a chegar à cobertura do prédio, onde ficavam as salas dos diretores e aquela que eu deveria ocupar a partir daquele dia. Sentei-me na poltrona branca do hall de entrada, ao lado do elevador. Para passar o tempo, peguei uma revista de futilidades sociais sobre a mesinha de centro. A edição era do ano anterior e trazia uma longa reportagem narrando a meteórica trajetória profissional do diretor-executivo, com fotos coloridas dele com o pai, a mãe, a esposa e o casal de filhos adolescentes, todos obesos e com uma expressão bovina no rosto.

       A secretária não demorou a chegar e foi logo se sentando atrás da mesa de jacarandá, sobre a qual havia um computador de última geração e folhas de papel ofício em duas caixas de acrílico típicas de repartições públicas, onde se liam respectivamente as expressões entrada e saída de documentos. Branca, de olhos verdes, cabelos negros e lábios carnudos untados de batom carmim, a mulher era alta e de curvas acentuadas, o que me fez pensar numa atriz de cinema.

       Sem nem mesmo dizer bom-dia, ela ligou o computador e começou a digitar numa velocidade que me deixou boquiaberto. Permaneci sentado em silêncio, folheando a revista de futilidades sociais, surpreso com a quantidade de fotos do diretor-executivo e sua família. Imaginei quanto dinheiro uma matéria-paga como aquela teria custado aos cofres da firma, o que – aliás – não era da minha conta.

        Pouco depois, o telefone sobre a mesa da secretária tilintou e ela atendeu, olhando para mim e dizendo “sim, ele já chegou”. Em seguida, pôs o fone de volta no gancho e apertou um botão sob o tampo da mesa, que fez abrir a porta da sala do diretor-executivo com um pequeno estalido. Antes que eu dissesse alguma coisa, ela avisou que o chefe havia entrado no gabinete pelo elevador privativo, que subia da garagem sem parar em outros andares. Mandou que eu entrasse, pois já estava sendo aguardado para me inteirar das novas tarefas.

        Coloquei a revista de futilidades sociais de volta sobre a mesinha de centro e entrei no gabinete acarpetado, fechando a porta atrás de mim. Para minha surpresa, lá estava o anão da escarradeira sentado num canto, perto do elevador privativo. Usava jaqueta e luvas brancas, estando sempre a postos, caso o diretor-executivo necessitasse dos seus préstimos.

       – Em primeiro lugar, devo parabenizá-lo por ter aceitado a nova função – disse o homem gordo de olhos empapuçados de quem bebe muito uísque, indicando a cadeira desconfortável em frente à mesa para que eu me sentasse, o que fiz imediatamente.

        Depois de me olhar silenciosamente de cima abaixo e de baixo para cima, o que me possibilitou ouvir sua respiração asmática, o diretor-executivo sorriu como se quisesse parecer simpático.

       – Eu já gostava do seu trabalho na comunicação interna e quando me disseram que você havia cuspido no copo de cerveja de um sujeito com o dobro do seu tamanho, falei com o gerente de produção: “Eis o camarada do qual precisamos”.

       – Agi por instinto, mas acho que ultrapassei os limites da decência – desculpei-me.

       – Além de tudo é modesto – exclamou o diretor-executivo depois de cuspir na escarradeira, que o anão deixara posicionada ao lado da mesa.        –Eis aí outra qualidade que admiro e que parece cada vez mais rara no mundo que vivemos. Aliás, um ghost writer que se preze deve cultivar essa qualidade, pois tudo o que escreve não há de lhe pertencer, concorda?

        – Se o senhor está dizendo...

       – Escrever um texto para terceiros deve se comparar a um ato faustiano, não acha? É como se o autor vendesse a própria alma – sorriu novamente, enquanto acendia um charuto apanhado na caixa de havanas na estante atrás da mesa. E, a cada movimento, fazia girar a imensa cadeira estofada de couro preto e encosto reclinado.

       – De certa forma é o que todo escritor faz na vida – retruquei.

       – Sei da sua prática no ramo, mas entendo muito pouco de literatura. Cheguei a fazer versos quando era jovem, mas se soubesse escrever de verdade não precisaria dos seus dotes, não é mesmo? Explique-se melhor, por favor.

       – Um escritor nunca escreve para si mesmo – comentei. – Direta ou indiretamente, ele escreve para outros: o editor, o revisor, o leitor que comprará seu livro. Por outro lado, aquilo que escreve tampouco lhe pertence. Pode até se sentir vaidoso ao reler o texto que consumiu seu precioso tempo, mas não é o autor que faz o texto e sim o contrário.

        – O contrário?

       – O agricultor planta e rega a semente, mas é dela que resulta a hortaliça. Em outras palavras, o texto é que define o escritor enquanto se escreve por meio dele – acrescentei. – Sem o texto, o autor não existiria ou não teria a menor importância como simples mortal. O escritor é uma antena a captar sensações coletivas que não lhe pertencem, mas pelas quais deverá se responsabilizar. Por outro lado, ele escreve uma coisa e o leitor lê outra.

       Não revelei que havia tirado a cantilena de um texto elaborado a pedido de um crítico, que sabia analisar obras alheias sem ser capaz de concluir o próprio livro de ensaios.

       – Boa teoria! Continue sendo modesto desse jeito e se dará muito bem na sua nova função – exasperou-se o diretor-executivo, novamente cuspindo na escarradeira. – O alerta que lhe faço é que, nessa função, terá que captar e registrar sensações minhas e não propriamente coletivas, se é que me entende. A única coisa coletiva que me parece sensata é um boa suruba. Fora isso, considero-me acima de tudo um individualista.

       – Sim, senhor.

       Em seguida, ele tirou da gaveta uma pasta preta contendo folhas encadernadas e jogou-a sobre a mesa.

       – Leia esses originais e escreva um texto de apresentação – ordenou entre baforadas. – Trata-se do livro de um consultor comportamental que conheci num jogo de bingo. Tornou-se um grande amigo e pediu para que eu assinasse a orelha. Aos amigos não se recusam favores, este é o meu lema. Será sua primeira tarefa na nova função. Sua sala, de hoje em diante, será aquela no final do corredor. Tenha um bom dia!

 

 

                                  VIII

  

     Passei o resto do dia relendo os originais assinados pelo consultor comportamental, cujo título era A garça e o voo da garça. O primeiro capítulo contava a história do guerreiro zen que pede ao discípulo para vendar-lhe os olhos e depois flexiona o arco, tentando alvejar uma maçã com a flecha. Naturalmente, ele erra a pontaria, retira a venda dos olhos e vê o ar de decepção no rosto do jovem seguidor. Primeira lição, diz o mestre: “Sem enxergar o alvo é impossível acertá-lo”. E depois vinha o comentário conclusivo do autor: “Quem não estabelece objetivos na vida, acaba se perdendo no caminho”.

     O título escolhido não dizia nada e o livro era igualmente vazio de originalidade. Mas devo dizer que isso era intencional, pois quando o escrevi atendendo à encomenda do tal consultor – sem saber que se tratava de um amigo do diretor-executivo –, procurei seguir o padrão das obras de auto-ajuda, que só ajudam mesmo aos próprios autores. Estes geralmente faturam bem com direitos autorais, palestras e cursos nos quais visam ensinar o óbvio a quem se sente incapaz de traçar o próprio destino, seja no campo-minado do amor ou no arriscado mundo dos negócios. As pessoas gostam de ser enganadas e todo aquele que contribui nesse sentido será fartamente recompensado, pensei.

     Depois de duas tentativas, finalmente comecei a escrever o texto de orelha que me fora encomendado. Busquei dimensionar a obra, apontando o estilo refinado do escritor que por falta de domínio pleno da língua-pátria usava palavras comuns num tom admiravelmente coloquial. Claro que não entrei nesses detalhes, pois estaria disparando um tiro pela culatra. Pelo contrário, elogiei a objetividade das histórias recheadas de sábios ensinamentos que certamente seriam úteis aos leitores.

     Apesar da ironia, confesso que invejava aquele tipo de autor, que tinha a coragem de agradar a tantos oferecendo tão pouco de si. Eu, se quisesse, certamente teria feito um livro melhor, mas o que caracteriza o verdadeiro ghost writer é o dom de escrever como o cliente escreveria se soubesse lidar com as palavras.

      Resumi toda a ideia em apenas quatro parágrafos, buscando a devida objetividade que um texto deve ter para caber por inteiro no espaço da orelha sem entediar os leitores antes mesmo de começarem a ler a obra em questão. Uma vez concluída a apresentação, enviei-a por e-mail ao diretor-executivo, que respondeu prontamente, dizendo que não poderia ler naquele momento devido a um compromisso social no início da noite, mas que no dia seguinte daria suas impressões sobre meu primeiro trabalho como seu ghost writer.

      Como de costume, depois do expediente, fui ao bar da esquina e me sentei à mesa com os colegas de sempre para ouvir as fofocas do dia. A novidade – se bem que previsível – era o fato de a nova concubina do gerente de produção ter sido escolhida para me suceder na chefia do setor de comunicação interna. Aqueles que ali estavam me cumprimentaram pela promoção. O chefe do marketing, erguendo-se da lama na qual parecia sempre estar chafurdando, propôs um brinde e desejou-me boa sorte na nova e desafiadora função.

      Em seguida, ele confessou já ter escrito textos que foram assinados pelo diretor-executivo e disse ainda ter aprendido na prática o quanto era difícil traduzir o ponto de vista daquele homem em palavras impressas e de fácil entendimento. Não respondi a tal provocação. Como sempre fazia nessas ocasiões, limitei-se a assentir com um sorriso idiota, ciente de que tudo o que dissesse ali poderia se voltar contra mim, já que um dentre nós espionava o grupo a serviço do gerente de produção e não vacilaria na tentativa de prejudicar minha imagem junto aos nossos superiores.

     Se a cusparada na cerveja do produtor de televisão que me devia dinheiro havia motivado minha promoção, eu diria que isso foi um tiro no pé do informante, pois certamente ele havia revelado detalhes do infame incidente na leviana intenção de me prejudicar. Eu sequer desconfiava e jamais saberia o nome da abjeta figura, mas tinha certeza que se tratava daquele tipo de pessoa que tem a inveja como virtude e a dissimulação como arte.

 

  

                                                     IX

      Minha receita de prefácio ou orelha de livros é relativamente simples, eu diria. Em primeiro lugar, o autor de tal heresia literária deve superar o sentimento de inveja com relação ao escritor em questão, caso reconheça alguma qualidade no seu texto. Do contrário, quando se trata de leitura enfadonha e sem originalidade, é recomendável identificar e exaltar qualidades – por pior que seja o estilo – e jamais apontar seus defeitos. Um prefácio deve ser apenas uma apresentação e nunca de fato uma análise crítica da obra, tema este que eu poderia abordar em momento mais oportuno.

     Aquele que escreve prefácios ou orelhas jamais deve se colocar na posição de juiz da obra apresentada, e sim no lugar de um bispo cujo anel os fiéis ou vassalos serão tentados a beijar em sinal de reverência e admiração.

     Enquanto escreve sobre a obra alheia, recomendando-a aos leitores desatentos e por isso mesmo enaltecendo os predicativos do seu respectivo autor, o prefaciador ou orelhista – se preferirem – deve ser isento quanto ao julgamento, deixando essa tarefa reservada aos defensores de teses literárias. Isso porque não fica bem para o seu ego mesquinho reconhecer talento em alguém que cedo ou tarde poderá se tornar um competidor no estreito mercado editorial.

     Por outro lado, não seria de bom alvitre menosprezar um autor iniciante ou se recusar a escrever a apresentação do seu livro, pois esse ato pode colocar o prefaciador entre seus detratores e adversários estéticos. Portanto, o ideal é dizer que o tal livro é quase uma obra-prima, mesmo que esteja longe disso. Estando perto de sê-lo, é recomendável nunca reconhecer nele tanto valor, pois com isso o orelhista desvia a atenção dos leitores da própria obra ou transforma o outro numa sombra que poderá ofuscá-lo por demasiado tempo e, naturalmente, isso lhe sufocará o ego, despertando-lhe o corrosivo despeito. Sim, porque a inveja é a ferrugem do ego e ai daqueles que não souberem controlar tal sentimento, já que eliminá-lo de vez exigiria um esforço sobre-humano.

     Sem querer ofender os colegas de escrita, eu diria que o verdadeiro prefaciador ou orelhista deve ser de natureza pusilânime, o tipo que morde e sopra ao mesmo tempo – barata kafkiana –, sendo incapaz de reconhecer a própria incapacidade de dizer que o texto alheio é uma obra-prima ou covarde o bastante para não afirmar que se trata apenas de uma indigesta sopa de letrinhas sem o devido tempero estético.

     O prefácio ou texto puxão de orelha deve funcionar muito mais em favor de quem o escreve – tipo um holofote a lançar luzes sobre sua própria obra, como quem diz “sou tão bom, talentoso e solidário que me dou ao luxo de reconhecer e apontar vocações à minha volta”. A melhor maneira de cooptar o prefaciado, convertendo-o em leitor de sua obra caso ainda não o seja, é amaciando-lhe o ego com palmadinhas amistosas, como quem diz você não é exatamente um gênio, mas se continuar dando duro nas palavras e tiver um pouco de sorte um dia poderá chegar perto de Hemingway.

      Eu me sentia um sortudo por saber tudo isso sem nunca, jamais em tempo algum, ter assinado um prefácio ou texto de orelha, embora a partir daquele momento devesse escrevê-los sob encomenda, ainda que esporadicamente. Por isso mesmo não fiquei nem um pouco surpreso ao receber, no dia seguinte, pouco antes do almoço, um e-mail do diretor-executivo dizendo-se satisfeito com a apresentação de A garça e o voo da garça e afirmando que aquele texto que ele assinaria com prazer marcava a minha estreia com o pé direito na função de ghost writer da firma.

     E olha que alguém já havia me dito que o homem costumava ser comedido nos elogios aos funcionários, pois não queria que se sentissem merecedores de promoção ou de aumento salarial. Aprendera com o pai que a melhor filosofia para os negócios era fazer com que todos os empregados se sentissem premiados pelo simples fato de trabalhar na firma e que outros até fariam isso de graça, apenas pela chance de enriquecer o currículo num mercado de trabalho no qual as oportunidades se tornavam cada vez mais escassas.

 

                            X

     A secretária do diretor-executivo adentrou a minha sala com um sorriso nos lábios de carmim e convidou-me para almoçarmos juntos, em comemoração à minha boa estreia na nova função. Fiquei duplamente surpreso, pois até àquele momento sequer havíamos trocado meia dúzia de palavras e eu jamais poderia supor que o e-mail enviado naquela manhã pelo chefão tivesse sido escrito por ela.

     Tal revelação me foi feita durante o nosso almoço, no restaurante mais chique das proximidades da firma. Os colegas pensavam que ela só se garantia na cama, mas na verdade era autora da maioria dos textos até então assinados ou pronunciados em público pelo diretor-executivo. Embora falasse muito bem, ele não levava jeito com os teclados, desde os tempos da máquina de escrever. Diziam até que havia tomado bomba num curso de datilografia, o que naturalmente serviu para criar certo trauma. Sua leitura predileta era o Cântico dos Cânticos, sobretudo os versos mais eróticos, que gostava de ler quando se deitava com ela, o que ocorria pelo menos uma vez a cada dez dias.

     Mulheres são úmidas e misteriosas, às vezes traiçoeiras, e essa constatação quase fez de mim um misógino. E se falo dessa sutileza é porque sempre li nas entrelinhas, não tanto pelo fato de ser escritor, mas por ter sido um bom leitor durante quase toda a vida. Não bastasse isso, sou filho de mãe que assassinou o pai por ciúmes e por medo de perdê-lo. Isso naturalmente influenciou meu comportamento com relação ao sexo oposto.

