Volta para a capa
Romance inédito

 

            Primavera dos mortos

                                                                     Jorge Fernando dos Santos

                                               Parte 1

                              Capítulo 5 - Leôncio Duarte

O MÊS ERA outubro e o dia era de festa à padroeira, Nossa Senhora do Rosário. Apesar do intenso movimento de romeiros vindos da zona rural, consegui alugar umas redes para mim e os dois almocreves nos fundos da única pensão do lugarejo. Havia lá um curral onde deixamos os animais devidamente desencilhados, comendo farelo e capim gordura em coxos de aroeira.

De banho tomado e barriga cheia, fomos nos juntar aos moradores para ver o congado na praça da matriz, logo depois do anoitecer.

O lugar estava todo enfeitado com ramas de bambu, que sustentavam bandeirolas de papel e fitas coloridas. Tudo muito bonito, com gente bem vestida por toda parte.

Seu Arlindo nos viu perto da igreja e se aproximou para puxar prosa. Meus olhos esquadrinhavam a multidão à procura de Gláucia Maria. Por enquanto, bastava-me a atenção do coronel, cuja amizade poderia abrir a cancela para minhas pretensões amorosas.

Os dois peões foram ver de perto os congadeiros, que prosseguiam a cantoria em louvor à Santa, sapateando ao ritmo do moçambique tocado em violas e caxambus.

Gente festeira a de Morro do Calvário, comentei, depois de apertar a mão do velho.

Ele acendeu um cigarro de palha e disse que tinha muito orgulho do lugarejo onde nascera e se criara.

Quis saber o motivo daquele nome, que lembrava o lugar onde Jesus morreu crucificado.

Vejo que o amigo já leu as Escrituras, ele comentou com certo contentamento, enquanto cofiava o bigode amarelado de fumo.

Guardei muita coisa do catecismo, admiti.

Pois acertou em cheio, assentiu o velho. Meu pai dizia que foram os bandeirantes paulistas que batizaram o lugar. Quando aqui chegaram, em busca de ouro no Ribeirão das Mortes, havia três ipês calcinados no alto do morro, provavelmente atingidos por uma faísca. O padre da expedição teria dito que lembravam as cruzes do Monte Calvário.

Comentei que o lugar era bonito e a paisagem, um colírio. E conclui a frase no exato momento em que avistei Gláucia Maria em frente à igreja.

Ela, sim, era o colírio do qual os meus olhos careciam. O rosto iluminado pela vela e o véu branco na cabeça davam-lhe um aspecto angelical, que desafiava a imaginação de qualquer pecador.

Coronel Arlindo notou o meu jeito de olhar e na certa percebeu o brilho da tentação. Pigarreou, cuspiu fragmentos de fumo com a ponta da língua e disse que a filha era quase beata. Por vontade da mãe, ela estaria num convento, explicou.

Seria um desperdício, pensei, fechando a boca a tempo de impedir que as palavras me escapulissem, causando alguma complicação.

O velho explicou que dona Helena ficara entrevada depois de sofrer uma trombose. Como não gostava de aparecer em público na cadeira de rodas, por mero orgulho, ela exigia que as duas filhas nunca faltassem às missas.

O senhor tem duas filhas?

Maria das Dores, a Zizinha, é a mais velha, ele respondeu. Antes dela nasceu o Otávio, que morreu de sarampo ainda menino. Depois veio o Hilário, que servia no tiro-de-guerra, na cidade vizinha de São Roque. O exército o enviou para a capital federal, pigarreou, interrompendo a prosa.

Veja o amigo que país mais injusto é o nosso Brasil, continuou o velho depois de acenar para um casal que passava por nós. Não bastasse ter mandado queimar o café e arruinado famílias como a nossa, Getúlio agora faz a guerra nas Europa e toma nossos filhos para buchas de canhão. Hilário está aquartelado no Rio de Janeiro. Dia desse seu regimento deve embarcar em navio americano rumo aos campos de batalha.

Ainda que mal lhe interrompa, queria saber a idade da caçula, falei impacientemente devido àquela cantilena.

Gláucia Maria tem 16 anos, ele respondeu. Ainda é nova para se casar, advertiu o coronel no exato momento em que a moça adentrava a igreja.

Minha mãe casou aos 15, falei, no exato momento em foguetes espocaram no céu, salpicando de luz as paredes brancas do templo. Uma coruja-de-igreja deixou o ninho na torre e se lançou em vôo rasante sobre a praça, assustada com as explosões. Talvez fosse um mau-presságio, mas não atinei pra isso naquela hora.

Zizinha é aquela de véu preto, atrás da irmã, apontou o velho sem retrucar meu comentário. Desviei o olhar bem a tempo de ver a moça alta e magra, de vestido azul-marinho. Não chegava a ser feia, é verdade, mas estava longe de ter a formosura da mais nova.

 

Já é maior de idade, disse o pai. Fez 21 no mês passado e precisa arranjar marido o mais depressa. Já está de jenipapo maduro e tem que me dar um neto enquanto ainda estou vivo, não é mesmo? Se eu não der um empurrãozinho, recatada feito ela só, é bem capaz de ficar pra titia.

__________________

Capítulos anteriores

Próximo capítulo: 6 - Padre Wenceslau- 10/08/2008