Volta para a capa
Romance inédito

                                                                    

                      Primavera dos mortos

                                                                       

                                                             Jorge Fernando dos Santos

                     

                                                     Parte 3

                                Capítulo 21 - Fogaréu

AQUELES QUE chegam a Morro do Calvário pela primeira vez, geralmente estranham o fato de só haver uma igreja no lugarejo.

O que essa gente não sabe é que, antigamente, a matriz de uma só torre era apenas mais um templo barroco dedicado a Nossa Senhora do Rosário, padroeira dos negros devotos. Ela foi construída pelos escravos no tempo em que o ouro ainda era farto nas areias do Ribeirão das Mortes, chamado pelos índios de Araraúna.

Antes disso, porém, existiu outra igreja, localizada no sopé do morro, onde mais tarde formou-se o cemitério municipal. Era a Matriz de Santo Inácio de Loyola e foi projetada pelos jesuítas pouco antes de serem expulsos das terras portuguesas por decisão do futuro Marquês de Pombal.

A igreja fora erguida pelos coroados sobreviventes da luta travada com os invasores brancos e primeiros escravos a servi-los em sua ganância. Certo dia, ao entardecer, uma índia adolescente, cujos pais e irmãos haviam sido massacrados pelos bandeirantes, cumpriu vingança jurada a Tupã.

Quando a mulher que a adotara ainda menina foi ao templo em sua companhia para rezar novena a Nossa Senhora das Dores, a bugra derrubou castiçais com velas ardentes no console onde ficava a imagem da santa.

A chama fez um rastilho no forro de linho rendado e não demorou a se alastrar pelos ornamentos de peroba e caviúna, carbonizando as paredes e derretendo o ouro do altar.

As poucas beatas que se encontravam na igreja na hora do incêndio saíram de lá apavoradas. O vigário e dois coroinhas deixaram às pressas a sacristia, onde preparavam a missa das seis. Somente a índia rebelde permaneceu no templo, ajoelhada sob a imagem do Cristo crucificado, cuja coroa de prata em forma de sol brilhou no fogaréu feito Tupã em sua glória solar.

As labaredas se elevaram quase nas nuvens, incontroláveis, e a fumaça negra trouxe a noite mais depressa. Em pouco mais de meia hora, só restaram cinzas fumegantes, dois sinos de bronze pendidos no chão e o cemitério dos brancos, que ficava em campo santo, nos fundos do templo.

O corpo da coroada desapareceu em meio às cinzas e aos escombros, e isso não demorou a instigar a imaginação do povo. Sempre que fizesse lua cheia, como acontecera naquela mesma noite, alguém diria ter visto pelas bandas do cemitério a alma penada da jovem índia a vagar sem rumo entre as sepulturas.

  

Ninguém jamais falou em reconstruir a igreja que havia sido projetada pelos jesuítas. Não havia recursos pra isso. E, na sua ignorância, os moradores temiam que o fantasma da  bugra os amaldiçoasse.

Com o passar dos anos, não restaria nenhum vestígio da antiga construção, pois o cemitério cresceria além dos seus limites, passando a ocupar toda a área da velha igreja. E foi assim que o templo de uma torre só, erguido pelos pretos em honra de sua padroeira, passou a ser a igreja matriz de Morro do Calvário.

___________________

Capítulos anteriores

Próximo capítulo: 22 - Hilário Duarte - 30/11/2008

          

              Registre aqui seu comentário

* Nome
* E-mail
Comentário:
* campos obrigatórios