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              O que é poesia?                                                                                                                                                             Delmino Gritti

Aristóteles no seu livro “Arte poética” diz que “não é oficio do poeta o contar as coisas como sucederam, mas como deveriam ou poderiam ter acontecido, possível ou necessariamente”.

 

Não há boa prosa sem auxílio da poesia. Na prosa pode haver poesia, mas na poesia só pode haver poesia. A poesia está mais no modo de perceber do que expressar. Está mais no sugerir que no dizer. Desta forma, a leitura de um poema é diferente da leitura de um romance. Na leitura de um poema, o leitor dá o sentido que quiser. Convém também que o leitor acredite que o autor tenha querido dizer algo. Se o leitor achar que está diante de um mero jogo de palavras, então o poema fracassou. Quanto ao sentido, podem haver diversos sentidos num único poema, todos igualmente válidos. Se um poeta escreve com sinceridade, então o poema não fracassa. A poesia é um fato misterioso, inexplicável, jamais incompreensível.  A poesia diz o que não pode dizer a prosa, disse Eliot. A poesia supõe expressão mais concentrada. A leitura de um poema é um exercício que exige um grande compromisso de sensibilidade e de inteligência, um esforço que entrega em troca um gozo muito intenso. Portanto, a poesia exige uma leitura pausada e um retorno sobre o lido.

Mario Quintana referindo-se à poesia e à prosa, diz: (...) “A prosa não tem margem, nunca se sabe quando, como e onde parar. O poema, não; descreve uma parábola traçada pelo próprio impulso (ritmo); é que nem um grito. Todo poema é para mim uma interjeição ampliada, algo instintivo, carregado de emoção”.

E no dizer de Alvaro Mutis, “a poesia é uma prova mais intensa que a prosa. É um continuo testemunho do mundo, da vida e da morte”.    

“Al prosista le es imprescindible el diccionario, al poeta debiera ser le insuficiente”. (Enrique Gracia Trinidad). “Para um poeta não se trata nunca de dizer chuva, mas criar chuva”. (Paul Valéry)

Completando com Emily Dickinson: Com a poesia eu habito a casa da possibilidade.  A poesia tem mais portas e Janelas que a casa da razão.      “Que o verso (o poema) seja como uma chave que abra mil portas e que a alma do ouvinte e do leitor permaneça estremecendo". (Vicente Huidobro).

Ser poeta não significa uma pessoa que faz versos. Significa ser criador. Assumir uma solidão sonora que lhe permite chegar mais plenamente aos demais seres humanos. Desta forma não é isolamento ou falta de presença de seres humanos. É um viver único que exige um silêncio, uma contemplação desde o mais íntimo de si mesmo. Por outro lado, não há forma mais plena de comunhão e de sentir a existência do outro. Um poema não é um jogo de palavras. “Não está feito só de palavras sobre um papel. Está feito também dos silêncios que rodeiam essas palavras. Silêncios que irão fecundar as palavras”, disse Paul Claudel. Neste caso, muitas vezes a preocupação pela rima torna o poema um jogo de palavras, mesmo que isto possibilite ritmo. O ritmo é possível sem a rima, na medida em que o verso (a palavra) sugere. Como disse acima, poesia é mais sugerir do que dizer. Muitas vezes a rima é usada para substituir a metáfora que é fundamental na poesia. Nem a rima nem a métrica são elementos essenciais do poema. Os elementos essenciais da linguagem poética: as metáforas e o ritmo.

Poesia, a dor mais antiga da terra que nos salva do mal estar e de tantos infortúnios. A habilidade, o talento verbal do poeta deve possuir a virtude de filtrar-se nas entranhas da alma alheia e arrancar-lhe estremecimentos profundos. “Alta engenharia do coração”, disse o poeta Gonzalo F. de la Mora.  A poesia não vende porque não se vende. Por ser a mais livre das liberdades, é por essência um contra poder. A poesia é inútil e justamente por isso serve por ser inútil. A poesia não admite moda porque sempre anda nua, sem concessão nem alarde.

