Primavera dos mortos

                                                 Jorge Fernando dos Santos

                                                  Parte 2

                             Capítulo 18 - Ascânio Benevides

SIÁ ZIZINHA estava transtornada quando adentrou meu gabinete, na prefeitura. Queixava-se da audácia do delegado, compreende? Segundo ela, o anticristo havia ousado interrogar gente de sua vizinhança sobre a suposta relação amorosa que teria existido entre Leôncio e Gláucia Maria.

Esse homem não respeita nem mesmo os nossos mortos, disse a prima, esfregando as mãos num gesto de nervosismo, compreende?

Mandei que ela se sentasse e lhe servi uma limonada para que pudesse recuperar o fôlego num dia quente como aquele.

Quando acabou de beber, ela sugeriu que eu reclamasse em Belo Horizonte, junto às autoridades. Afinal, Dr. Galeno fora transferido para Morro do Calvário justamente por discordar do regime de exceção que governava o país e que era particularmente forte no estado, compreende?

A tal discordância dizia respeito principalmente à tortura praticada pelos órgãos de repressão política.

Havia delegados e agentes corruptos que se aproveitavam do cargo para extorquir dinheiro e roubar propriedades de pessoas acusadas de serem comunistas ou subversivas, compreende? Apesar de algumas denúncias, os poucos processos que foram abertos nunca deram em nada.

Esse era o tipo do problema que poderia colocar em risco o governo dos generais. A República estava infestada de corruptos e aproveitadores, que em nome da ordem e do progresso estampados na bandeira nacional enchiam as burras de dinheiro e silenciavam seus desafetos a todo custo, compreende?

Eu mesmo tinha correligionários que agiam de forma desonesta, mas não podia abrir mão da segurança e dos privilégios que conquistara depois de tantos anos de vida pública.

Meu pai havia servido ao Estado Novo e eu servia aos militares. Vi políticos de oposição serem cassados pelos atos institucionais e concluí que, mais uma vez, nossa família estava do lado certo do muro que dividia a nação, compreende?

Apesar de tudo, nunca tive motivos pessoais para odiar o delegado, a não ser o fato de que, pouco antes de sua chegada a Morro do Calvário, fui alertado pela direção do partido sobre suas idiossincrasias.

Por se tratar de um elemento que estava na contramão de nossos interesses políticos, eu deveria tratá-lo com reservas, compreende? Evitaria assim me comprometer com suas idéias e com o seu modo de agir no exercício da autoridade policial.

Por uma série de razões eu não poderia me negar a atender a um pedido da prima Zizinha, pessoa que sempre esteve pronta a contribuir para o sucesso dos meus propósitos políticos. Mas assim como a sabedoria popular nos ensina que não se deve cutucar a onça com vara curta, eu francamente preferia não ter que me indispor com Dr. Galeno.

A convivência pacífica era interessante para nós dois, compreende? Questão de prudência. Até porque, pelo menos até àquele momento, eu não tinha motivos para tentar prejudicá-lo. Se fizesse isso sem motivo, poderia despertar suspeita.

Era de se esperar que os poucos gatos pingados que discordavam da minha administração procurassem se aproximar dele, para fazer intrigas. Mas, pelo visto, o sujeito não estava nem um pouco interessado nas mazelas da política local, compreende? Ele olhava o mundo de cima, como se estivesse sempre montado num corcel invisível, mantendo aquele ar de xerife destemido dos filmes de caubóis.   

_____________ 

Capítulos anteriores

Próximo capítulo: 19 - Arlindo de Moura - 09/11/2008