      A secretária do diretor-executivo estava emitindo sinais, feito quem avisa amigo é, como um cão que urina no poste para demarcar território. Ao revelar sua intimidade com o chefe, ela dizia nem vem que não tem, você pode ser o ghost writer, o homem dos textos bem escritos, talvez o melhor escritor da cidade, mas é comigo que ele se deita. E aquilo começou tão logo ela fora admitida na firma, havia mais de uma década, em substituição à secretária anterior, que simplesmente abandonara o cargo sem deixar vestígios. 

     O cruel dessa história é que naquele momento eu me senti excitado como há muito tempo não sentia. Acho até que nos meus 33 anos de vida – esta era a minha idade na época – nunca tivera uma ereção tão instantânea. E isso ocorreu enquanto saboreávamos o pudim de leite da sobremesa. Ela lambendo os beiços carnudos e brilhantes na minha frente, com aquele olhar de criança que pede colo. Senti-me como se tivesse sido atingido por um raio em meio a uma tempestade. Contradições humanas, eu cheguei a pensar. Ela temendo perder o status de autora das bobagens que o patrão assinava e eu ali, babando no seu decote, querendo simplesmente levá-la para a cama.

                                     XI

 

     Minha segunda tarefa na nova função foi redigir um discurso que o diretor-executivo deveria pronunciar no sábado à tarde, na presença do bispo da cidade, do governador, do prefeito e suas respectivas primeiras-damas. O autor de A garça e o voo da garça também estaria presente, pois além de conselheiro municipal ele era candidato a deputado federal pela terceira vez. Seria a inauguração de um parque na periferia da cidade, cuja obra havia sido patrocinada pela firma que, obviamente, seria beneficiada com descontos junto ao fisco, sem falar nas comissões do caixa dois, que já eram de praxe.

     Vivi parte da infância numa creche, enquanto minha mãe cumpria pena por ter amputado o membro do meu pai enquanto ele dormia bêbado ao seu lado. Aliás, ele morreu justamente em decorrência da hemorragia provocada pela amputação. Interrogada pela polícia e mais tarde pelo juiz sobre o ato tresloucado e desumano que havia praticado, ela alegou que o marido era um devasso e que estava cansada de ser traída sem nunca poder reivindicar prazeres ou um mínimo de respeito. O que mais comoveu os jurados é que ela pediu para guardar a parte amputada como lembrança do único homem que havia amado ao longo de toda sua vida.

     Numa primeira leitura, alguém há de pensar que uma história não tem nada a ver com a outra. Mas se não fosse pela tragédia que marcou minha infância, como eu poderia escrever um discurso tão sincero e verdadeiro partindo justamente do ponto de vista das crianças pobres que se beneficiariam do parque a ser inaugurado?

     Assim, carreguei na tinta, procurando valorizar mais a emoção do que a razão dos ouvintes. Comecei contando a história da criança que cresce à margem da sociedade, sem o colo da mãe ou o ombro do pai, vendo os meninos ricos cheios de mimo e conforto enquanto ao seu redor tudo é só miséria, violência e a mais terrível solidão.

     O diretor-executivo podia não saber escrever os próprios discursos, mas com certeza teria sido um bom ator se tivesse se dedicado aos palcos. Como poucos oradores, ele sabia arrancar das palavras pronunciadas seu verdadeiro sentido, como quem degusta cada sílaba no ato da fala. Para encurtar conversa, fiquei comovido ao final do discurso, quando percebi que metade das madames presentes à inauguração do parque chorava convulsivamente.

     Até mesmo o jovem governador, cuja fama era de playboy frio e calculista, soluçava no momento de cortar a fita inaugural. E olha que ele já havia respondido a um processo criminal por porte ilegal de arma de fogo e por desvio de verbas da merenda escolar nos tempos em que era prefeito da capital.

     Logo após esse ato de significância política, já que as eleições estavam próximas, o diretor-executivo e sua esposa foram calorosamente cumprimentados pelos presentes e se dirigiram em companhia deles ao palácio do governo, onde puderam se regalar com um banquete custeado pelos patrocinadores da obra inaugurada. Obviamente que não fui convidado, mas soube dos detalhes pelo anão da escarradeira, que havia se revelado um bom colega de trabalho. Na condição de fiel escudeiro do diretor-executivo, ele havia comparecido ao banquete e se deliciado com as sobras da mesa.

 

                                  XII

 

     Mesmo em tempos pouco favoráveis, a firma voltou a progredir, embora o discurso oficial devesse sempre ressaltar as dificuldades financeiras com o objetivo de sensibilizar o público interno. Nesse sentido, conquistei ainda mais a admiração e o respeito do diretor-executivo, graças ao editorial do house organ no qual ressaltei os reflexos da crise internacional que afetavam diretamente as nossas exportações.

     Aqui já posso dar uma pista da natureza dos negócios da firma. Um dos artigos de nossa linha de produção de maior sucesso era carne de cachorro enlatada, que havia conquistado o exótico paladar de consumidores orientais. A matéria-prima era farta, já que no segundo mercado do planeta em artigos destinados a pequenos animais era grande o número de cães abandonados nas ruas, principalmente durante as férias.

     Os donos achavam mais barato adquirir outros filhotes ao retornar de viagem do que custear um hotel para o bicho de estimação, cujas despesas incluiriam alimentação e consumo de produtos caros. Outro aspecto que estimulava tal comportamento era a novidade de se ter em casa um novo filhote a cada ano, uma vez que a convivência com o antigo cão alimentava um sentimento de tédio semelhante àquele que geralmente resulta das relações humanas demasiadamente prolongadas.

     Com olhos atentos nas oportunidades do mercado, a firma, que inicialmente fabricava rações para animais, havia adquirido exclusividade no patrocínio de serviços municipais de zoonoses, ficando com o produto dessa mesma atividade. Cães de todas as raças eram capturados por nossas modernas carrocinhas pelas ruas de várias cidades e transformados em comida do tipo exportação. Havia também as fazendas de criação e de engorda de labradores, filas brasileiros e outras raças de grande porte, sendo que toda a produção era destinada ao abate e congelamento em nossos frigoríficos. 

      Manipulações genéticas empreendidas em laboratórios garantiam a essas raças uma constituição física especialmente adequada ao consumo. A carne macia e de boa qualidade havia adquirido sabor adequado às exigências do consumidor oriental. Mesmo em território nacional, restaurantes finos vinham se especializando em pratos típicos à base de carne de cachorro, que tinham nosso produto como principal ingrediente. Chefs famosos e com programas na TV ensinavam apetitosas receitas sob o nosso patrocínio.

     Curiosamente, pratos com carne de gato não alcançaram o mesmo êxito e por isso a firma desistiu de investir nesse segmento. Outra tentativa que não prosperou foi o abate de bebês abandonados, matéria-prima muito farta em todo o país. A ação de órgãos de defesa do consumidor e entidades religiosas foi suficiente para vetar um projeto-de-lei que visava regulamentar o consumo desse tipo de carne. A falta de controle de qualidade e o risco de proliferação de doenças foram argumentos incontestáveis. Mesmo assim, corriam boatos de que a produção clandestina prosperava sob as barbas da lei, mediante o pagamento de propina a autoridades de saúde pública e da fiscalização sanitária.

     O investimento perdido junto aos lobistas na vã tentativa de legalizar a carne de recém-nascidos poderia ser um bom motivo, mas foi aos gatos que atribuí – no editorial do house organ – a culpa das perdas financeiras que a firma havia sofrido no semestre anterior. Em decorrência do fracasso de tal investimento e também devido à queda nas exportações da carne de cachorro motivada pela crise internacional, seria impossível permanecer em atividade sem realizar cortes drásticos nas despesas orçamentárias, o que poderia – vejam bem, “poderia!” – resultar em reduções salariais principalmente nos setores nos quais se desempenhavam funções não especializadas e sem a devida diplomação.

     A argumentação caiu feito luva naquele momento de pessimismo econômico e inspirou inclusive uma menção de apoio do próprio sindicado dos trabalhadores não diplomados. Mais tarde, a secretária do diretor-executivo confessou tê-lo visto com lágrimas nos olhos após a leitura do editorial que levaria sua assinatura.

      “Nosso ghost writer é um esgrimista das palavras”, ele teria comentado enquanto copulavam. Aliás, daquela vez, não leu para ela os versos bíblicos atribuídos ao rei Salomão, mas o editorial escrito por mim e isso lhe causou uma ereção acima do normal, como se tivesse ingerido a pílula azul que algumas vezes se recusava a tomar temendo sofrer um ataque cardíaco.

  

                                  XIII

  

     Nunca pensei em me casar ou constituir família, até porque não fazia mínima ideia do que seria isso. Como o personagem de Machado de Assis, não gostaria de transmitir a nenhuma criatura o legado da minha miséria. Tinha apenas quatro anos quando acordei na escuridão do quarto, ouvindo gritos horríveis vindos da alcova dos meus pais. Pulei da cama na tentativa de saber o que se passava, mas não consegui sair. Minha mãe havia trancado a porta do meu quarto pelo lado de fora justamente para que eu não assistisse à cena de terror que ela havia premeditado.

     Os gritos do meu pai se fizeram ouvir em todo o prédio e até hoje ecoam na minha memória. Não demorou muito para que vários vizinhos acorressem ao nosso apartamento. Ao presenciar a trágica cena – minha mãe aos prantos com a faca na mão e meu pai morto numa poça de sangue sobre a cama – o síndico ligou imediatamente para a polícia.

     Minha mãe foi presa em flagrante, julgada e condenada a doze anos de reclusão no presídio de mulheres. Mais tarde seria transferida para o manicômio judiciário, onde daria cabo da própria vida. Como não tinha ao alcance das mãos nada com que pudesse se matar, ela atirou o chinelo de dedo contra a luminária do quarto, derrubando do teto a lâmpada florescente que se espatifou no chão. Em seguida, usou um dos cacos para cortar os pulsos debaixo do chuveiro.

     Fui criado por uma tia, irmã do meu pai, que tinha por hábito me dar os seios, muito embora nunca tivesse amamentado. Aquilo durou até sua morte, quando eu tinha nove anos. Passei a adolescência numa entidade de assistência a jovens desamparados e tive a sorte de ter um frei capuchinho como mentor. Com ele aprendi que a vida é mais do que parece e que a morte deve ser encarada como um portal que nos levará ao infinito de nós mesmos.

     Graças àquele religioso cultivei o hábito da leitura, descobri o dom da escrita e me formei em Comunicação. O que eu não sabia é que ele era hemofílico, tendo sido contaminado por um vírus mortal durante uma transfusão de sangue. Más línguas disseram que ele era homossexual e que não se precavera em suas escapadas noturnas. Ao fazer 18 anos, vendi o apartamento que pertencera aos meus pais, investi o dinheiro no mercado de capitais e aluguei um loft num prédio de cinco andares, a seis quadras do centro da cidade.

     Meu depoimento comoveu a secretária do diretor-executivo. Quando dei por mim, ela estava em meus braços, com os olhos úmidos e a língua roçando o meu pescoço. Fizemos amor ali mesmo, em cima da minha mesa de trabalho. Onde se ganha o pão também se pode comer a carne, quem disse o contrário? Só não foi melhor porque fiquei preocupado com os seus gemidos. Não sabia se me entregava completamente ou se tapava sua boca para evitar que alguém a ouvisse do outro lado da porta.

 

                                  XIV

  

     O arquivo morto da firma ficava abaixo do subsolo, num andar secreto do edifício-sede que pouca gente conhecia. Fora criado há vários anos pelo avô do diretor-executivo, quando ocupava esse mesmo cargo, antecedendo ao filho e ao neto. Na verdade, o acervo era de pouca serventia, sendo mantido mais por razões sentimentais do que práticas. Pouca gente admitia, mas seu objetivo era dar ocupação a antigos funcionários que, por motivos especialíssimos, não poderiam ser demitidos ou transferidos a outros setores.

     O próprio avô do diretor-executivo – popularmente chamado de Patriarca – havia terminado seus dias naquele labirinto, sendo encontrado em adiantado estado de decomposição uma semana depois de ter sofrido um aneurisma. Ali permaneciam funcionários que devotaram toda a vida aos interesses da firma desde seus primeiros anos de serviço, quando ainda era possível fazer do trabalho uma extensão da própria casa.

     Os veteranos ali lotados eram popularmente conhecidos como os 12 pares de França, sendo este o apelido da avó do diretor-executivo, uma francesa que se dizia descendente de Maria Antonieta. Foi ela quem os indicou ao marido, tendo sido amante de alguns deles, cujas idades agora variavam dos 70 aos 81 anos, sendo que o mais velho ingressara na firma aos 18. Tanto devotaram a vida ao trabalho que perderam contato com o mundo exterior. Praticamente moravam no arquivo morto, sem saber onde viviam seus familiares – se é que ainda tinham família em algum lugar.

     Diante das exigências tecnológicas de modernização, a diretoria havia decidido informatizar todos os documentos da firma, inclusive aqueles que compunham o antigo acervo agora sem nenhuma utilidade prática. O planejamento estratégico também exigia o desligamento de funcionários improdutivos e dos mais antigos de casa.

     Na visão do RH, a firma precisava de sangue novo e barato para continuar alcançando bons resultados num mercado cada vez mais competitivo. O problema é que tal decisão batia de frente com a tradição iniciada pelo Patriarca e religiosamente mantida por seu filho e seu neto. Este se encontrava naquilo que a voz do povo costumava chamar de sinuca de bico – embora seu fraco fosse o bingo e não propriamente o bilhar.

     Demitir os 12 pares de França seria um ato desumano e poderia revoltar os demais funcionários, repercutindo negativamente também junto ao público externo. Afinal, os veteranos eram considerados patrimônio da firma e sabiam histórias suficientes para por na cadeia todos os membros da diretoria. Transferi-los também seria uma atitude impensável, pois não tinham mais serventia nem condições de se adaptarem à rotina de trabalho em outros setores da firma.

     A solução mágica foi proposta pelo gerente de produção, durante uma reunião com o estafe da empresa. Lá pelas tantas, ele coçou o cavanhaque grisalho, jogou a franja hitleriana para trás da cabeça e, com a frieza que lhe era peculiar, sugeriu que trancassem a porta do arquivo pelo lado de fora e alagassem o subsolo, afogando os 12 veteranos de uma vez por todas.

     Condôminos e diretores aprovaram a proposta com entusiasmo, menos o diretor-executivo, que não jogava no mesmo time do gerente de produção. Mesmo sendo voto vencido, ele fez questão de se justificar, alegando respeito à memória do avô. E assim, na segunda-feira seguinte, circulou a notícia de que uma inundação acidental ocorrida no final de semana havia colocado fim àquelas vidas tão nobremente devotadas à firma desde a sua inauguração pelo Patriarca.

      Quem me revelou os detalhes da trama foi o anão da escarradeira. Ele era o único subalterno que participava das reuniões de cúpula da firma. No momento das decisões mais graves, era convidado a aguardar do lado de fora, na anti-sala da recepção onde geralmente permanecia sozinho, pois os seguranças dos diretores aproveitavam a folga para tomar café na lanchonete ou dar uma volta no quarteirão. A curiosidade quase felina fazia com que ele grudasse o ouvido na porta e ouvisse segredos escabrosos.

     Na função de ghost writer, coube-me redigir a nota de falecimento que foi projetada nas telas de avisos eletrônicos e expedida via intranet a todos os funcionários da firma. Também tive que escrever o texto do emocionado discurso que seria proferido pelo diretor-executivo durante o velório. Em seguida, foi realizado um culto ecumênico de corpos presentes, em urnas devidamente lacradas que conduzidas por um caminhão dos bombeiros até o crematório municipal. Governador e prefeito também compareceram à cerimônia.