 

Quando um poema se deixa ler com paixão, o leitor sente-se como autor também no instante da leitura. O leitor torna-se personagem. E quando se emociona na leitura de um poema, é ele que cria o ritmo e nele entra. É nisto que se conhece que o poema é belo. Em referência a isto, J. L. Borges diz: (...) “Se uma pessoa lê uma poesia e se é digna dela, a recebe e agradece e sente emoção. E não é pouco isso. Sentir-se comovido por um poema não é pouco. É algo que devemos agradecer”.

“A virtualidade do poema consiste em produzir no leitor uma comoção de elementos de consciência profunda igual ou semelhante a que foi o ponto de partida da criação”. (Dámaso Alonso)

 

As palavras poéticas devem provocar sentimentos. E os sentimentos não precisam ser necessariamente autobiográficos, mesmo que de uma forma ou outra, sempre está (direta ou indireta) a visão do poeta sobre o mundo, do cotidiano em que vive. Têm que possuir a virtude de filtrar-se nas entranhas da alma alheia e arrancar-lhe estremecimentos profundos. Alta engenharia a serviço do coração.

“La palabra poética, y tal vez sólo ella, dice otra cosa, esa otra cosa que nunca dirán los otros discursos, y donde se oculta la sustancia íntima y la primigenia razón de ser del arte. Esa otra cosa imposible de definir, hace de la poesía la más provocativa, la más subversiva y profunda de las artes del ser humano”. (Aldo L. Novelli) “Na literatura há uma tendência enorme em criar centros de poder e não há nada que negue mais a emoção da palavra poética que o poder". (José A. Valente)

 

A poesia (ser poeta) é um modo de vida. No futuro poderão desaparecer os sapatos e outras coisas, mas não a poesia. O fazer poético é inseparável da sua maneira de ser e de questionar o mundo. Não há ninguém mais frágil que um poeta. O poeta é um indisciplinador de almas, disse Fernando Pessoa. Os poetas sempre escolhem a margem para viver. O poeta vive no silêncio, e por ser raro, torna-se precioso. Ser poeta é possuir essa inabilidade para o mundo do lucro e da usura.

 

O papel do poeta, do escritor não é dar soluções. Por isto o distingue do político, do economista e cientista. (...) “Os políticos são os seres mais vestidos do mundo. Mais nus os poetas”. (Carlos D. de Andrade). “Em todo poema verdadeiro há uma luta pelo domínio da linguagem. E ali é onde fracassam os filósofos e os políticos. Eles usam a linguagem, mas são usados. Os poetas tratam de ir mais longe", (Elías Uriarte)

O poeta é um ser descarnado. Uma pessoa que anda pelo mundo sem pele, com carne viva. Por isto, o que acontece lhe afeta mais que a outros. Nada que o proteja. Como resposta a vida lhe dá a poesia. E ela é uma das válvulas que temos para liberar a caldeira da pressão que vivemos, tanto na alegria como na dor. O poeta vê o que o filósofo e a maioria das pessoas pensam. “Os poetas, como os cegos, enxergam no escuro”. (Jorge L. Borges)

O poeta dorme no sitio das palavras, limpa o óxido das mesmas e sangra no sono. Os poetas são os que sabem antecipar as auroras e os ocasos do mundo. Nunca são complacentes porque conseguem ver as coisas por dentro e descobrir os lugares mais escuros e secretos da alma. Converter a dor em música, a função do poeta. Que precisa um poeta para viver? Um poeta não precisa quase nada para viver. Umas gotas de orvalho e ler poemas para as andorinhas. Observar como é belo o silêncio e o vento que move as pequenas flores.

