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Romance inédito

Primavera dos mortos

 

Jorge Fernando dos Santos

 

Parte 2

Capítulo 14 - Juscelino Baptista

 

           TUDO LEVA a crer que a irmã de Siá Zizinha foi baleada na cabeça, comentei enquanto tomava cerveja com Dr. Galeno Valadares, no balcão da farmácia, ao cair da noite. Seria essa a única explicação para aquele furo no crânio, acrescentei, enquanto limpava os óculos na frauda da camisa.

O delegado acendeu um Continental sem filtro, deu uma tragada profunda e olhou-me nos olhos. Ele estava do lado de fora do balcão e eu, do lado de dentro.

Não quero tirar conclusões precipitadas, declarou num tom ensimesmado, soprando a fumaça logo em seguida. É preciso esperar o resultado da perícia.

Mas o que lhe diz o faro e a experiência acumulada em todos esses anos de trabalho?

Houve um tempo em que eu tinha muitas certezas, meu amigo. E isso me dava  sensação de segurança. Com o passar dos anos, as certezas se converteram em dúvidas e hoje a única certeza que tenho é que vivemos na era da incerteza.

Diante de tal palavrório, coloquei os óculos, cocei a calva e franzi o cenho sem alcançar o sentido da resposta. Aquilo era por demais filosófico para as minhas poucas leituras. Mesmo assim, tentei apertar o amigo, dizendo que todo mundo em Morro do Calvário sabia há muito tempo que Leôncio e a cunhada tinham um caso.

A lei não vive de mexericos, retrucou o delegado, com veemência. É preciso mais do que isso para se montar um processo e indiciar suspeitos. Claro que em tempos sombrios como o nosso existem autoridades que não levam isso a sério. O resultado dessa estupidez é que estamos cheios de atos indecentes, que atropelam o senso de justiça. Mas não é o meu caso e você sabe disso, Juscelino.

Realmente eu sabia. Desde a sua chegada a Morro do Calvário, aprendi a admirar o delegado pela forma como costumava agir. Um mês depois de ter se instalado no lugarejo, aconteceu um fato que ajudaria a comprovar sua competência como homem da lei.

Havia entre nós a Genoveva, mulher sardenta nascida e criada no lugarejo, que se enviuvara por duas vezes e já estava no terceiro casamento, dessa vez com um mulato conhecido como Geraldo Quitandeiro.

Certo dia, pela manhã, ele embarcou na jardineira com destino a São Roque, onde pegaria o trem para Belo Horizonte. Durante a viagem, passou mal do estômago. Ao desembarcar na rodoviária, estava branco feito cal e vomitava sangue.

O motorista da jardineira pediu ajuda a um cabo de polícia e ambos o conduziram à casa de saúde. Dizem que o coitado nem chegou a ser atendido pelo plantonista. A morte o surpreendeu no momento em que a recepcionista preenchia a ficha de internação.

A direção da casa de saúde comunicou o fato à delegacia do nosso distrito e dr. Galeno foi pessoalmente buscar o corpo. Antes da remoção, pediu aos médicos de São Roque um laudo de necropsia.

O documento confirmou suas suspeitas. Geraldo Quitandeiro havia bebido veneno de rato e seu estômago fora corroído pela ação instantânea do arsênico.

O fato motivou uma investigação policial inédita em nossa região. Dr. Galeno procedeu à prisão preventiva de Genoveva e mandou exumar os corpos de seus outros dois  maridos.

O primeiro, todo mundo dizia, sentira uma dor no peito, enfarto fulminante; o segundo, ainda jovem, sofria do estômago e teria morrido em decorrência de uma úlcera supurada. Tal não foi a nossa surpresa quando identificaram nos restos mortais de ambos resquícios do mesmo veneno que Geraldo Quitandeiro havia tomado no leite, pela manhã, sem saber.

Coagida pelas evidências, Genoveva confessou ter envenenado todos eles e já estava de caso com o açougueiro Galdino quando planejou matar o terceiro marido. Perguntada sobre a razão de tanta crueldade, disse que era só uma forma de se livrar do tédio.

Entornei mais Brahma nos copos e perguntei ao delegado sobre a sua suposta ligação com a Maçonaria. Até que ponto era verdade ou apenas intriga de Siá Zizinha e padre Wenceslau.

Dr. Galeno explicou que estava afastado da Ordem, pois a loja mais próxima ficava em São Roque e não lhe sobrava tempo para comparecer às reuniões semanais. Também se disse decepcionado com alguns irmãos, que pouco faziam em benefício dos mais necessitados e só cuidavam dos próprios interesses.

Minha mulher não quis vir para Morro do Calvário, lamentou, e isso me obriga a ir à capital toda vez que quero ver o nosso filho. Veja você o quanto uma ditadura pode atrapalhar nossas vidas... Mas o mundo e as pessoas são como são e não como gostaríamos que fossem. Paciência!

Caráter não é bem de consumo, Juscelino. É algo que já nasce com a gente e só se manifesta nas horas mais graves. O mau caráter é dado à manipulação e o sem caráter se permite manipular. Pessoas de bem não se prestam a esse jogo e pagam um preço alto pela recusa.

O tom da conversa deixou-me comovido. Bastaram aquelas palavras para que eu entendesse a situação. O delegado sofria com a constatação de que o mundo é dominado pelos injustos, pessoas que usam poder e prestígio para garantir interesses pessoais. Justamente por discordar da ordem estabelecida, ele fora transferido para longe do cenário dos grandes acontecimentos políticos.

Em Morro do Calvário, suas convicções pareciam ser inofensivas, se comparadas ao estrago que poderiam fazer na capital do estado. Inofensivas para os poderosos em nível estadual. No entanto, em nível municipal, no que dizia respeito ao nosso vilarejo, muita gente boa perderia noites de sono devido à astúcia daquele homem da lei.

Assim como dizem que no teatro não existem pequenos papéis, mas atores ruins, na vida real tudo depende do esforço de cada um. E esforço é o que Dr. Galeno não economizaria no exercício do seu cargo e na elucidação dos mistérios que envolviam as mortes de Leôncio Duarte e Gláucia Maria de Moura. 

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