      As cinzas chegaram à firma ao entardecer, em 12 potes de louça branca com tampa dourada. O gerente de produção determinou que fossem espalhadas no jardim suspenso, que ficava contíguo à sacada do gabinete do diretor-executivo, tendo ao centro o busto do Patriarca moldado em bronze. Mesmo depois de mortos, os veteranos continuariam de alguma forma presentes no cotidiano de todos nós.

     Também expedi nota oficial à imprensa local, informando o lamentável acidente e os detalhes da cerimônia de adeus. Escrevi ainda a homenagem publicada na edição especial do house organ que circulou dois dias depois, contendo o emocionado depoimento de pêsames do diretor-executivo e de seu pai aposentado, que trabalhara com os 12 pares de França ainda nos tempos do Patriarca. Procurei resumir a trajetória daqueles homens, cuja vida deveria servir de exemplo às novas gerações de empregados da firma. 

 

                                                       XV

   

     Com tantas atividades em minha nova função, todas elas desempenhadas com eficiência e profissionalismo – modéstia às favas – parece natural que tivesse conquistado plena confiança e admiração do diretor-executivo. Tanto isso é verdade que certo dia, para minha surpresa, eu fui convocado a comparecer em seu gabinete. Ele me indicou a cadeira desconfortável em frente à mesa. Antes de me sentar, pude ver o anão da escarradeira quieto no seu canto, perto do elevador privativo.

      – Você já deve ter notado que o elogio é artigo de luxo na nossa política administrativa – disse o diretor-executivo. – No entanto, sou forçado a abrir uma honrosa exceção para você, meu jovem. Seu trabalho tem agradado não só a mim, mas a todos os diretores da firma. Até mesmo o gerente de produção, que é o mais exigente, confessa que está surpreso com os textos de sua lavra.

     – Agradeço o reconhecimento – suspirei, comovido.

     – Como toda pessoa, tenho muitos defeitos e você já deve ter notado alguns – parou para cuspir na escarradeira posicionada ao lado da mesa. – Contudo, sempre cultivei a virtude do reconhecimento. E devo dizer que reconheço seu esforço e sua competência.

     – Obrigado...

    – Gostaria de poder fazer algo em seu favor, que não seja um aumento salarial, naturalmente.

     – Ainda é demasiado cedo para isso.

     – Exatamente... Gostaria de saber o grave motivo pelo qual você cuspiu no copo de cerveja do tal grandalhão, naquela noite no bar da esquina.

     – O senhor ainda se lembra disso?

    – E por que haveria de esquecer? Foi um ato destemido que chamou a nossa atenção... Eu gosto de pessoas corajosas.

    – Na verdade, ele me devia dinheiro – expliquei. – Aliás, ainda deve... Há alguns meses escrevi um roteiro sob sua encomenda e ele não me pagou o cachê combinado.

     – Um roteiro?

     – Um texto de ficção para a emissora de TV na qual ele trabalha.

    – Sei – disse o diretor-executivo, dando outra cusparada na escarradeira.

    – O programa foi ao ar durante o carnaval e desde então ele passou a me ignorar. Naquela noite, perdi a cabeça. Não tanto pelo dinheiro, mas pela falta de caráter do devedor.

     – Caráter! Eis uma palavra bonita, mas cada vez mais fora de uso... Como um sinal de reconhecimento pela qualidade do seu trabalho na função de ghost writer, eu vou soltar meus cachorros atrás desse produtor de merda.

     – Não é preciso se preocupar.

     – Eu me preocupar? Quem deve se preocupar é ele. Não dou uma semana pro seu dinheiro aparecer.

     A conversa parou nesse ponto, quando o telefone tilintou e o diretor-executivo fez sinal para que eu me retirasse. Saí do gabinete pensando nos rumos da nossa conversa, enquanto ele atendia a ligação. O anão e a secretária já haviam me falado de sua obstinação. Era do tipo que, quando desejava alguma coisa, seria capaz de tudo para obtê-la.

     Aqueles aos quais ele chamava de seus cachorros eram sujeitos da pesada e o produtor de televisão deveria se cuidar a partir daquele momento. Cheguei a temer por sua vida, pois mesmo tendo motivos para odiá-lo – e eu o odiava por não suportar gente aproveitadora –, gostaria de não ter que carregá-lo na consciência.

    Ao voltar à minha sala, telefonei para a TV na intenção de pedir a ele que quitasse a dívida antes que o pior acontecesse. Não poderia explicar os detalhes, mas diria que um detetive particular que morava no meu prédio poderia visitá-lo qualquer dia para cobrar a dívida pessoalmente, usando métodos pouco ortodoxos.

     A recepcionista atendeu, pediu um momentinho e em seguida se desculpou dizendo que o produtor estava numa reunião a portas fechadas com a equipe de trabalho. No entanto, garantiu que ele retornaria a ligação até o final da tarde, o que naturalmente não ocorreu. Sua alma sua palma, resmunguei como Pilatos no credo, ao deixar a firma no início da noite.

     Dois dias se passaram e, para minha surpresa, a gerente do banco me telefonou avisando que havia sido depositada uma boa quantia na minha conta. Queria saber se eu gostaria que o dinheiro fosse aplicado como de praxe, no sentido de evitar as perdas decorrentes da desvalorização da moeda. Pedi a ela pra fazer a aplicação que fosse mais rentável e novamente telefonei para a emissora de TV, tentando falar com o tal produtor, dessa vez na intenção de agradecê-lo por ter quitado a dívida. Senti um arrepio ao ser informado pela recepcionista que ele estava hospitalizado devido a um acidente ocorrido havia dois dias.

     – Acidente? – exclamei.

    Ela informou que o produtor havia sido atropelado, mas que felizmente fora socorrido a tempo e estava fora de perigo.

 

                                                   XVI

 

     Na sexta-feira, sabendo que o diretor-executivo havia ido vistoriar as fazendas de produção da firma, no interior do estado, aproveitei a folga para dar uma escapada. Chamei um táxi pelo celular e fui visitar o produtor de televisão no hospital onde estava internado.

     Comprei algumas frutas numa banca ali perto, identifiquei-me na recepção e subi a rampa até o quinto andar, onde ele se encontrava de cama num pequeno apartamento. Seu olho direito estava roxo e na orelha esquerda havia um curativo no lugar do brinco de argola, que fora brutalmente arrancado. Seus braços estavam enfaixados e a perna direita engessada, presa ao teto por um sistema de roldanas.

     Assim que entrei no quarto, ele fixou os olhos em mim, mas permaneceu em silêncio. Perguntei se doía muito e ele apenas assentiu. Disse que lamentava o ocorrido e pedi detalhes sobre o acidente.

     – Você sabe que não foi acidente – ruminou, revelando dificuldades na articulação.

     – Como assim, o que aconteceu de fato?

    – Assim que saí da emissora, ao anoitecer, dois brutamontes me arrastaram para dentro de uma van preta com vidros fumê. Eles me encheram de pancada, enquanto o carro se mantinha em pleno movimento. Disseram que aquilo era pra eu aprender a quitar as minhas dívidas. Jogaram-me num terreno baldio à beira da rodovia e avisaram que se não depositasse o seu dinheiro nos próximos dias, não viveria para contar a história.

     – Nem sei o que dizer – suspirei, envergonhado.

    – Diga apenas que nunca mais vai cruzar meu caminho. No que depender de mim, jamais nos conhecemos.

    – Mas eu não tive nada a ver com isso – argumentei.

    – Imagino que não. Vai ver que eram cobradores a serviço do seu banco e adivinharam que eu estava lhe devendo.

    – Mais que isso, eu não posso dizer – repliquei. – Sinto-me envergonhado, mas garanto que foi um mal-entendido.

    – Já tem seu maldito dinheiro. Pode fazer o favor de me deixar em paz?

    Realmente, eu não sabia mais o que dizer. Deixei o pacote de frutas sobre a mesa de cabeceira e saí do apartamento na certeza de ter perdido um cliente em potencial.

 

                                                     XVII

 

     Alguém já deve ter dito que a blasfêmia é uma forma de oração, pois quem não crê em Deus não haveria de perder tempo provocando Sua ira. Eu diria que a blasfêmia é a mais sincera das orações, pois geralmente brota do fundo da alma em momentos de fúria e revolta, enquanto a reza é quase sempre proferida mecanicamente, em rituais ensaiados, cheios de palavras bonitas, vazias de sentido e sentimento.

     Entre a blasfêmia e a reza sou mais a primeira, pois se fosse Deus sentiria desprezo pelos aduladores e desejaria – a todo custo – conquistar aqueles que me desafiassem com sinceridade. Na mitologia, como num poema de Bráulio Tavares, cada homem faz um deus à sua imagem e semelhança. “Se me perguntassem se acredito em Deus, eu diria que isso não importa, contanto que Ele acredite em mim”.

     Lembrei dessa passagem de A garça e o vôo da garça no momento em que saí do hospital, pois tive a estranha sensação de que Deus havia perdido a fé nos homens. Em vez de rezar, blasfemei. Não contra Ele, mas contra mim mesmo, por ter sido tão ingênuo. Ao merecer aquele favor do diretor-executivo, eu havia empenhado a própria alma, criando um elo de cumplicidade do qual não conseguiria me livrar facilmente. Aquele podia ser um jogo perigoso, um jogo cujas regras eu ainda ignorava.

     Depois do almoço, ao perceber meu estado de espírito assim que saí do elevador, a secretária do diretor-executivo quis saber o que havia acontecido. Contei tudo em detalhes e sua reação foi de extrema naturalidade, no sentido de me tranquilizar. Disse que o chefe costumava agir daquela forma, colocando seus préstimos a serviço das poucas pessoas nas quais confiava. Era o jeito que ele tinha de retribuir a lealdade e eu não deveria me preocupar. E confidenciou-me que seu ex-namorado havia tentado extorqui-los ao descobrir que mantinham um caso. Depois de levar uma prensa, nunca mais deu as caras. Ao ouvir isso, senti um frio na barriga.

     Naquela noite, não fui ao bar da esquina para encontrar os colegas e ouvir as fofocas de sempre. Até porque, dispunha de uma nova história, que não gostaria de contar a ninguém. Fui direto para casa, incomodado com o que estava sentido nas últimas horas. Afinal, eu deveria ser grato ao diretor-executivo por ter providenciado um castigo justo para o meu devedor. Em vez disso, sentia-me arrependido e envergonhado por ter recebido em tais condições o dinheiro que o tratante me devia.

     Diante de tal sentimento, deduzi que não tinha jeito para vencer na vida e que jamais me daria bem na firma. Conviver com a cúpula me causava náuseas e ansiedade, mas não seria fácil mudar de emprego naquela altura do campeonato. Primeiro que eu me sentia preso devido às circunstâncias e necessidades, segundo que o mercado não estava para peixe pequeno, pois exigia profissionais ambiciosos e sem escrúpulos.

 

                                    XVIII

 

   

     Havia um sonho recorrente que me perseguia desde a infância, toda vez que eu me sentia pressionado. Sonhava que estava num cômodo escuro, no alto de uma escada de armar, tentando trocar a lâmpada que ficava no meio do teto. Em dado momento, um dos meus pés escorregava do degrau e eu caía em câmera lenta, como numa cena de filme de suspense, batendo de bruços no chão.

     A sensação que vinha a seguir era de afogamento, como se uma costela tivesse se partido e perfurado um dos pulmões, que começava a se encher de sangue. Acordava com falta de ar, a boca seca, a camiseta grudada de suor e um grito trespassado na garganta feito uma adaga afiada. Ao abrir os olhos e constatar que havia emergido do pesadelo, eu dava graças a Deus, mesmo sem saber direito se acreditava Nele ou Ele em mim.

     Naquela noite não foi diferente. Ao chegar a casa, tomei um banho, liguei a TV e fiquei zapeando em busca de alguma novidade. Como sempre, filmes repetidos, crocodilos engolindo veados, baleias se acasalando no Mar do Ártico, cenas de sexo explícito e um antigo desenho dos Simpsons.

      Fui para a cama, demorei a pegar no sono e, quando consegui entrar em alfa, comecei a subir a tal escada no cômodo escuro. Não, de novo não, escutei minha voz num murmúrio. E pela primeira vez, mesmo dormindo, tive a certeza de que tudo não passava mesmo de um pesadelo tão repetido quanto à velha programação dos canais a cabo.

     Tentei resistir ao impulso de continuar subindo, mas uma força interior me impelia para o alto como se eu fosse Jacó finalmente subindo aos céus. Estava descalço e podia sentir o contato dos degraus frios de metal na sola dos pés. Nesse momento, ouvi um barulho distante, uma campainha de celular insistente, e abri os olhos no escuro do quarto com a sensação de não saber exatamente onde estava.

     O telefone tilintava sobre a mesa de cabeceira. “Quem será numa hora dessas?”, resmunguei, conferindo o número desconhecido. Atendi e me surpreendi com a voz do outro lado. Era a secretária do diretor-executivo, perguntando se eu estava bem. Confessou que estava pensando em mim e que por isso mesmo estava com os dedos molhados, pois havia acabado de se masturbar.

 

                                            XIX       

                                Os livros amarelaram na estante,

                                As flores murcharam nos vasos,

                                Os frutos apodreceram no chão.

                                Mas o cadáver da moça

                                Que um dia enterrei no jardim

                                Até hoje não brotou.

     Só memorizei essa parte do horrível poema que me foi mostrado pelo diretor-executivo, na manhã chuvosa do dia seguinte. Antes de entrar em minha sala, havia sido avisado pela secretária que ele estava me aguardando em seu gabinete. Assim que me viu, fez sinal pra que eu fechasse a porta e me sentasse na cadeia em frente à mesa. Olhei em volta e lá estava o anão da escarradeira em seu canto, como um fiel cão de guarda à disposição do dono.

     O diretor-executivo tirou de uma gaveta uma folha de papel ofício amarelada pelo tempo e manuscrita com esferográfica preta.

     – Leia isso em voz alta – ordenou.

     – Não fui eu que escrevi – defendi-me assim que terminei a leitura e confesso que estava surpreso com a situação.

     – Acha tão ruim assim? – perguntou ele, enquanto acendia um charuto.

      – Não, pelo contrário – gaguejei. – É um belo poema.

      – É de minha lavra – disse o diretor entre baforadas, num tom infantil de autosatisfação, e depois cuspiu na escarradeira ao lado da mesa. – Queria saber sua opinião.

      – Bem – comecei –, não sou crítico literário, mas posso dizer que gostaria de tê-lo escrito.

       – Tá brincando?!

      – Não, é a pura verdade – pigarreei. – Raramente escrevo poemas. Sempre tive mais facilidade com a prosa. De certa forma, eu invejo os poetas.

       – Comecei a fazer poemas na juventude, enquanto cursava a Faculdade de Direito.

        - Então o senhor é advogado...

        – Nunca exerci a profissão, mas precisava de um curso superior, para quando chegasse minha vez de assumir a direção da firma. Sabe como são as aparências. Um diploma nos dá mais status e ares de autoridade.

        “Um homem de olho no futuro”, disse comigo mesmo.

        – Esse foi o último que escrevi, já faz mais de dez anos. Mas me diga se tem mesmo algum valor, se eu levo jeito pra coisa.

       – Eu diria que se continuasse escrevendo assim, realmente o senhor não precisaria dos serviços de um ghost writer.

        – Que é isso, rapaz, tá querendo me puxar o saco? – exclamou ele, cuspindo novamente na escarradeira depois de dar outra baforada no havana.