 

Voltando à questão que a poesia é mais sugerir do que dizer, um poema pode provocar várias leituras. E quanto mais leituras tiver um poema, mais significativo, mais rico ele é. Muitos poetas já o disseram: cada poema já não nos pertence. O olhar do leitor é o que sustenta a poesia. Em toda leitura de um poema há um ato criador e o hálito do leitor acende o poema de novo.

 

Os poetas sempre falam dos mesmos temas: as perguntas que todos os seres humanos carregam na sua vida: o que é a vida, o que é a morte, o amor, o tempo e também as perguntas sem respostas. Sempre descobrem novos estremecimentos. Que poder buscam, quando o único domínio importante deveria ser o mesmo dos alquimistas? O verdadeiro poeta é aquele que sempre instaura novos estremecimentos. Por isto, o poeta operário do assombro, está no mundo e sua maneira mais intensa de habitá-lo, sua forma mais intensificada de existir está precisamente na duração mesma do poema. Por esta razão, da benéfica solidão, da fértil desolação e da importância de todos os abismos, a palavra poética é liberdade e insubmissão. Os poetas possuem não apenas um olhar que vê, mas também um olhar que ilumina e se deixa olhar. Arrancam das palavras e do silêncio um estremecimento fecundo. Por esta razão, a poesia não é um simples conhecimento. O caráter excepcional da experiência poética não pode estar fundado em nenhum sistema ético ou estético.

Os poetas não possuem nenhum poder, exceto o de exorcizar a morte, as pestilências deste mundo. Não levam nenhuma estrela na testa para serem reconhecidos. Eles apenas nos ensinam a não ter e a nada perder. Os poetas estão sempre à escuta de um sismo interior. Os poetas apagam a realidade para lhe pôr outra melhor por cima. “O perdurável é obra dos poetas”. (F. Hölderlin)

 

*Num poema não deve haver preocupação por mensagens. Quando há preocupação por mensagens, o poeta se revela de forma escancarada. O próprio poema revela o poeta.

 

*A maioria das pessoas diz que muitas vezes não entende um poema. Eu digo que há muitas coisas na vida, além de um poema, que não entendemos. Na poesia, sentir é algo profundo e compreender é algo superficial. Rachel de Queiroz disse algo extraordinário sobre a poesia: “Poesia. Que seria do mundo sem ela? A poesia é alimento da alma apesar de todas as sombras”.

A poesia está sempre em estado de perguntas múltiplas. Um poema é um texto que nunca pode ser entendido por completo. O mistério, a parte incansável do poema. Não há palavras para nomear o mistério, mas entende-se que todas as palavras no poema o aludem. Portanto, o poema é um teatro em que o poeta é o auditório, a cena, a escenografia, os atores, o atuar, o público, o crítico. Tudo ao mesmo tempo.

 

O leitor ideal de poesia é aquele que se apodera do poema, transforma-o acrescentando-lhe algo de si, de sua vida. De outro modo não vale a pena ler poemas ou livros, disse Casimiro de Brito.  Cada vez que alguém lê um poema, novo torna-se o poema. O significado original pode até perder-se. E é bom que se perca. Nesta perda há benefícios para a pessoa que está lendo. Ler poesia de forma demorada. Saber deter-se em cada linha, em cada giro, em cada imagem, em cada elemento, em cada silêncio dos grandes poetas. Como diz Roberto Juarroz, “cada poema tem algo de relâmpago, instante de plenitude, porque a poesia como forma de experiência, é de maior intensidade possível: É tão intensa como a morte ou talvez mais intensa que a morte”.

Para que essa intensidade aconteça no leitor e a absorva, é necessário compreender que um poema não pode ler-se como qualquer outro gênero. O leitor de poesia torna-se ator, criador também, como se fora ele mesmo que realiza a obra. Na leitura de um poema, o poeta pede que o golpeie nesse lugar indeterminado entre o plexo solar e a alma, esse ar que pede a boca do estômago. Como digo, um poema não é uma sopa de palavras flutuantes no papel da garganta. É palavra plena, exata na branca extensão do corpo. Nos lábios e nos olhos, o assombro.

