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Romance inédito

      

           Primavera dos Mortos

                                                Jorge Fernando dos Santos  

                                               

                                                   Parte 2

                                  Capítulo 17 - Gláucia Maria

 

ZIZINHA NÃO teve culpa. Assim como eu, ela só ficou sabendo das intenções do nosso pai quando faltavam duas semanas para o casamento. Até ali, achávamos que a noiva de Leôncio seria eu.

Quando mamãe manifestou preocupação em completar meu enxoval, já que o vestido seria o mesmo que ela havia usado em seu casório e que estava guardado num velho baú de nogueira em nossa fazenda, fomos surpreendidas com a notícia.

Quem vai se casar é a Zizinha, disse o pai calmamente, enquanto picava fumo sentado à mesa da cozinha. Fumo goiano que Leôncio lhe dera de presente no dia em que almoçou conosco.

Ficamos pasmas, até mamãe dizer que era a minha mão que ele havia pedido.

Nesta casa quem manda é eu, ele retrucou sem pestanejar. Zizinha é a mais velha e não há de ficar para tia, prosseguiu. Gláucia ainda é menina e na certa vai conhecer outro rapaz, cedo ou tarde, não é mesmo? Pode até se casar aí com o primo Ascânio, que já demonstrou interesse por ela.

Naquela hora, fiquei com as mãos frias e as pernas bambas. Meu coração disparou feito um potro assustado. Tentei dizer alguma coisa em defesa do meu amor, mas era como se as palavras evaporassem junto com a saliva antes de serem balbuciadas.

Com muito esforço, falei do meu amor por Leôncio. Disse que gostava dele desde a primeira vez que o vi montado naquele baio fogoso.

Bobagem, o pai ralhou enquanto enrolava o fumo na palha. Amor é calor que esfria e paixão é febre passageira. Na sua idade, eu também desejei me casar. Meu pai deu do contra e só depois pude agradecê-lo por isso. A moça era chagásica e morreu dali a algum tempo. Na certa nem teria me dado filho. Pouco mais tarde, conheci a mãe de vocês. É uma tragédia que ela tenha ficado entrevada, evidentemente, mas, na minha idade, mulher já nem faz tanta falta assim.

Pela primeira vez na vida, mamãe tentou contrariá-lo. Mesmo na cadeira de rodas, ergueu a cabeça e disse que ele estava errado na sua decisão, pois o destino não pode ser contrariado.

O destino é um bilhete em branco e cada um que preencha o seu, retrucou o velho.

Em seguida, ele guardou o canivete no bolso, acendeu o cigarro com a velha binga de cobre, soprou a fumaça fedorenta e se retirou, dizendo que tinha mais o que fazer do que discutir com gente teimosa.

Nos dias que antecederam o casamento, chorei de ficar com os olhos inchados. Não fui à cerimônia e só revi Leôncio durante a festa na fazenda, onde compareci por mera obrigação.

Morro do Calvário em peso estava lá e os músicos da Santa Cecília animaram o arrasta-pé com choros, valsas e dobrados. Mesmo casado com a Zizinha, ele não tirava os olhos de mim. Parecia envergonhado, pois nem sabia o que dizer quando os convidados se aproximavam para cumprimentá-lo com votos de felicidades.

Padre Herculano havia realizado a cerimônia contra a própria vontade. Ignorou a armação até o instante em que viu meu pai ameaçar Leôncio, no altar do Rosário, no momento de entregar-lhe a mão de Zizinha. Sentiu-se desrespeitado e por isso não queria ir à festa.

Mamãe insistiu que ele fosse conosco, em nosso carro, pois talvez sua presença pudesse evitar coisa pior. Mas o pior aconteceria justamente devido à sua presença                                      _____________________________

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