       – A poesia é a arte da concisão e esse texto está redondo, objetivo, eu diria.

      – Eu rabiscava muita coisa antigamente, mas nunca fui organizado – explicou. – Escrevia em folhas soltas, como essa daí, e muitas se perderam. De vez em quando, para minha surpresa, encontro uma delas nos lugares mais improváveis. Essa estava entre as minhas cuecas, acredita? Achei no fundo da gaveta, enquanto fazia a mala para a viagem de vistoria às fazendas da firma, no início da semana.

       O telefone tilintou e ele atendeu antes mesmo de se fazer ouvir o segundo toque. Em seguida, previsivelmente, fez sinal para que eu me retirasse. Era o prefeito querendo tratar de assunto urgente e do interesse da firma, cochichou com a mão no bocal, acrescentando que numa hora mais apropriada voltaríamos a conversar sobre as belas letras.

      Saí do gabinete estrategicamente, deixando a folha amarelada sobre a mesa. Ele a recolheu de volta à gaveta, num gesto rápido com a destra, como se não pretendesse que outra pessoa lesse o que estava escrito.

                                     XX

 

  

     A lista de demissões não era apenas boato, como chegaram a acreditar alguns colegas que frequentavam a nossa mesa no bar da esquina, depois do expediente. A bomba explodiu numa quinta-feira, causando grande alvoroço.

     Cento e cinquenta nomes em ordem alfabética foram cortados sumariamente da folha de pagamento. A maioria funcionários antigos, de setores que vinham se tornando obsoletos devido aos milagres da tecnologia implantada pelo gerente de produção. Se a mecanização continuasse naquele ritmo, brevemente ele estaria levando máquinas para sua cama, pensei.

     Como sempre ocorria nessas ocasiões, cada um dos dispensados recebeu uma cartinha padrão de quatro linhas assinada pelo gerente de RH, comunicando que a partir daquela data estava dispensado de suas funções e que a firma agradecia pelo tempo e pela lealdade dedicados a ela. Como era de se esperar, houve prantos e rangeres de dentes. Teve gente que desmaiou, mas ninguém morreu. Afinal, como constava da última linha da tal correspondência padronizada, já era do conhecimento de todos que nenhuma tarefa, por mais nobre e especializada que fosse, duraria para sempre.

     Na semana seguinte, quase nenhum de nós – os sobreviventes – fazia qualquer referência aos ex-colegas. Por sua vez, a maioria daqueles que perdiam o emprego simplesmente sumiam da firma e também de nossas vidas. Era como se nunca tivessem existido. A dura rotina contribuía consideravelmente para a alienação dos trabalhadores e a vida seguia seu curso, com a linha de produção cada vez mais acelerada devido a um novo contrato de exportação, assinado com um consórcio de empresas orientais.

      Negócio da China, disse comigo mesmo, enquanto escrevia o editorial da edição extra do house organ que seria assinado pelo diretor-executivo. Na mensagem a ser impressa em nome de toda a diretoria, ele justificava as demissões, tranquilizava os sobreviventes e anunciava – com grande satisfação – a abertura de novos mercados para os nossos produtos. Isso representaria altos lucros para o condomínio de acionistas, garantindo trabalho para os empregados que escaparam da degola.

      Quem não gostou das demissões foi o governador, que no dia seguinte telefonou para o diretor-executivo dizendo que não gostaria de dar palpites nos negócios da firma, mas que tantas dispensas num ano eleitoral poderiam prejudicar os interesses do partido. O diretor-executivo viu-se numa saia-justa, pois – fiquei sabendo mais tarde pelo anão da escarradeira – ele havia se filiado à legenda do governo na intenção de se candidatar a uma vaga no Senado. Portanto, seria recomendável que adotasse um comportamento submisso e pragmático para o próprio benefício.

      A decisão de se tornar político fora estimulada pela esposa, que não via sentido nas doações de campanha feitas pela firma quase todo ano, uma vez que ela própria poderia lançar candidatos aos cargos que lhe fossem mais vantajosos. Além de engordar a receita familiar, o diretor-executivo – se eleito fosse – receberia sinal verde dos eleitores para defender interesses privados e, consequentemente, aumentar a própria fortuna.

      Já era de praxe na vida pública que os políticos fizessem do cargo um poleiro no qual lhes eram dados plenos poderes para cantar de galo toda vez que se sentissem ameaçados pela demagogia da imprensa ou pelo moralismo dos eleitores. Estes, mesmo elegendo candidatos com os quais tanto se assemelhavam, não perdiam a mania de culpar a classe política pelo agravamento dos problemas nacionais, entre os quais o clientelismo, o nepotismo e a corrupção institucionalizada.

     Não demorou muito, fui novamente chamado ao gabinete do diretor-executivo, que me incumbiu de redigir um ofício que seria enviado por e-mail ao governador e às lideranças partidárias detalhando as urgentes razões que teriam motivado as 150 demissões ocorridas na firma. Mais uma vez usei o meu talento de manipulador das palavras, procurando os termos que melhor se ajustassem à ocasião. “O problema do país é a falta de objetividade dos nossos políticos”, comecei. “A república necessita de homens destemidos o bastante para tomar decisões drásticas em favor da coletividade, doa a quem doer.”

     Em outras palavras – dizia o texto de minha lavra – “as demissões na firma foram executadas como a cirurgia que extirpa um tumor com o nobre objetivo de preservar a vida do organismo, ainda que tal decisão implique em alguns riscos”. Se eleito fosse, o novo senador estaria disposto a varrer da vida pública todos os aproveitadores – inclusive funcionários não-concursados –, ainda que arriscasse perder o próprio mandato logo em seguida. Uma vez eleito para servir à nação, seu primeiro compromisso seria tratar a coisa pública como privada, cujo objetivo principal é obter lucros cada vez maiores.

    Mais que um simples ofício, dessa vez o texto que redigi foi adotado pelo diretor-executivo como lema de campanha. Emocionado no final da leitura, disse-me que aqueles seriam os termos que moldariam seu discurso e sua conduta política a partir daquele momento, sempre com o nobre objetivo de ludibriar os eleitores e garantir alianças políticas.

     No dia seguinte, tal não foi minha surpresa em saber que o próprio governador e algumas lideranças partidárias haviam cumprimentado efusivamente o nobre candidato por sua coragem, reconhecendo nele as qualidades do homem ideal para disputar uma das vagas de senador pelo nosso estado.

                                     XXI

     O medo e o ódio, quando bem administrados, são os sentimentos propulsores do progresso. Os diretores da firma sabiam disso. Tanto que, logo depois dos expurgos, prevalecia no ambiente de trabalho um clima no qual era possível detectar a presença quase material desses dois sentimentos. Os demitidos passavam a alimentar ódio e desprezo pelos antigos chefes e patrões – quando não pelos colegas que permaneciam no emprego. Estes, por sua vez, sentiam tanto medo de ter o nome incluído na próxima lista de dispensa que até melhoravam o desempenho nos dias que se sucediam à degola. Maquiavel não faria melhor!

     Quem me chamou atenção para esse fato incontestável, numa de suas raras passagens por nossa mesa no bar da esquina logo após as demissões, foi o gerente de RH. Justamente por saber manipular sentimentos tão primitivos é que ele permanecia no cargo havia muitos anos, recebendo um gordo e invejável salário. Quando o chefe de marketing e propaganda, assumindo sua postura marxista, perguntou se ele dormiria em paz naquela noite, simplesmente sorriu e pôs na boca um cigarro – que o chefe do setor de informática acendeu prontamente com seu isqueiro prateado.

      Em seguida, o gernte de RH exalou a fumaça da primeira tragada, chamou o garçom, pagou  dose de vodca que havia consumido e, antes de se retirar, confessou que já estava morto se sono.

       - Sou fã desse cara - grunhiu o chefe do setor de vendas.

       - O que eu mais admiro nele a  objetividade. O sujeito é um craque em Matemática - tatamudeou o chefe da contabilidade.

       - Sabe vender o próprio peixe - ruminou o chefe do setor de vendas, acrescentando que era capaz de discernir um bom vendedor pelo olhar de rapina.

       - Ele é muito charmoso, isso sim - guinchou a chefe do setor de compras, com ares de fêmea no cio.

       - Permaneci calado, como sempre, temendo me comprometer. Afinal, entre a fauna de frequentadores de nossa mesa haveria de estar o informante da firma, aguardando o momento de ligar para o gerente de produção para relaltar os detalhes da conversa. E fazia isso com requintes de esccrivão, como se lavrasse a ata de uma reunião oficial a ser registrada em cartório.

                                  XXII

   

     Como podem perceber aqueles que suportaram o presente relato até aqui, a coisa foi esquentando na medida em que o tempo avançava. E devo confessar que naquela época vivia-se a sensação de que o tempo corria numa velocidade acima do normal, o que fazia com que os ponteiros do meu relógio girassem cada vez mais depressa.

     Alguns acreditavam que tal sensação decorria do estresse do dia a dia, já que o tempo dos relógios e calendários seria apenas uma abstração, fruto da necessidade humana de se orientar. No entanto, havia cientistas que suspeitavam de uma defasagem no espaço-tempo, alegando tratar-se da Ressonância Schumann, tese sobre supostas alterações na pulsação eletromagnética da Terra.

     Roubei a explicação de um ensaio que redigi a pedido de um professor de Física. Contudo, como essa matéria nunca foi o meu forte, eu preferia supor que estávamos todos tão ocupados em sobreviver que já não dispúnhamos mais de tempo para viver.

     Seja lá como for os fatos foram se atropelando. De uma hora para outra, passei a redigir discursos sob encomenda do comitê de campanha do nosso candidato ao Senado. Este fazia dobradinha com o autor do livro A garça e o voo da garça, concorrente a uma vaga na Câmara Federal. E cada um dos discursos funcionava como mel na boca do diretor-executivo, que graças à vocação inata para a arte teatral conseguia arrancar de cada termo o significado mais exato.

     Plateias de potencias eleitores se inflamavam nos comícios, motivadas por seu apelo em favor dos pobres e em nome da moralidade pública. Nossa palavra de ordem era “não”. Não ao nepotismo, não à corrupção, não ao clientelismo – vícios políticos que tanto mal causavam ao país desde os tempos da colonização.

     Moralidade era a nossa bandeira e o povo acreditava tanto nisso que as pesquisas eleitorais indicavam a vitória do diretor-executivo com grande vantagem sobre seus adversários. Os discursos recebiam tantos aplausos que o próprio governador, então candidato à reeleição na mesma chapa, solicitou meus préstimos junto à sua assessoria. Não demorou muito, lá estava eu escrevendo discursos também para ele, que, embora não tivesse o mesmo carisma do nosso candidato ao Senado, conseguiu recuperar preciosos pontos nas pesquisas de intenções de votos encomendadas a peso de ouro.

     Meu salário havia dobrado de valor, pois ao saber que assessores de campanha da oposição haviam me sondado sobre a possibilidade de mudar de lado, o governador aconselhou o diretor-executivo a aumentar meus ganhos de ghost writer. E assim, pouco a pouco, fui conquistando a confiança e o respeito dos poderosos de plantão. Um tipo de gente que jamais teria notado minha insignificante presença no mundo, não fosse pela minha sorte de saber escrever as palavras certas, nos lugares certos, nos momentos certos, mas para pessoas erradas.

     Em algumas reuniões do comitê de campanha, ouvi conversas indiscretas que preferiria ignorar. Dinheiro não era problema, pois empresas e sindicatos faziam consideráveis doações aos candidatos do grupo político que estava no governo havia muito anos. Tínhamos também recursos de origem duvidosa, desvio de verbas e propinas que rolavam em processos licitatórios de obras públicas. Esse era o problema da reeleição num país socialmente desorganizado. Político que se preza faz qualquer coisa para continuar no poder. Mesmo sabendo de tudo isso, eu fingi que nem era comigo, pois a tarefa do ghost writer é escrever e não questionar os clientes ou a maneira como conseguem recursos.

     O melhor daquele período eleitoral é que a secretária do diretor-executivo ficou liberada de suas obrigações, já que na condição de candidato ele não mais dispunha de tempo para se deitar com ela tanto quanto antes. Sua agenda de campanha estava recheada de reuniões, viagens, comícios, almoços, jantares e outros compromissos. Seu gabinete na firma passou a ficar fechado, pois raramente ele aparecia no trabalho, preferindo resolver os eventuais problemas administrativos por telefone ou via internet.

     Com isso – bom lembrar que nada é perfeito – o poder do gerente de produção havia crescido consideravelmente. Mesmo não tendo ainda – ainda, vejam bem! – o status de diretor, ele havia se tornado praticamente o segundo homem na hierarquia da firma, principalmente devido a sua ambição, capacidade de dissimulação e falta de escrúpulos para alcançar seus objetivos pessoais.

      Com a proximidade das eleições, eu estava praticamente à disposição do partido. No entanto, sempre que possível, preferia trabalhar em minha sala na firma, enviando os discursos por e-mail. Aleguei um motivo real para isso, que era justamente a dificuldade de me concentrar em ambientes aos quais não estava habituado. Raramente conseguia escrever em locais que não fizessem parte do meu território, como hotéis, pousadas ou mesmo a casa de um cliente. Com essa argumentação, fiquei liberado para só comparecer ao comitê partidário durante as reuniões semanais de avaliação dos rumos da campanha.

     Embora estivesse sempre atarefado, não me furtei a saciar minha sede de humanidade nos braços da secretaria do nosso candidato – aquela que tanto provocava minha libido. Fazíamos amor a qualquer hora e em qualquer lugar, inclusive no divã macio do gabinete do chefe, onde ambos já haviam se deitado algumas vezes, apesar de certo desconforto devido à gordura dele. Comigo seria diferente, pois ela e eu éramos relativamente magros e dava até a impressão de que o divã fora feito sob medida para o conforto de nossos corpos.              

            

 

                                                    XXIII

 

  

     Nunca alimentei a presunção de salvar a quem quer que fosse menos ainda toda a humanidade, de uma só vez. Esse tipo de intenção já havia levado muita gente ao cadafalso. Em síntese, era preferível ser realista como Noé, que mesmo desacreditado por seus contemporâneos conseguiu salvar do dilúvio a própria vida e a de seus familiares, salvando indiretamente a humanidade e, de quebra, os animais. E olha que ninguém poderia acusá-lo de nepotismo, pois só não embarcou no seu cruzeiro quem não cultivava a fé.

     Escrevi sobre isso há muito tempo, num texto encomendado por uma professora de Letras de certo renome. Ela precisava publicar um romance para conquistar maior respeitabilidade no meio acadêmico e me contratou depois de ler meu anúncio no jornal. Eu, da minha parte, nunca acreditei em destino, mas admito que, algumas vezes, cogitei a existência de uma força invisível que me levava a situações jamais imaginadas. A tal professora era irmã do governador e isso abriu ainda mais as portas do poder para este humilde ghost writer. Como acreditavam os gregos da Antiguidade, era como se os deuses fizessem o mundo de tabuleiro para jogar um jogo no qual os homens seriam as peças.

     O resultado das eleições foi o melhor possível. O governador foi reeleito no primeiro turno, sem nem mesmo participar dos debates televisivos com seus adversários. O diretor-executivo da firma conquistou a sonhada cadeira no Senado. O autor de A garça e o voo da garça conseguiu se eleger primeiro suplente de deputado federal. Com a morte do eleito num inexplicável acidente de carro dias depois do pleito, ele poderia finalmente tomar posse no cargo que tanto ambicionava.