Quando terminamos de ler um poema já não somos os mesmos. Nele algo nos conforma o algo nos sacode. Um mundo sem poesia ficaria mudo. A voz dos poetas tem contribuído a evitar o aniquilamento da palavra. Na poesia há sempre um anseio para a plenitude do ser. E se a poesia não serve para nada, por que permanece e não desaparece?

 

A função do escritor, do poeta é criar no que escreve uma tensão que encante o leitor e o mantenha enfeitiçado. O poeta caracteriza-se por ter uma criança dentro de si, muito viva e criativa. O silêncio e a solidão são fontes incubadoras da sua poesia. O poeta escreve para que seu silêncio soe, se debate e amplie o eco infinito da música.

O poema que vale e justifica seu registro é o que assalta o leitor para que abandone o afã das certezas e prossiga no oficio dos enigmas. Desta maneira, a poesia é como um testemunho do êxtase, do amor feliz e também do desespero e um estremecimento diante do mundo porque é a forma mais plena, mais intensa da vida e da relação dos seres humanos.

A poesia é um dos poucos lugares onde a palavra não fracassa. Como diz R. Barthes,a poesia é a linguagem de todas as exceções da linguagem, A poesia não tem nenhuma gramática, não possui sintaxe definida, não tem nenhum aspecto da Filologia que possa expressá-la completamente”. A poesia é uma linguagem que se inventa a cada momento e é preciso servir a essa linguagem, a pequena revelação ou iluminação que surge em cada poema: a palavra liberando toda sua força. Quando o leitor sente isto, vive a poesia como necessidade, celebração, transgressão, abismo e assombro permanente. Não há lugar nela para a comodidade, a mediocridade e a estupidez. Temos assim a prática subversiva da poesia. A poesia, lugar onde a palavra atinge a vigência plena, máxima, substantiva. “A poesia é uma solidão muito acompanhada”, disse Casimiro de Brito. Um poema é o mais poderoso dos agentes secretos, grande explosivo de esperança.

O poeta não escolhe seus leitores, é escolhido por eles. O gosto da poesia é uma aliança de lucidez e ardor, uma exigência de aventura e rigor. Sempre tem o nada ao alcance da mão. Todo dia descobre um subterrâneo mais profundo. O terremoto. O epicentro nele mesmo. Para o poeta, viver é extremamente perigoso.

O ato poético é uma viagem interior nas zonas mais obscuras do ser humano. “E o poema nasce quando a temperatura é capaz de fundir todos os metais”, disse Ferreira Gullar. A experiência poética tem algo de nascimento. Poesia, ato sacrílego de querer nomear. O poeta nomeia não para afirmar, mas para perguntar e negar. O poeta quer pensar mais além do que está permitido pensar. A palavra poética é um intento de ir mais além dos limites do próprio pensamento, um intento impossível, mas que no seu esforço abre portas e cria novas realidades. A gestação, o nascimento de um poema é como estar na área do abismo da linguagem. Para o poeta, toda arte poética começa por arrancar-lhe a pele. O poeta é um espião das palavras e um agente do mais absoluto silêncio. Ele acumula tanta divindade que já não pode morrer. A poesia ressuscita na sua boca e sua língua encosta de leve o divino. Portanto, um poeta não necessita quase nada para viver. Algumas gotas de orvalho, ler poesia para as andorinhas e outros pássaros. O poeta é um profeta que perdeu duas consoantes, disse Francisco Gandolfo. Poeta, místico escultor das palavras.

O que é então a poesia? Essa tem sido a eterna pergunta de todos os tempos. É necessário por acaso uma resposta? Não é suficiente o prazer que proporciona a leitura de um poema ou de um livro de poesia com o qual a gente se identifica? Cada leitor tem sua própria resposta. A poesia serve para a vida. Na poesia está o tempo, o amor, a morte, a solidão. Realidades que não têm preço. A poesia sustenta a capacidade de indignar-se e ao mesmo tempo de mantermos a dignidade humana.