     A tríplice vitória resultou numa comemoração sem precedentes e com total cobertura da imprensa local. Os empregados da firma receberam convites para a festa, sendo que os chefetes e gerentes foram praticamente intimados a comparecer em trajes de gala. Tudo isso me colocou numa posição que jamais cogitei na vida. Igual ao personagem Mephisto, iludido com a proximidade com o poder, passei a frequentar ambientes até então distantes da minha realidade.

     As portas do executivo estadual abriram-se como dois braços, enquanto o prefeito ofereceu-me os préstimos do departamento municipal de cultura, caso desejasse publicar meu primeiro livro autoral. Afinal, “um autor tão habilidoso no manuseio das palavras não poderia negar à posteridade uma grande obra”, disse ele sorrindo – não sei se de ironia ou por cumplicidade.

     Já o diretor-executivo me deu carta branca para pedir o que quisesse. Num gesto cortês, convidou-me ao seu gabinete no dia em que foi esvaziar suas gavetas na firma, antes de tomar posse no Senado. Assim que entrei na sala, conduziu-me pelo braço até o jardim suspenso repleto de cactos e mandacarus. O prédio ficava num promontório, o que destacava ainda mais sua forma piramidal. Ali de cima era possível ver boa parte da cidade. O pôr-do-sol coloria de vermelho um belo horizonte e havia nuvens escuras na direção leste, periodicamente iluminadas por relâmpagos que prenunciavam uma tempestade.

     – Alguém já disse que a gratidão é a maior das virtudes – disse ele, pousando a mão direita no meu ombro e mantendo o charuto aceso no canto da boca.

     – Já ouvi isso antes – comentei, ignorando naquele momento que a frase era de minha autoria. Afinal, de tanto escrever discursos e colocar palavras em bocas alheias, eu já havia perdido a noção da própria obra.

     – Contemple o mundo aos nossos pés – prosseguiu ele, agora segurando o charuto com a mão esquerda e soprando a fumaça para o alto com o polegar direito atrás do suspensório. – Peça o que você quiser e eu farei o possível para satisfazer-lhe os desejos. Só não queira o meu cargo na firma – gracejou –, pois este será exercido pelo gerente de produção enquanto eu cumprir o mandato. Foi uma decisão do conselho-diretor e mais uma vez eu fui voto vencido.

     A secretária já havia me confidenciado que não gostaria de aceitar o convite para fazer parte do seu gabinete no Senado. Eu, da minha parte, havia confessado a ela que também pretendia saltar do barco e retomar a vida simples de outrora, pois a intimidade com o poder não me fazia bem. Com as economias feitas desde que fora promovido ao cargo de ghost writer, poderia sair da firma e viver durante algum tempo dedicando-me exclusivamente à literatura.

     Realmente eu pretendia escrever e publicar uma obra autoral. Afinal, como escreveu Mallarmé, “tudo o que existe é feito para acabar em livro”. No entanto, não queria nenhum tipo de ajuda do prefeito ou de qualquer outro político. Queria ter plena liberdade na minha criação e jamais me submeter a qualquer tipo de censura ou exigência técnica de um possível mecenas ou patrocinador.

    Ao dizer tudo isso ao diretor-executivo sem, no entanto, deixar de manifestar-lhe minha gratidão pelas oportunidades que me haviam sido oferecidas nos últimos meses, eu literalmente pisei em falso feito um bailarino a tropeçar nos próprios pés. Talvez por ingenuidade, ou simplesmente iludido pela paixão do momento, comecei a escorregar rumo à sepultura sem nem mesmo me dar conta disso.

 

Parte 2

                                   O Livro

Capítulo

                                       I

     Escrever um livro não é tarefa muito fácil, ainda mais em se tratando de memórias. Embora as lembranças sejam as únicas coisas às quais nos agarramos – e que mesmo sem querer arrastamos conosco por toda a vida –, a memória pode ser tão enganosa quanto uma sala de espelhos.

     Geralmente nos lembramos de fatos, lugares e pessoas não exatamente como eram, mas como pensávamos que fossem. Por isso um relato escrito por mim pode não ser de todo confiável, pois os acontecimentos chegam à cabeça do freguês em imagens trêmulas, como objetos no fundo de um lago ou miragens no deserto. E entre o que ele se lembra e aquilo que me conta pode haver uma grande distância.

     Enquanto escrevia aquela nova encomenda, eu desfrutava das delícias da ex-secretária que havia sido amante do meu novo cliente, a quem chamarei simplesmente de Jota. A vida é uma improvável ficção, onde tudo pode acontecer. Mesmo sendo um colega a quem eu devotava admiração e com o qual havia aprendido alguns macetes da profissão durante uma oficina literária, ele simplesmente não conseguia escrever a própria história.

     Isso às vezes acontece. O ghost writer se habitua tanto a trabalhar sob encomenda, tentando imitar o estilo do freguês, que acaba perdendo o próprio jeito. Ou talvez, no seu caso, Jota tenha se esvaído ao escrever tantos discursos ou se sentido pressionado pelos acontecimentos e pelo fato de estar apostando todas as fichas no primeiro livro que traria seu nome na capa e na folha de rosto.

     Independentemente dos seus motivos, o fato é que ele sofreu um bloqueio e procurou a minha ajuda. Sua maior falta de sorte, no entanto, foi ter levado a namorada aos nossos primeiros encontros, nos quais narrava os acontecimentos reais que deveriam constar do livro. Senti-me seduzido por ela e não tive como evitar a atração. Quando dei por mim, já estávamos reciprocamente envolvidos.

      Estar ao lado daquela mulher era algo tão estimulante que, certa noite, ao vê-la deitada nua, depois de fazermos amor exaustivamente, eu senti o desejo de rabiscar em sua pele parte da história que deveria escrever. Claro que não se trata de uma ideia original. Lembrei-me que o protagonista do romance Budapeste, que por sinal também era um ghost writer, procedia da mesma forma. Também vi um filme japonês no qual o sujeito escrevia nas pernas da namorada. Mas esses detalhes não me importavam. Bastava ter lido a Bíblia ou meia dúzia de clássicos pra saber que todas as histórias, grandes ou pequenas, já haviam sido contadas. Não interessa o que escrever, mas a maneira como escrever. A citação é um plágio disfarçado e, de certo modo, todo escritor é um plagiário. Vai ver que até mesmo essa constatação seja um plágio, tamanha a minha falta de originalidade.

      Eu já havia escrito tanta coisa sob encomenda que rabiscar frases inteiras no corpo da mulher amada poderia fazer de mim um autor confiável. Talvez os críticos pudessem notar a verossimilhança e até mesmo acreditar que o texto era de minha autoria, e não do colega que havia contratado os meus serviços. Afinal, que ninguém nos ouça, sua maneira de escrever era peculiar, marcada pelo mau-gosto na escolha das palavras e pela disritmia, que havia se tornado sua assinatura – embora um ghost writer deva permanecer no anonimato.

      Deitada de bruços ao meu lado, a moça ronronava feito uma gata, tendo nos lábios vermelhos o esboço de um sorriso numa indescritível expressão de felicidade. A luz da lua cheia penetrava o quarto através da janela aberta, pousando em suas costas nuas e acrescentando-lhe à pele clara o tom azulado de uma paisagem coberta de neve.

      Seus cabelos ondulados pareciam uma floresta negra. Na curva do seu ombro esquerdo havia uma borboleta azul tão bem tatuada que tive a impressão de que pudesse voar a qualquer momento. Com a cabeça no travesseiro, olhando-a de lado, contemplei-lhe a silhueta curvilínea. Comovido, escorri o olhar feito um regato da clavícula às nádegas, até o encontro de suas coxas de mármore.

      Subitamente, comecei a ouvir frases inteiras, como se um anjo sussurrasse em meu ouvido. E mesmo sem nunca ter acreditado em inspiração – o que era próprio de um profissional das palavras –, pensei nas musas gregas e cheguei a olhar em volta, na certeza de estar na presença de Melpômone ou Calíope. E como não visse ninguém, a não ser a musa de carne e osso deitada ao meu lado, estendi meu corpo sobre o dela e apanhei em sua bolsa, no criado-mudo, o lápis de olho que ela sempre mantinha caprichadamente apontado.

       Quando dei por mim, como se despertasse de um transe, já havia escrito dois parágrafos em suas costas sem que ela nem mesmo se arrepiasse. E antes que se movesse ou acordasse do sono profundo, dirigi-me na ponta dos pés até a sala, peguei o laptop sobre a mesa de trabalho e voltei à cama pra digitar o que acabara de escrever.

                                                              

                                   II

     Quando relatei ao diretor-executivo que a secretária havia declinado do convite pra fazer parte do seu estafe no Senado da República, ele ouviu atentamente minhas palavras, sem nem mesmo expressar reação. No entanto, enquanto tentava explicar as razões que me levavam a deixar a firma, começou a andar de um lado para o outro, intercalando baforadas no charuto e cusparadas lançadas na grama do jardim suspenso.

     Nesse momento, seus olhos adquiriram a tonalidade afogueada do pôr-do-sol. Falei da gratidão que sentia pela oportunidade que me fora dada nos últimos meses e acrescentei que ela e eu estávamos apaixonados um pelo outro, e que desejávamos mergulhar fundo naquele sentimento. Ele então parou de andar, deu uma funda tragada e arremessou o charuto para longe do prédio, como se fosse uma pedra.

     (Parêntese: O presente capítulo me foi relato por Jota, num dos nossos primeiros encontros e assim não foi difícil recriar o diálogo entre ele e o diretor-executivo, naquele final de tarde tenso e claustrofóbico)...

      – Num dos meus discursos, você escreveu que a ingratidão é o pior dos vícios – disse o diretor. – Francamente, nunca imaginei que estivesse lidando com um viciado. Pior que isso, um traidor que se deita com a minha mulher.

      – Sua mulher?

     – E por que você acha que eu a mantive na firma durante todo esse tempo? Ela me servia em todos os sentidos e eu sempre a recompensei por isso.

      – Ninguém tem culpa de se apaixonar.

      – Você fala de paixão como se entendesse do assunto. Paixão é o que eu sentia pela secretária anterior. Tanto que dediquei a ela alguns poemas. No entanto...

      – No entanto?

      – Já faz muito tempo e não quero falar mais nesse assunto. O que passou, passou. Importante é o aqui-agora. Neste exato momento eu me sinto apunhalado, como o próprio Júlio César diante do Senado romano.

      – Mas eu já disse o quanto sou grato pela oportunidade que me foi dada. Apenas preciso de um tempo para organizar minha vida sentimental e escrever um livro que mereça de fato ser publicado.

O diretor ficou em silêncio e pela primeira vez deixou escapar uma expressão que revelava sentimentos, muito embora os escondesse com a habilidade de um negociante turco. Depois de um breve silêncio, retomou o fio da conversa num tom mais ameno.

      – Ainda há pouco eu lhe disse que poderia pedir qualquer coisa, menos o meu cargo na firma – ressaltou. – Poderia lhe dar uma licença, custear uma viagem de férias ao exterior ou aumentar seu salário, mesmo contrariando nossa política empresarial.

      – Tudo o que preciso é de um pouco de liberdade – exclamei.

     – Liberdade ainda que tardia, feito o lema dos inconfidentes? Ou liberdade ainda que à tardinha? – vociferou o diretor, fazendo aquele sofrível trocadilho em tom de ironia.

     (Parêntese: Devo informar ao leitor que Jota não gostou dessa parte do original, pois alegou que o personagem em questão não era dado a trocadilhos)...

     Num gesto teatral, o diretor-executivo pousou a mão direita em meu ombro e apontou o céu com o indicador da mão esquerda, ligeiramente trêmula.

     – Contemple o horizonte, meu caro Brutus. A tarde está morrendo e dela nascerá uma longa noite, que tanto poderá ser fria e desagradável quanto quente e confortável. A escolha é toda sua.

     Em seguida, retirou-se do jardim suspenso, deixando-me em companhia do busto de bronze do Patriarca e das cinzas dos 12 pares de França, que agora serviam de adubo a várias espécies de cactos e mandacarus.

     Na manhã seguinte, entreguei a carta de demissão ao gerente de RH, alegando motivos de ordem pessoal para não continuar exercendo a função. Ele também tentou me dissuadir. Sem entrar em detalhes, argumentei que já havia fechado o meu ciclo de trabalho na firma e que pretendia me dedicar exclusivamente à literatura e ao amor da minha vida.

     (Parêntese: Confesso que fui tentado a escrever da nossa vida, mas declinei da ideia pra não desagradar o colega. Afinal de contas, também no nosso ramo de negócio o cliente tem sempre razão)...

     O gerente de RH informou que a secretária já havia sido dispensada por ordem do senador eleito, que nem mesmo quis falar com ela. A solenidade de posse no Congresso Nacional seria realizada dali a um mês e a primeira-dama da firma já estava cuidando dos detalhes da mudança da família para a capital federal.

 

                                    III

           

     Um homem é um homem é um homem é um homem. E não digam que isso é um plágio, pois Gertrud Stein escreveu o lance da rosa e não do homem – até porque ela preferia mulheres. Aliás, Caymmi fez uma canção em que o plural de rosa se repete seguidamente e ninguém seria louco de acusar um gênio do samba de plagiador, muito embora o universo musical esteja repleto de casos parecidos.

     Fazer música deve ser mais arriscado que escrever livros, pois se existem milhões de palavras à disposição do escritor, o compositor tem ao seu alcance apenas algumas notas musicais – sete maiores e sete menores, além dos semitons. Portanto, é grande o risco de se reinventar a pólvora musical.

     O problema de escrever uma história é que existem inúmeras maneiras de combinar as palavras. No entanto, como nos ensina Maupassant, seja lá o que queiramos dizer, há apenas uma palavra para exprimi-lo, um verbo para animá-lo e um adjetivo para qualificá-lo – embora muitas vezes eu evitasse adjetivos.

     Primeiramente o autor deve encontrar os termos mais adequados à narrativa e isso implica em pesar, cheirar, tatear, ouvir e provar um punhado deles pra saber qual se encaixa melhor na frase – como um tijolo mágico na construção do texto ou um ingrediente na feijoada.

     Depois de concluir algumas frases, é preciso fazer o mesmo com elas, pra que fiquem harmonicamente equilibradas no parágrafo. E assim, a cada período construído deve-se fazer o mesmo, até que o todo se dê por concluído. O resultado final será uma espécie de mosaico, que poderá ter peças pequenas ou grandes, coloridas ou desbotadas, tudo de acordo com as preferências do autor – pois ele é que é de fato o primeiro leitor de sua obra.

     O problema de ser um ghost writer é ter que pesar tudo na balança de outro, pois o texto encomendado deverá ter a cara do cliente e não daquele que deveras o escreveu. Por isso os grandes autores jamais poderiam exercer essa função, pois seriam descobertos logo nas primeiras frases. Isso porque um grande escritor é escravo do próprio estilo e não consegue evitá-lo, mesmo quando luta pra se libertar. Pode no máximo camuflar o próprio cheiro, mas jamais mudá-lo por completo.

     Dizem que pro bom leitor um pingo é letra. O leitor atento, aquele que lê em linhas e entrelinhas ainda que tortas, identifica a autoria do texto em meia dúzia de palavras. Graciliano, por exemplo, raramente usou adjetivos, pois seu texto reproduz a aridez do sertão nordestino. Já Guimarães Rosa, que fala de outro sertão, imprimiu em sua narrativa a umidade das veredas e a profundidade de rios outrora caudalosos.

     Se o estilo do escritor é sua digital, o estilo do ghost writer deve ser a invisibilidade. Sim, pois nessa profissão há que se ter o dom do camaleão azul, que de tanto mudar de cor acaba não tendo cor nenhuma. Por isso, quando digo que um homem é um homem é um homem é um homem, alguém poderia pensar que daria no mesmo se escrevesse que um rato é um rato é um rato é um rato. No entanto, minha intenção é justamente ressaltar que um homem não precisa necessariamente ser um rato ou qualquer outro bicho, e sim alguma coisa superior, mais próxima de Deus – se Deus houver.