A Poesia mantém a saúde da linguagem. É um eterno pastoreio de abismos, de perguntas, de buscas, de viagens onde nos encontramos a nós mesmos. Poesia, este consolo de bêbados pelos ruídos das palavras. Um estado de alerta, uma espécie de iniciação sobre o valor alucinatório da linguagem. Palavra de aflição, mesmo quando luminosa. O poeta coloca um leito de fogo no leito das palavras. Poeta, “pastor do ser”, na tão bela expressão de Heidegger. O poeta “arde e se consome” transmudando em luz tudo o que toca. A poesia é a perpétua procura das fontes ocultas do ser. E a tarefa do poeta é desocultá-las. A palavra do poeta é uma palavra preocupada. Os poetas são como as cigarras que persistem em sonhar alegria até no seio da morte.

 

A poesia é muito mais que um oficio ou profissão. A dor mais antiga que existe na terra. Está sempre em estado de pergunta. E suas perguntas são múltiplas, mesmo que aparenta afirmar algo. Não se aprende nas escolas, nas universidades. Nem sequer nas oficinas literárias. Isto não significa que seja uma simples improvisação ou um dom divino ou uma inspiração no sentido mágico da palavra. Menos ainda um dom inato, mas sim um despertar no domínio da arte da linguagem, dimensão de entrega total ao fato criador em que o poeta joga-se todo com a pretensão de ir com a linguagem mais além da linguagem, assumindo muitos riscos se forem necessários. “La poesía es el territorio de la última palabra. El poema es el país donde se dice la palabra final”. (Antonio Gamoneda)

 

A poesia é a expressão levada ao seu último extremo, o extremo do ser humano, da linguagem e da realidade, o quase impossível de expressar. “É a palavra essencial no tempo. A palavra que indaga a essência no coração do real”, disse Antonio Machado. Ela não se atém a preceitos, normas, decretos. Seu mundo é pura heresia. Todo verdadeiro poeta é um herege. A poesia não é explicação de nada. É uma experiência que nos leva a viver os últimos limites. É também a experiência profunda do mistério, do inexplicável, dos aspectos da realidade que não são visíveis. “As obras de arte são de uma infinita solidão. Nada pior que a crítica para analisa-las. Só o amor pode alcança-las, guardá-las, ser justo com elas”, disse Rilke.

A poesia carrega sempre as perguntas constantes: o que é nascer, durar um tempo e morrer? Estas perguntas as faz perante o abismo. “Toda grande poesia deve enfrentar-se com a morte e ser uma resposta à morte”, disse O. Paz. O poeta, aprendendo esse humilde e tremendo oficio de ir amando as palavras porque sabe que a poesia é o lugar onde a palavra não fracassa, não se conforma com o valor de mercado das palavras. Não se resigna às palavras como instrumentos desgastados, mas sim senti-las como seres vivos, reconhecê-las como pequenos animais que temos nas mãos, na boca, na alma, então o manejo e a entrega a tudo isto é algo muito decisivo, muito grave porque não admite superficialidade. O poeta leva as palavras a seu extremo, à sua última possibilidade de criar ou expressar algo porque a poesia é a maior plenitude possível da vida que o ser humano possa aceder. Sendo o poeta uma concentração do humano, surge então como um antagonista, um inimigo da sociedade. O poeta não fala à sociedade, mas ao ser humano, da solidão, do silêncio, das perguntas permanentes que ele sempre carrega. A sociedade é ruído, busca permanente do lucro, do poder. A poesia, ao contrário, busca o maior respeito ao ser humano. O poeta não reconhece privilégios. Não busca ideologias, moralismos, politica, comércio. O poeta é um ser marginal, um exilado. Só assim poderá falar ao ser humano. Ele não ensina nada: cria e comparte. Tem sempre presente que a poesia é ser e por isso é o último reduto de salvação num mundo em que está se afundando. Tem presente também que a única forma de entrar na poesia é estar dentro, senti-la como necessária.