     Esse discurso não serviria pra nada se uma parte dele não estivesse num ensaio sobre mitologia e psicanálise, que me fora encomendado por uma estudiosa do assunto. Claro que eu estava empenhado em escrever o livro do novo cliente, um romance quase-memória do qual eu pretendia me apropriar. Mas dinheiro nunca é demais e a tal estudiosa havia feito uma oferta irrecusável. Depois me passou todas as suas anotações e pediu que eu reorganizasse suas ideias de forma legível e objetiva, de maneira que resultassem num texto acadêmico a ser publicado numa revista especializada.

     A proposta era lançar as bases de uma nova escola psicanalítica, que trabalhasse os arquétipos do homem brasileiro. Do ponto de vista da pseudoautora, os estudos de Freud levaram em conta o homem europeu e suas origens a partir da civilização grego-romana. Além dessa matriz trazida pelos portugueses e por outros imigrantes do Velho Mundo, o brasileiro havia herdado traços culturais e genéticos de povos indígenas e africanos. Por isso seus arquétipos deveriam ser mais complexos. A proposta da estudiosa em questão era estabelecer relações psíquicas que levassem em conta aspectos da cultura grega – como Édipo e Electra – e também os orixás africanos e os mitos indígenas.

     Se eu me interessasse pelo assunto, teria me apropriado de sua tese, uma vez que a ideia parecia original o bastante pra gerar polêmica nos meios acadêmicos. Pela primeira vez alguém tentava embrulhar psicanálise e macumba num mesmo pacote. No entanto, quando o estudo foi publicado por uma editora universitária, nada aconteceu. Se a pseudo-autora fosse uma estudiosa francesa ou norte-americana, o assunto teria dado pano pra manga com repercussão na mídia nacional, que sempre se curvou ao que vem de fora.

     Felizmente, não comprei a briga, mas agora, devido à originalidade da história narrada por Jota – que pelo fato de ser um ghost writer sabia caprichar nos detalhes – não me furtaria a atropelar os princípios éticos da profissão. Afinal, já era tempo de ter meu nome na capa de um livro e aquele, se fosse publicado por uma editora de prestígio, poderia chamar atenção da crítica ou até mesmo se tornar um best-seller. Caso o verdadeiro autor entrasse na Justiça alegando apropriação indébita, tanto melhor, pois isso certamente teria repercussão, podendo me transformar numa celebridade do mundo das letras.

                                  IV

  

     Amargurado com o desenrolar dos fatos, Jota confessou-me que o que mais lhe causava sofrimento nessa história era ter perdido a ex-secretária pra outro ghost writer. Se ele evitava pronunciar o nome dela é porque desejava esquecê-la, assim como os demais personagens da trama. Orientou-me, inclusive, a nem mesmo tratá-los por apelidos ou pseudônimos, o que não seria original.

     De certa forma, Jota queria chamar atenção pra pessoas que mesmo vivendo na era das celebridades ainda suportavam o peso do anonimato, sendo apenas números nas estatísticas. E existia ainda um terceiro motivo, talvez o mais verdadeiro: de tanto ver seus livros publicados com outros nomes na capa, confessou-me que muitas vezes se esquecia do próprio nome – e devo confessar que isso também já havia me ocorrido.

     Nesse ponto, a história tomou rumos inimagináveis, adquirindo características de um thriller policial. Em nossos últimos encontros, já sem a presença da ex-secretária que agora frequentava minha cama, Jota parecia estar sofrendo de paranoia. Disse que tinha fortes razões pra supor que seu telefone fixo fora grampeado. Uma ou duas vezes ouvira ruídos na linha. Também tinha a sensação de que seu carro estava sendo seguido por uma van preta de vidros fumê. Considerou que talvez, em algum momento dos seus últimos dias na firma, tenha feito uma declaração comprometedora que pudesse ter sido levada ao gerente de produção pelo informante que ele jamais saberia quem era.

     Certa noite, Jota foi ao bar onde costumava se reunir com os colegas e nenhum deles lhe deu a devida atenção. Foram frios ao cumprimentá-lo e sequer puxaram a cadeira pra que se sentasse com eles na antiga mesa. Sentiu-se como um estranho no ninho das serpentes. Diante disso, acomodou-se num banco junto ao balcão e pediu ao barman a costumeira dose de uísque.

     Jota ficou ali sozinho, até que uma loira com ares de prostituta sentou-se no banco ao seu lado e puxou assunto. Ele não demorou a perceber que se tratava da mesma mulher que ali estivera em companhia do produtor de televisão, na noite do incidente que havia motivado sua promoção na firma. Conversa vai, conversa vem, ela confessou que era mesmo uma garota de programa e que ficara impressionada com a cena daquela noite, estando ainda curiosa quanto ao motivo da cusparada na cerveja.

     Ambos se dirigiram a um motel na periferia da cidade e, enquanto Jota tomava banho depois de terem transado, ela fez uma ligação ao celular. Daí a pouco, dois sujeitos mal-encarados de roupas e óculos escuros invadiram o quarto e só então ele se deu conta de que havia caído numa cilada.

     Inicialmente, Jota pensou que se tratasse de uma vingança do produtor de televisão, mas logo percebeu que o inimigo era outro. Os brutamontes disseram que ele sabia demais e que não deveria escrever nada que comprometesse a imagem da firma, pois isso poderia custar-lhe a própria vida. Ele tentou reagir, mas um homem nu é um homem indefeso, ainda mais contra dois oponentes do tamanho de um armário. Levou meia dúzia de socos e alguns pontapés. Na manhã seguinte, foi encontrado pela camareira, desmaiado no chão, ao lado da cama.

                                                   

                                     V

     A agressão sofrida por meu colega me fez lembrar os livros Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, e Os Versos Satânicos, de Salman Rushdie. O primeiro é uma fábula sobre a maneira como o sistema destrói o interesse pelos livros, enquanto o segundo foi incluído no index dos aiatolás, sendo o autor ameaçado de morte por fanáticos islâmicos. Ocorreu-me que, em português e em outras línguas neolatinas, livro e livre são acrônimos. Em francês, livre e libre, por exemplo, como Libro libertas ou Libro liber, expressões do próprio latim usadas em antigos ex-líbris.

     A literatura, portanto, é irmã da liberdade e jamais deveria ser submetida a qualquer tipo de censura ou controle oficial. Por isso, mesmo sendo proibidos ou queimados em praça pública, os livros renascem das cinzas como a Fênix da mitologia. E foi em honra dessa convicção que eu convenci Jota a não desistir de sua narrativa, ainda que isso pudesse representar um sério risco.

     Temendo pela própria vida, ele decidiu sumir por uns tempos e se refugiou numa cidade histórica no interior do estado. Durante esse período, enviava-me anotações por e-mail, evitando encontros e exposições públicas. O que não sabíamos, e sequer poderíamos imaginar, é que ambos havíamos dormido com o inimigo. Melhor que isso, com a inimiga.

     Achei intrigante que a mulher dos nossos sonhos fizesse questão de ler os originais a cada mudança ou acréscimo, pois até então ela não parecia ser dada à leitura. Com exceção do Meu Pé de Laranja Lima, não conhecia nenhum dos títulos aos quais me referi em nossas conversas. Nem mesmo O Pequeno Príncipe, a história preferida de nove entre dez misses brasileiras. Outra coisa estranha era o fato de o cliente ter sofrido uma nova ameaça, dessa vez pelo telefone da pousada onde estava hospedado. Somente nós três sabíamos o número. Precavido, passei a fazer beckup dos originais a cada alteração que procedia no texto, pois temia que alguém pudesse deletá-lo, colocando tudo a perder.

     Certo dia, depois de acordar em minha cama, a ex-secretária saiu cedo dizendo que iria ver uma vaga de trabalho anunciada num site de empregos. Intrigado, eu a segui de longe e vi quando entrou na sede da firma. Voltei pra casa e telefonei pro Jota, informando-o a respeito. Na sua ingenuidade, ele duvidou que ela pudesse estar nos espionando. Eu disse que continuaria investigando essa possibilidade e que o manteria informado a respeito dos fatos.

     Quando ela retornou no início da tarde, perguntei se havia conseguido o tal emprego e sua resposta foi evasiva. Inicialmente mentiu, dizendo ter se saído bem na entrevista, mas que ainda deveria se submeter a alguns testes pra concorrer à vaga de secretária. Ao saber que havia sido seguida, corou as faces e disse ter ido à firma pra solicitar do RH uma carta de referência profissional. Cadê a carta? Perguntei à queima-roupa, e nessa hora ela começou a chorar. Disse que estava sendo vítima de chantagem e que a direção da firma havia ameaçado matar o Jota, caso ela não informasse o conteúdo do livro que eu estava escrevendo e que ele pretendia publicar. Ao menor detalhe que pudesse comprometer os negócios, estaríamos os três correndo risco de morte.

     Claro que não engoli uma história tão mal contata. Parecia o improviso de uma farsa de teatro amador ou a fala de um filme B dos anos 50. Por um momento, perdi a cabeça e esqueci a tesão que sentia por ela. Agarrei-a pelos braços e a sacudi violentamente, dizendo que reconhecia a mentira só pelo cheiro. Nessa hora ela desabou de sua fortaleza. Declarou entre lágrimas, agora verdadeiras, que durante todo o tempo havia trabalhado pra firma e que sua relação comigo e com o Jota fazia parte do negócio.

     O diretor-executivo havia determinado que ela vigiasse o ghost writer desde o dia de sua promoção. Afinal, em sua nova função, o ex-chefe da comunicação interna deixaria de ser um iniciante pra se tornar propriamente um iniciado nos assuntos da firma. Pouco a pouco, teria acesso aos segredos da organização e era preciso saber se estava mesmo disposto a defender tais interesses ou se era dado a crises de consciência, podendo vazar informações que pudessem comprometer o sistema.

    Sua missão era seduzir o escritor, ganhar confiança e privar de seus desejos mais íntimos. Cada tarefa dada ao escriba funcionava como um teste de fidelidade e assim ele foi galgando diferentes níveis de confiabilidade na firma. No entanto, resolveu pular fora do barco no melhor da festa, alegando que pretendia escrever um livro autoral. Como os devedores são sempre temerosos, o diretor-executivo enxergou naquela atitude um sério risco pros negócios. Quando Jota me contratou pra escrever o livro, ela mudou de cama justamente na intenção de ficar o mais perto possível dos originais.

 

                                    VI

     Diz o ditado que de onde não se espera é que vem. E como a voz do povo é a voz de Deus, não custa prestar atenção no que dizem por aí. Quem derramaria o gás do candeeiro seria o anão encarregado de levar pra cima e pra baixo a escarradeira do diretor-executivo. Acontece que, ao se mudar com a família pra capital federal, o novo senador resolvera dispensar os serviços do seu fiel escudeiro. Sem nem mesmo avisá-lo de tal decisão, simplesmente ordenou ao gerente de RH que o transferisse para o setor de segurança e serviços ou, melhor dizendo, à SS da firma.

     Aquele ato arbitrário e descabido seria a única recompensa que o anão receberia pela lealdade devotada ao chefe ao longo de mais de dez anos de trabalho. Nem mesmo uma propina, um bônus especial, sequer um muito obrigado... Nada! E a justificativa pra tal decisão soou pior que o soneto: depois de ter vencido as eleições, o diretor-executivo fora gradativamente se livrando da mania de cuspir a cada cinco minutos. Nem mesmo o terapeuta que o assistia há mais de uma década conseguiu encontrar explicação. De repente, três dias antes da posse, sem nem mesmo se dar conta, ele estava curado da antiga mania. 

     Quem não gostou da notícia foi o anão, pois teria que trabalhar num setor cujo chefe assediava os funcionários. Corria à boca pequena que os mais espertos engordavam a receita na base do lavou tá novo. Alguns até recebiam favores especiais, como o abono de faltas não-justificadas ou presentes caros que não poderiam comprar com o minguado salário pago pela firma. Mas não seria esse o caso do anão, que além de ter um caralhão – diziam alguns – orgulhava-se de ser um heterossexual convicto.

     Começaria ali o calvário daquele que por mais tempo havia servido ao diretor-executivo. Embora muita gente desmerecesse sua antiga função, ele sentia orgulho de exercê-la, pois aprendera com o pai que todo trabalho era digno, desde que fosse honesto. Em qual profissão um anão poderia ter maiores oportunidades?, costumava se perguntar. A sociedade era preconceituosa, a era de ouro do circo havia chegado ao fim e ele não tivera a oportunidade de estudar, pois os pais eram pobres e morreram cedo.

     O anão dava duro nas ruas como ajudante de camelô, quando leu no jornal o anúncio da firma: “Procura-se jovem de baixa estatura pra carregar uma escarradeira pra cima e pra baixo. Salário a combinar”. Era uma função inusitada e ele disputou a vaga com outros 20 candidatos, sendo aprovado em primeiro lugar. Trabalhara com galhardia, mas agora, de uma hora pra outra, a sorte virava-lhe as costas. Dizem que pessoas pequenas se irritam facilmente, pois, quando provocadas, o sangue sobe depressa à cabeça. Ao ser transferido pro setor de segurança e serviços, o anão sentiu vertigens e jurou a si mesmo que não iria deixar barato a traição. E não deixou mesmo!

 

 

VII

     Ter um anão como inimigo pode ser a pior coisa do mundo, pois, nesse caso, apanhar é vergonhoso e bater é covardia. Sem refletir sobre isso, o ex-diretor-executivo simplesmente comprou uma tremenda briga com o homem errado. O anão da escarradeira podia ser pequeno, mas sua determinação era inversamente proporcional ao tamanho. Decidido a ir à forra, aproveitou-se da mobilidade que a SS lhe proporcionava pra circular livremente pelo prédio em busca de provas contra a diretoria da firma.

     E como um rato conhecedor do seu território, o pequeno homem sabia corretamente onde coletar as evidências de que precisava, pois durante os vários anos de trabalho na antiga função memorizou conversas, arquivos e outros detalhes que agora seriam úteis à nossa causa.

     A tecnologia da informação foi sua maior aliada, pois a documentação já estava quase toda informatizada e ele não teve dificuldades pra copiar listas, notas frias e outros registros contábeis. Era um craque em computação e só não conseguira trabalhar nessa área porque não tinha diploma. Duas semanas depois de ser transferido pra SS, levou a primeira cantada do novo chefe e não gostou. Entrou logo em contato com o antigo ghost writer pelo qual nutria admiração.

     – Sei que você tá escrevendo um livro sobre a firma e posso ajudá-lo na empreitada – anunciou, antes mesmo de se identificar.

Jota ainda estava escondido no interior do estado e ficou surpreso ao ouvir aquela voz de barítono ao celular.

     – Quem tá falando? – disfarçou receoso.

     – Aqui é o anão da escarradeira, como vai?

     Em seguida, rolou a história que qualquer bom leitor já pode imaginar. O anão explicou que havia sido rebaixado, humilhado, jogado do trem em movimento e agora tudo o que ele mais desejava no mundo era poder se vingar a qualquer preço. Até porque, tinha medo de sofrer um acidente como os 12 pares de França. Se tivesse que morrer, gostaria que fosse depois de jogar toda a merda no ventilador.

      Jota tentou se esquivar. Disse que não estava escrevendo livro nenhum sobre a firma, mas apenas um romance de ficção.

     – E você acha que eles acreditam nisso?

     A pergunta foi propositadamente capciosa, com o objetivo de agitar as minhocas na cabeça do escritor em questão.