A poesia é sempre contracorrente e o poeta um trabalhador na raiz. Não há barricada que detenha a poesia, ainda que o poeta caia quando verdadeiramente o é. O poeta faz de sua dor beleza. A poesia é rebelião total, desde a linguagem até o silêncio último. A verdadeira poesia evidencia um poder detonador também no campo cultural, que quase sempre se trata de oportunismos que exploram aquilo que dizem dedicar-se. A poesia rompe a cultura formal, afugenta os analfabetos letrados e põe tudo em crise. E ninguém compra crise porque não tem valor de mercado. A poesia, como disse acima, não é matéria que se ensina, nem cultura para uso da moda, nem atividade de funcionários.

Quem nos ensina a amar, a morrer, a sofrer, a ser, a não ser? Assim concebida, a poesia dirige-se a todos os seres verdadeiros capazes de assumir sua condição humana sem preconceitos, sem pretensões. É possível alterar a morte, o ser humano, o mistério, o infinito? Se as respostas são NÃO, a poesia então possui futuro. E o futuro da poesia é como seu passado: para ela não existe tempo. A poesia é.

                          A prosa antes foi verso

                          O verso antes foi canto

                          O canto antes foi grito.

A poesia muitas vezes nos conduz até à loucura e ao mesmo tempo nos salva dela. A última tensão, exigência da poesia é quase uma loucura. Toda loucura acontece nesse extremo do ser humano que é a criação, quando se entrega à poesia.

Portanto, a poesia é uma forma suportável de viver a loucura em que o ser humano não se perde a si mesmo. A poesia tem sempre algo de loucura porque tem sempre algo de salvação e perdição simultânea. Para os poetas, a loucura está mais perto da divindade que a razão. É uma forma de loucura que nos salva do bom senso da maioria idiotizada, anestesiada por falsos valores. “O artista é o único capaz de conviver com sua loucura de uma forma proveitosa”, disse E. Cioran. Como já disse acima, a poesia está feita de palavras que tratam de chegar mais além das palavras. É neste extremo que o ser humano fica despojado de tudo, abandonado nas perguntas fundamentais da vida. Sendo assim, a poesia é o maior encontro possível com a morte antes de morrer. Talvez assim comece a poesia.

 

A poesia quando ameaçada, sempre sabe onde encontrar um refúgio. Renegada, sempre conserva o instinto de arraigar-se em regiões insuspeitas. Para ela não há grandes e pequenas partes do mundo. Seu lugar está no coração de todos os seres humanos. (Delmino Gritti)

Penso que uma das provas mais duras que se apresentam às vezes ao poeta, ao artista é a aceitação de sua marginalidade. A sociedade atual, ruído e campo de concentração dissimulado, exaltação de lucro e poder, está feita para que brilhem as “estrelas” da TV, os jogadores de futebol, os políticos corruptos. E também, muitas vezes a prosa dá ordem de despejo à poesia.

 

“Neste desvairado mundo, onde a poesia se encolhe num espaço cada dia mais exíguo, para perseverar no seu canto. Canto de cujo encanto a tecnologia e este sistema consumista tem pavor”. (Thiago de Mello)

 

“Nossa sociedade é cada vez mais antipoética. O capitalismo é o mais antipoético que a humanidade tem conhecido, no sentido amplo do termo e também no sentido técnico”. (Juan Gelman)

 