     – Use a imaginação – insistiu o anão. – Acha que vamos sobreviver por muito tempo depois de tudo o que presenciamos na firma? Pessoas como você e eu não passam de números na folha de pagamento e quando deixam o barco podem morrer afogadas. Se não quiser fazer um escândalo daqueles, é melhor sair do país. Precisamos chamar atenção da opinião pública. A única chance que temos de sobreviver é saindo do anonimato.

                                                  VIII

 

   

     Diante de argumentos tão plausíveis, Jota não teve como resistir à tentação de incrementar o seu livro. Pouco depois de receber a ligação do anão, telefonou-me com uma nova proposta. Estava animado e perguntou se eu não gostaria de escrever a história a quatro mãos, o que na prática já vinha sendo feito. Seu plano havia mudado. Em vez de uma obra de ficção, pretendia agora fazer uma espécie de livro-dossiê, que seria entregue à imprensa e ao Ministério Público antes mesmo de ser editado.

     Com a provável repercussão da história na mídia, qualquer editor ambicioso e com um mínimo de visão comercial se interessaria em publicar os originais. O objetivo do ex-funcionário da firma era desmascarar os ex-patrões e sacudir as estruturas do sistema. O escriba parecia disposto a enfrentar todos os riscos, pois sua recompensa poderia ser a consagração como autor de uma obra polêmica. E, além disso, estaria limpando a própria consciência por ter colaborado, ainda que modestamente, com uma organização tão nefasta que dispensava adjetivos.

     A mudança de rumos na trama e a iminência do perigo serviram pra estimulá-lo a ponto de se livrar do bloqueio criativo, o fantasma que mais assombra os escritores e que tanto o havia angustiado nas últimas semanas. Naturalmente, Jota sequer desconfiava que eu pretendesse lhe roubar a história e colocar apenas meu nome na capa e na folha de rosto do livro. Contudo, naquele momento, usei de minha falsa modéstia e lhe disse que não gostaria de me revelar publicamente. Se me pagasse o preço combinado pelo serviço, ele que assinasse a autoria, conforme havíamos combinado no início. Não precisaria nem mesmo mencionar meu nome na dedicatória ou nos agradecimentos.

     Tão logo Jota retornou à cidade, marcamos um encontro com o anão numa boate da região central, na esquina de duas ruas do baixo meretrício. Ninguém ligado à firma pensaria que poderíamos frequentar um lugar tão decadente em plena luz do dia. Putas, gigolôs, bêbados e drogados formavam a fauna local. Nessas alturas, eu já havia dado linha na ex-secretária do diretor-executivo, cujo amor de medusa já não me excitava tanto. Voltei a frequentar sites pornôs e de vez em quando alugava os serviços de uma profissional do sexo. Dessa forma, não seria mais espionado em minha própria cama.

     Assim que nos sentamos à mesa num dos reservados da sobreloja, pedimos ao garçom três doses de conhaque. Depois de esvaziar o copo num único gole, o anão rasgou o verbo. Comparada a outros fatos, a inundação do subsolo que dera fim aos 12 pares de França era café-pequeno.

     A firma funcionava como lavanderia do crime organizado, alimentava o caixa dois de políticos corruptos, sonegava impostos e exportava carne de cachorro sem o devido controle de qualidade. Havia também suspeitas de que misturavam ao produto carne de bebês abandonados, cujos órgãos eram vendidos clandestinamente a hospitais que faziam transplantes – mas isso nunca seria comprovado.

     O anão declarou que o poema que o diretor-executivo havia mostrado ao Jota naquela manhã chuvosa, em seu gabinete, era na verdade a confissão de um crime. O verso que citava a moça enterrada no jardim que ainda não havia brotado referia-se à secretária que abandonara o cargo há mais de uma década sem nunca mais ter dado notícias.

     Pouco antes do seu sumiço, havia corrido o boato de que ela estaria grávida e de que o pai da criança seria o próprio diretor-executivo. Por temer escândalos e chantagens, ele avisou que não desejava ter um filho bastardo e exigiu-lhe que fizesse o aborto.

     A jovem rechaçou a ideia, alegando razões de ordem religiosa, pois considerava o aborto um crime contra a vida e contra Deus. Num final de tarde, durante uma acalorada discussão em seu gabinete, o diretor-executivo perdeu o controle da situação e a empurrou com violência. Antes de ir ao chão, ela teria batido a fronte na quina da mesa, sofrendo morte instantânea. Desesperado, temendo ser preso por assassinato, ele mesmo enterrou o corpo da jovem no jardim suspenso da firma, tarefa que provavelmente havia durado até o início da madrugada.

     No dia seguinte, o anão pegou serviço bem cedo, antes mesmo da turma da faxina. Ao entrar no gabinete, deparou com respingos de sangue aos pés da mesa, marcas de terra no carpete e também nos ladrilhos do jardim suspenso. Ao saber que a secretária havia abandonado o cargo sem deixar vestígios, tirou suas conclusões, mas não disse nada a ninguém, pois não queria se arriscar por um assunto que não era da sua conta. Com o passar dos anos, o caso caiu no esquecimento. Uma década depois, ao ouvir o tal poema na voz de Jota, o anão se lembrou daqueles fatos e suas suspeitas viraram certeza.

     Outro detalhe de que ele se lembrara é que exatamente há dez anos o diretor-executivo havia mandado que os pedreiros assentassem uma lage em determinado ponto do jardim suspenso. Sobre essa base seria afixado o pilar de granito onde aparafusaram o busto de bronze do Patriarca, cuja inauguração ocorreu dias depois com pompa e circunstância.

      

                                         IX

 

     No final do encontro na boate, acertamos que eu deveria finalizar o livro – agora uma obra de denúncia. Jota supervisionaria o trabalho, reescrevendo os trechos que julgasse necessários pra dar maior veracidade à narrativa. Contudo, devo reconhecer que ele poderia simplesmente ter dispensado os meus serviços. Se não o fez, deve ter sido por razões éticas, coleguismo ou por medo de correr o risco sozinho.

     Já o anão prosseguiria com seu trabalho na SS da firma, atualizando as informações e tomando cuidado pra que não desconfiassem de sua cumplicidade conosco. No entanto, os rumos da trama continuariam mudando feito o clima global, sem que nenhum de nós pudesse prever.

     No início da noite, depois do nosso encontro na boate, voltei pra casa com a determinação de reescrever alguns trechos da obra. Quanto mais depressa chegasse ao epílogo, melhor seria pra todos nós. Quando meti a chave na fechadura, descobri que a porta já estava aberta. Teria eu me esquecido de trancá-la ou alguém havia estado ali durante a minha ausência? Entrei cuidadosamente no apartamento.

     Olhando pelo corredor, notei a luz do escritório acesa e fui até lá, pisando macio, com medo de me deparar com algum invasor. Constatei que meu laptop não estava sobre a mesa e deduzi que alguém o havia roubado. Felizmente, trazia no bolso o pen drive que continha o backup do livro, pois não poderia me arriscar a perder os originais. Nesse exato momento, o telefone tocou e tive um sobressalto. Pra minha nova surpresa era o Jota, dizendo ter encontrado um cadáver em sua cama.

     (A partir desse ponto, registro parte do depoimento de Jota à polícia, o que certamente dará verossimilhança à história)...

     – Ao chegar a casa, constatei que a porta estava só encostada e as luzes acesas e estranhei esse fato, mas entrei assim mesmo e logo a vi deitada de costas na cama usando aquela saia azul francês e com a blusa de seda branca descida até a cintura exibindo os seios duros de pontas cor-de-rosa... Comecei a me despir na intenção de tomar uma ducha bem fria, pois estava muito quente e perguntei a ela por que havia voltado uma vez que eu tinha lhe dito que nunca mais queria vê-la, mas não obtive resposta... Já estava sem camisa e desabotoando as calças quando me sentei na beirada da cama na intenção de desamarrar os sapatos e estranhei o seu silêncio e a olhei de soslaio... Seus olhos estavam abertos como se mirassem o ventilador de teto que girava vagarosamente sobre nossas cabeças. Sua barriga e suas narinas não se moviam... Num gesto desesperado, segurei-lhe o pulso esquerdo e constatei que não havia pulsação e a pele estava fria e ao olhar seu pescoço na esperança de ver a veia se mover eu notei uma mancha roxa na altura da glote. Suas pupilas estavam dilatadas e só então eu me dei conta de que havia sido estrangulada.

 

                                    X

     Pelo tom da voz ao telefone dava pra sentir o quanto Jota estava apavorado. Quase em pânico, ele me disse, tropeçando nas palavras como se fosse gago, que a ex-secretária que nos seduzira a serviço da firma estava mortinha da silva no mesmo leito onde já haviam transado tantas vezes. Respirei fundo e pedi que se acalmasse. Depois falei que seria melhor chamar a polícia, mas ele argumentou que poderia ser preso em flagrante por um crime que não havia praticado.

     Eu contra-argumentei, dizendo que ele não poderia simplesmente enrolar o corpo no tapete, jogar num rio e fingir que nada daquilo tinha acontecido. Ela havia sido assassinada em sua cama, ou morta em outro lugar e levada até ali justamente na intenção de incriminá-lo. Afinal, quem mais teria motivos passionais pra matá-la daquela forma? Se ele fugisse, poderia se complicar mais ainda.

     No entanto, se fosse acusado pelo crime, teria a seu favor o fato de ser um réu primário com residência fixa. Além do meu testemunho e o do anão, no último caso, ele também dispunha de um álibi irrefutável. O garçom que havia nos servido na boate, naquela tarde, haveria de se lembrar da estranha reunião de três homens bem vestidos num reservado que geralmente só era frequentado por prostitutas e proxenetas de baixo poder aquisitivo. Felizmente, Jota me deu ouvidos e ligou pra polícia.

     Os homens da lei não demoraram a chegar ao local da ocorrência. Também fui até lá na intenção de ajudá-lo numa hora tão difícil. Os policiais examinaram o cadáver, vistoriaram a cena do crime e ouviram o seu depoimento. Também conversaram com alguns vizinhos, mas, igual à estátua dos três macaquinhos, ninguém viu, ouviu ou disse nada.

     Informei que tínhamos passado aquela tarde numa reunião de negócios e um dos agentes quis saber que tipo de negócios. Expliquei que era um ghost writer e o sujeito não fazia mínima ideia dessa profissão. Detalhei que havia sido contratado pelo Jota pra ajudá-lo a escrever um livro e que esse era o meu trabalho.

     Em seguida, chegaram os peritos, que novamente examinaram o local, recolhendo amostras de pele e cabelo da vítima, digitais em alguns objetos à sua volta etc. etc. Perguntaram ao Jota se havia consumido drogas ou ingerido álcool, e ele disse que havia tomado uma dose de conhaque havia mais de duas horas na minha companhia. Curiosamente, não o examinaram e reviraram toda a cena do crime.

     Um dos agentes encontrou uma bolsa embaixo da cama e assim puderam checar os documentos e alguns pertences da morta. Depois perguntaram se alguma coisa havia sido roubada e só então Jota se deu conta de que seu computador e alguns blocos de anotações haviam desaparecido.

     Um inspetor negro – ou afrodescendente, melhor dizendo – que comandava a operação declarou que seríamos conduzidos à delegacia de homicídios, onde deveríamos repetir toda a história pra delegada de plantão. Tanto pior, eu pensei, pois um delegado talvez compreendesse melhor a situação. Em casos como aquele, as mulheres tendem à parcialidade ou a ser solidárias em relação à vítima, digamos assim – sem querer bancar o machista.

      Perguntei se deveríamos chamar um advogado e um policial loiro – certamente um eurodescendente – disse que não via necessidade, já que o próprio morador havia chamado a polícia e parecia estar disposto a colaborar nas investigações. O corpo da ex-secretária serviu de molde pra um desenho feito com tinta preta no lençol branco sobre a cama. Em seguida, foi colocado num saco plástico fechado com zíper e levado ao rabecão que o conduziria até ao Instituto de Medicina Legal, onde seria realizada a necropsia.

       O inspetor-chefe perguntou ao Jota se ele teria onde ficar por alguns dias, pois o local do crime deveria permanecer interditado até segunda ordem, caso fossem necessárias outras averiguações técnicas. Convidei-o a se hospedar em meu apartamento e, antes de sairmos rumo à delegacia, ele encheu uma velha mochila com algumas peças de roupa.

      Na delegacia, levaram quase duas horas pra nos atender, devido a outras ocorrências das últimas horas. Havia duas mortes por balas perdidas, um caso de estupro seguido de morte e a prisão em flagrante de um sujeito que havia esfaqueado a sogra. Quando finalmente fomos chamados, repetimos nossa história em depoimento a uma delegada de meia-idade e olhos puxados – provavelmente uma nipodescendente.

     Um escrivão mal-humorado castigou as teclas de um velho computador caindo aos pedaços, documentando assim as nossas falas. No final, antes que assinássemos os devidos depoimentos, a delegada aconselhou o agora suspeito a contratar um bom advogado.

              

                                          XI

 

     Naquela mesma noite, a imprensa deu início ao que seria a execração pública de Jota. Na porta da delegacia, alguns repórteres já o esperavam com perguntas embaraçosas. Sites de notícias e emissoras de rádio e TV colocaram no ar notas e reportagens especulativas sobre o brutal assassinato da ex-secretária da firma, cujo diretor-executivo exercia seu primeiro mandato de senador da República. O caso não demoraria a repercutir nacionalmente, pois tinha todos os ingredientes pra segurar audiência e vender jornais – pelo menos até que outro escândalo ou tragédia desviasse a atenção do público.

     Na maioria das reportagens, Jota era apontado como o principal suspeito. O noticiário sensacionalista de uma rádio AM chegou a informar que a vítima havia sido violentada antes e depois de ser esganada, provavelmente pelo ex-amante ou namorado. Na manhã seguinte, foi a vez dos jornais impressos entrarem de sola no assunto. Tablóides populares estamparam manchetes garrafais, do tipo amante mata por ciúmes ou namorado nega crime, mas evidências o condenam. Alguns esgotaram as edições em poucos minutos.

     Indiquei ao Jota um advogado que há alguns anos havia contratado meus serviços pra concluir uma dissertação de mestrado sobre as controvérsias do Código Penal. Seu primeiro esforço foi no sentido de manter o novo cliente fora do alcance da mídia, pois tudo o que dissesse poderia ser usado contra ele nos tribunais. No entanto, devido às pressões da opinião pública, não foi possível evitar a prisão preventiva. O Tribunal de Justiça alegou que Jota poderia tentar escapar ou simplesmente ser linchado em plena rua.

     O enterro da ex-secretária foi realizado dois dias depois de sua morte, com ampla cobertura da imprensa. O cemitério ficou cheio de curiosos, mas pouca gente da firma compareceu. Passei rapidamente pelo velório e pude ver uma coroa de flores enviada pela diretoria com votos de pesar aos poucos familiares da defunta. Esta continuava bonita, com uma expressão felina no rosto de cera.

     Enquanto o agora suspeito permanecesse recolhido a uma cela da delegacia de homicídios, eu me esforçaria pra terminar a primeira versão do livro. Além de servirem de dossiê na sua defesa, os originais poderiam comprometer a firma, cujos diretores tinham todo interesse na morte da ex-secretária e na condenação do ex-funcionário de confiança. Afinal, os dois sabiam demais e a situação havia saído de controle. 

     Diante de fatos tão inesperados, arquitetei um sórdido plano pra me apropriar da história. Ao visitar Jota na cadeia pela primeira vez, disse a ele que havia mudado de ideia e gostaria que renunciasse à autoria do livro, permitindo que eu colocasse meu nome na capa. Em troca, eu o converteria em protagonista da trama e me tornaria de fato sua principal testemunha de defesa. Inicialmente, ele resistiu à chantagem, mas diante de um novo argumento acabou cedendo, pois mesmo sendo irmã da literatura, a liberdade é mais importante que ela.