“Na sociedade industrial capitalista-consumista, neoliberal de hoje, a poesia não possui lugar porque é a guardiã do mais humano que há no ser humano. E pensando profundamente, hoje a vida humana é uma mercadoria banal e barata o bastante para ser consumida em todo e qualquer circo ou shopping (a catedral do deus mercado) a fim de divertir as multidões. Ser “civilizado” significa possuir e consumir o máximo de coisas inúteis. E a autêntica e derradeira realidade é o lixo. Atirar tudo para o lixo, o mais rapidamente possível. Esta é a mais imperiosa ordem que atualmente recebemos da sociedade de consumo, da propaganda e da publicidade”. (Delmino Gritti)

 

“No mercado do livro, salvo em raríssimas exceções, a poesia não é considerada rentável. Ainda que no caso de algum editor que, depois de dez romances e outros tantos livros de ensaios, inclui no seu catálogo um pequeno caderno de poemas, o gesto sempre tem um caráter pouco menos que misericordioso”. (Mario Benedetti)

 

“É uma sorte que a poesia não seja um bom negócio. O segredo da poesia radica no excepcional receptor que tem: não é um leitor corrente, passivo. É um leitor especial. Ler poesia é como reescrever, outra forma de criação. Esta excepcional qualidade receptora coloca a poesia num plano de vantajosa marginalidade. A consequência imediata e que se vê menos afetada pelas manobras editoriais, como publicidade, índice de vendas, etc. Poderá não haver poetas, mas sempre haverá poesia, disse Bécquer. Poderá também não haver editores, mas sempre haverá poesia porque nos acompanha sempre como a fome. E quem confia que a poesia é um meio para estar de acordo a uma espécie de eternidade, está inventando uma maneira nova de sonho e oficio de viver. Sensibilíssimos sismógrafos, os poetas. A poesia engravida minha vida. Encontra-me quando me perco, apresso-me em seus caminhos. (Delmino Gritti)

 

“A poesia é o gênero literário que mais tem apostado para conservar a essência de suas origens. Os outros gêneros- o drama, a narrativa, etc. - apostam por outra coisa: Ter um público que o louve e granjeie favoritismo nos leitores. A poesia segue sendo hoje o mesmo que foi em seus tempos de origem, quando através de um sagrado uso da língua procurou resguardar o legítimo direito do criador artístico a defender sua subjetividade mais além dos interesses dos leitores ou espectadores ocasionais que liam ou ouviam suas criações. Se um leitor quer acompanhar o poeta deve abandonar o afã das certezas e prosseguir o oficio dos enigmas”. (Celso Medina)

 

“Hoje a nobre tarefa criadora vê-se pisoteada por uma tropa de audazes que puxa com braços e pernas para poder lograr um assento no ônibus da fama, essa fama que hoje corre pelos tristes caminhos da indústria cultural do deus mercado. Que seria dos cegos sem Homero, sem Milton, sem Borges, que lhes tem dado prestígio e mistério? E dos mancos sem Cervantes, sem o Aleijadinho com sua poesia de pedra? Nunca se viu a um editor queixar-se da Ilíada, da Odisseia, nem de Dante Alighieri. Que tal um Virgílio, um Horácio crendo e explicando que poesia não serve para nada?” (Jaime J. Escobar)

 

Por que as pessoas não leem poesia? Roberto Juarroz respondeu: -Porque têm medo. Porque a poesia as coloca às intempéries. E quem resiste nesse clima de alta tensão e de alta pressão? Quem resiste que a morte seja tão natural como a vida?

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Delmino Gritti é filósofo, escritor e trabalha há 50 anos com livros. Sobre ele, Moacyr Scliar comentou o seguinte: "Nunca vi Delmino fora de uma livraria. Parece e existe entre eles uma mútua e poderosa atração". É autor de Sobre o livro e o escrever (Liddo, Caxias do Sul, 2007), um tijolaço em dois volumes contendo quase 1200 páginas.

Leia também seu outro ensaio:

Mistérios da Criação

A vida dos escritores que comeram o

pão que o diabo amassou

 

 

 

 

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