     O argumento é que, por uma dessas coincidências que a vida real nos reserva tanto quanto a ficção, um chegado meu ocupava o cargo de editor de polícia no maior jornal da cidade. Era um jornalista destemido e independente – coisa rara naqueles tempos –, cujo trabalho já havia contribuído pra desbaratar um esquadrão da morte que agiu na periferia alguns anos atrás. Com acesso exclusivo ao nosso dossiê, ele seria capaz de denunciar as falcatruas da firma e com isso desviar o foco do noticiário em nosso favor.

 

                                    XII

   

     Sem esperança de recuperar o laptop que me fora roubado, sequer registrei queixa na polícia. Comprei a prazo um notebook de última geração, descarreguei o pen drive que trazia no bolso e passei duas semanas praticamente em cima dos teclados, tentando finalizar a história com o objetivo de entregar a primeira versão ao editor de polícia.

     O anão da escarradeira forneceu-me novas e preciosas informações, que serviriam de ingredientes pra incrementar a narrativa. Percorrendo os corredores da firma de orelhas em pé, ele ouviu dizer que a decisão de assassinar a secretária havia partido do gerente de produção, que desempenhava interinamente as funções de diretor-executivo.

      Além de se livrar de uma funcionária que havia se tornado inconveniente e de comprometer o antigo ghost writer por sua morte, seu verdadeiro objetivo era manchar a reputação do titular do cargo. Mesmo se beneficiando da imunidade parlamentar, o agora senador certamente não teria condições morais nem psicológicas de reassumir o antigo posto ao concluir seu mandato, caso um escândalo envolvendo seu nome prejudicasse ainda mais a imagem da firma. Isso certamente provocaria a reação enérgica dos acionistas. Afinal, a direção tinha total liberdade pra fazer qualquer tipo de falcatrua, desde que isso não chegasse ao conhecimento do público.

     O livro adquiriu requintes de um Cult movie, com roteiro de Ross Mcdonald copidescado e dirigido por Quentin Tarantino. E justamente por isso, cabe aqui um pequeno flashback, que nos conduza de volta à reunião na boate, naquela tarde abafada típica do verão – embora estivéssemos no pleno outono. Se olharmos atentamente a banca de revistas do outro lado da rua, notaremos a enigmática presença de um sujeito forte, de terno preto e óculos escuros, que finge ler as manchetes do dia.

      Na verdade, ele havia seguido o anão até a porta da boate, onde Jota e eu já o aguardávamos. Enquanto nos dirigimos ao reservado na sobreloja, o tal gorila atravessa a rua, entra na boate e pergunta ao garçom se há outro reservado disponível bem ao lado do nosso. Como estamos conversando naturalmente, sem sussurrar segredos como fazem os casais que frequentam a casa, o sujeito não tem dificuldades pra se inteirar do assunto.

      Enquanto isso, no prédio onde o Jota morava, dois homens de macacão aproveitam a saída de uma jovem estudante e adentram a portaria, carregando um tapete enrolado. Eles tomam o elevador de serviço e marcam o quarto andar no painel de controle. Sem que ninguém os veja, andam poucos metros no corredor à procura do número 408. Um deles estoura a fechadura com uma chave de fenda e ambos entram no loft arrastando o tapete. Em seguida, colocam o tapete no chão e o desenrolam num único golpe, revelando o corpo da ex-secretária, que será colocado sobre a cama.

      Todos esses detalhes narrados no livro poderiam ser comprovados pelos investigadores do caso, isso se o caso fosse de fato investigado como acontece nos filmes de ação. No entanto, um ficcionista sempre corre o risco de se atrapalhar com a vida real. E foi nesse ponto que eu me equivoquei, por total inexperiência com a realidade. Tão logo finalizei a primeira versão da história, e antes mesmo de mostrá-la ao Jota ainda na prisão, entreguei uma cópia impressa ao editor de polícia. Aguardei ansiosamente durante dois dias pelo seu retorno e, quando finalmente ele me telefonou de volta, sofri uma grande decepção.

                                   XIII

     Os leigos que leem um grande jornal ou assistem ao noticiário da TV certamente imaginam que repórteres e editores tudo podem em defesa da verdade e do interesse público. Se dependesse somente dos bons profissionais, isso certamente corresponderia à realidade dos fatos. Mas não é assim que a coisa funciona. A divulgação da notícia depende muito mais dos donos da mídia e dos interesses comerciais das empresas de comunicação do que da competência ou da boa vontade dos jornalistas.

     Sobretudo naqueles tempos, as editorias mais melindrosas numa redação eram as de política e polícia. E embora as duas coisas muitas vezes se confundissem, pois era comum o personagem principal numa reportagem de política se tornar coadjuvante na crônica policial – ou vice-versa –, as empresas de comunicação ainda insistiam em manter os dois temas separados no noticiário. Um fato incontestável, no entanto, é que os grandes anunciantes, inclusive empresas públicas, é que ditavam as normas da informação. Um escândalo só virava notícia quando o alinhamento de interesses fugia ao controle e ameaçava todo o sistema.

     Depois de ler cuidadosamente os originais que eu havia lhe encaminhado, o editor de polícia veio ao meu encontro num café da cidade e foi direto ao assunto. Disse que seu jornal simplesmente não publicaria nada sobre aquele dossiê, que além do relato literário incluía planilhas contábeis surrupiadas pelo anão informante. O motivo do desinteresse pela notícia era até certo ponto plausível, pois a firma figurava entre os principais anunciantes da casa.

     Em seguida, entrei numa lan house e disparei mensagens contendo partes do dossiê a pessoas da minha lista de e-mails, sites de notícias, redes sociais, jornais e revistas de circulação nacional na esperança de que alguém pudesse repercutir o assunto. Afinal, a morte da secretária seria apenas a ponta de um iceberg de grandes proporções e fugia ao bom-senso a ideia de que este pudesse permanecer encoberto até se derreter completamente no mar de lama que o sustentava.

     A ordem do diretor de redação, segundo o editor de polícia, havia sido bem clara, ao repetir o lema da empresa: “Aos amigos do jornal, tudo; aos inimigos, o rigor da lei”. Desse modo, voltávamos todos à estaca zero. Afinal, se o maior periódico da cidade se recusava a publicar a verdade, que dirão os tablóides sensacionalistas? Já as poucas emissoras de rádio limitavam-se à leitura das manchetes do dia, na base do gilete-press, já que seus diretores estavam mais interessados na audiência da programação musical ou esportiva do que no noticiário propriamente dito.

     E foi nessa hora que me lembrei do produtor de televisão que fora pressionado a quitar sua dívida com o Jota. Eu o conhecia de vista, de alguns eventos culturais do tipo vernissage e sessões de autógrafos, mas ele certamente não se lembraria de mim. Tentei falar por telefone e não consegui. Fui até a sede da emissora, mas ele não quis me receber. Colei a bunda no sofá da recepção e fiquei ali o resto da tarde, até que finalmente o vi sair.

     Expliquei que tinha em mãos um documento explosivo contra a firma e, antes que terminasse de falar, o cara foi logo dizendo que se tratava do seu maior anunciante e que por isso não estava interessado. Diante do argumento tão convincente, preferi me calar. Até porque, se falasse do Jota, aí é que ele não ia mesmo se interessar pelo assunto ou talvez distorcesse os fatos na intenção de prejudicá-lo ainda mais.

     Um sentimento de derrota me invadiu o espírito. Se os ventos não mudassem de rumo, mais uma vez veríamos um inocente ser condenado a ficar atrás das grades pagando por um crime que não cometeu. Apesar do desânimo, entreguei uma cópia do livro ao advogado, pra que fosse anexada ao processo como um dos argumentos da defesa.

                                                                

                                  

                                   XIV

     Alguns dias se passaram, até que minha estratégia começou a surtir o efeito bumerangue. Por uma estranha ironia, recebi um e-mail de antigo cliente contendo em anexo exatamente o dossiê contra a firma que eu havia jogado na rede. Isso era sinal de que a notícia que não havia interessado ao maior jornal da cidade tornava-se agora uma denúncia apócrifa que vagava feito uma espaçonave fantasma perdida no ciber espaço.

     Francamente, não sei se era uma boa constatação. Lembrei-me da máxima de Joseph Goebbles, ministro do Povo e da Propaganda do governo de Hitler. Segundo ele, uma mentira muitas vezes repetida torna-se verdade. E foi baseado nisso que os nazistas enganaram boa parte da Alemanha, inclusive a si mesmos. Na era da internet, eu começava a desconfiar exatamente do contrário. Isto é, que uma verdade muitas vezes repetida podia se desgastar ao máximo, tornando-se uma grande mentira veiculada pelas redes sociais.

     No entanto, novamente sou forçado a reconhecer que de onde não se espera é que vem. Mais uma vez o anão da escarradeira me surpreenderia com sua habilidade e perspicácia. Durante um novo encontro na mesma boate em que havíamos nos reunido com o Jota, ele disse que não deveríamos nos dar por vencidos, pois tinha na manga um plano B que surtiria grande efeito na mídia. Perguntei do que se tratava e ele fez suspense, dizendo apenas que reservava a todos uma grande surpresa.

     Na manhã seguinte, pouco depois do início do expediente, o prédio da firma teve que ser evacuado às pressas devido a um alagamento de grandes proporções. Anão filho da mãe, disse comigo mesmo ao assistir o jornal matutino da TV local. Nesse momento, o telefone tocou. É só falar no diabo que ele aparece, pensei ao ouvir sua voz grossa do outro lado da linha. Quase eufórico, o anão explicou que havia enrolado a mangueira de incêndio no busto do Patriarca e prendido a ponta metálica sob a base de concreto.

      Além de esvaziar o reservatório do prédio e inundar várias salas em outros andares, a violenta pressão da água havia removido a terra do jardim suspenso, arrancando os cactos pela raiz e trazendo à tona, em meio à lama, um esqueleto com roupas de mulher. Eram, naturalmente, os restos mortais da secretária que havia desaparecido há cerca de dez anos – o que o teste de DNA confirmaria dias depois.

     A dantesca visão foi presenciada pelos bombeiros que atendiam a ocorrência e comprovou que uma boa imagem vale mais que mil palavras – embora seja difícil dizer isso apenas com imagens. Afinal, a equipe de TV noticiou tudo ao vivo, sem sofrer qualquer tipo de censura por parte da direção da emissora, que não teve tempo pra impedir a transmissão. Assistindo na telinha, fiquei boquiaberto, na certeza de que aquilo era o início da avalanche de merda que poderia sacudir os pilares da firma. Poderia!

XV

                                  

     No noticiário da noite, a TV local literalmente jogou a lama no ventilador. Motivada pelos altos índices de audiência da cobertura ao vivo sobre o alagamento da firma, a direção da emissora resolveu desafiar o poderoso anunciante e repercutir o furo de reportagem, acrescentando novas informações.

     O assunto já havia chegado aos sites de notícias e algumas emissoras de rádio da cidade também noticiaram. No dia seguinte, com exceção do maior jornal local, a imprensa finalmente deu crédito ao dossiê que eu havia remetido às redações pelo correio eletrônico. E assim a coisa começou a crescer igual à massa do pão quando leva fermento. Em outras palavras, mais esqueletos começariam a sair do armário.

     Curiosamente, dando provas de ser um mestre da dissimulação, o gerente de produção, ainda interino no cargo de diretor-executivo, concedeu uma entrevista coletiva e comprometeu-se a fazer tudo o que estivesse ao seu alcance pra esclarecer os fatos. Ele negou ter conhecimento das denúncias contidas no dossiê e comunicou que havia contratado uma empresa de auditoria pra examinar todos os arquivos da firma. Seu objetivo, ele garantiu solenemente, era pôr a sujeira em pratos limpos, mesmo que isso pudesse comprometer algum membro da direção.

     Quem certamente tremeu nas bases foi o senador recém-empossado, que embora gozasse do privilégio da imunidade parlamentar teria sua imagem desgastada pelo noticiário. Dias depois, o maior jornal da cidade finalmente começou a publicar notas sobre o caso e o editor de polícia me procurou com a proposta de fazer comigo uma entrevista exclusiva.

     Declinei da oferta e disse que a melhor pessoa pra falar do assunto seria o Jota. No entanto, o advogado não concordou, alegando que tudo o que ele dissesse poderia comprometê-lo no tribunal. O melhor a fazer era aguardar o julgamento em silêncio, pois todas as provas seriam apresentadas pela defesa na hora mais oportuna. Nesse caso, quanto maior o sigilo, maior o impacto.

     Dias depois, devido à repercussão do escândalo em nível nacional, o advogado conseguiu um hábeas corpus e Jota finalmente teve sua prisão preventiva relaxada sob o compromisso de permanecer na cidade. Como seu loft ainda estava interditado por ordem da promotoria, convidei-o novamente a se instalar no meu apartamento, onde certamente estaria seguro – se é que alguém poderia gozar de plena segurança em tempos tão conturbados.

         

 

                                    XVI

      Dizem que santo de óculos, cabeça de bacalhau e enterro de anão são três coisas que ninguém nunca viu. Não sei quanto às duas primeiras, mas enterro de anão eu já vi. Aliás, eu e o Jota, pois ao ouvir a notícia na TV não poderíamos deixar de comparecer ao velório. Era o mínimo que poderíamos fazer em memória do nosso principal colaborador, aquele sem o qual nossas denúncias não teriam sensibilizado a mídia. Sem ele, este livro provavelmente teria se tornado uma obra inacabada.

     O anão da escarradeira foi atropelado ao atravessar a rua onde morava. O corpo foi atirado a seis metros do local do acidente, caindo já sem vida no passeio em frente ao seu prédio. Quem testemunhou a cena sequer teve tempo de anotar a placa da van preta de vidros fumê, que arrancou em disparada e virou à direita na esquina logo em frente.

     Queima de arquivo, deduzimos. No entanto, a polícia descartou a hipótese, alegando que os carros geralmente trafegavam velozes por aquela rua, o que já havia levado alguns moradores a reivindicarem da prefeitura a instalação de um radar ou redutor de velocidade. O nome do próprio anão constava do abaixo-assinado.

      Ele havia morrido em decorrência de um traumatismo craniano, revelou o exame de necropsia realizado pelo Instituto de Medicina Legal. Também havia fraturado vários ossos, inclusive a coluna vertebral, em três lugares. Se tivesse sobrevivido ao acidente, o mais certo é que terminaria seus dias numa cadeira de rodas.

     Pouca gente compareceu ao enterro na manhã chuvosa do dia seguinte, num dos principais cemitérios da cidade. Além de Jota e eu, meia dúzia de colegas da firma, cinco vizinhos e duas primas anãs com as quais o morto ainda mantinha contato foram dar-lhe o último adeus. Apesar dos lamentos de praxe, ninguém chorou sua morte.

      Mas o pior é que as trágicas coincidências não pararam por aí. Vimos no telejornal que o garçom que havia nos atendido na boate, quando nos reunimos com o anão, havia morrido na favela onde morava. Fora atingido por uma bala perdida. Curiosamente, naquele mesmo dia, não havia sido registrado nenhum tiroteio entre traficantes das duas gangues que disputavam território no morro. Fosse como fosse, lá se foi a única testemunha que poderia confirmar o álibi que o advogado apresentaria no tribunal, em defesa de Jota. Dessa forma, tudo havia voltado para a estaca zero e ele permanecia na condição de principal suspeito da morte da ex-secretária da firma.

                                                                                         

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