Volta para a capa
Romance inédito

         

          Primavera dos mortos

                                                                     

                                                                      Jorge Fernado dos Santos

                                          

                                               Parte 1

                            Capítulo 7: Galeno Valadares

SOU HOMEM de pouca conversa, mas sempre gozei de respeito. Também não é para menos, pois nunca deixei de ser justo e perfeito no exercício das minhas funções.  

Um tio meu havia sido governador, mas jamais me aproveitei da influência política que parentesco ou sobrenome pudesse exercer em meu favor. Quem não tem competência não se estabelece e o prestígio só tem valor enquanto não tiramos proveito dele. Pelo menos é assim que eu penso.

Desde a decretação do Ato Institucional número 5, em dezembro de 1968, que autorizava os verdugos do regime a procederem a perseguição política no País, passei a ser visto com certa reserva pelas autoridades estaduais. Era considerado um elemento nocivo aos interesses do governo de exceção instituído pelos militares.

Minhas críticas aos generais, à tortura e às prisões arbitrárias ocorridas na capital do estado incomodavam o secretário de Segurança. Por isso ele assinou minha transferência para Morro do Calvário, lugarejo distante e fora do mapa. Fiquei sabendo que o delegado anterior havia morrido numa pescaria no rio São Francisco, picado por uma urutu cruzeiro.

Desde a minha chegada, nunca contei com a simpatia do prefeito Ascânio Benevides, solteirão convicto e ex-udenista filiado à Aliança Renovadora Nacional, o partido que dava sustentação política à ditadura. Por conseqüência, era de se esperar que eu fosse também hostilizado por Siá Zizinha e padre Wenceslau, um austríaco de rosto sangüíneo e cabeça branca que chegara ao Brasil pouco depois do fim da guerra.

Meses antes do golpe militar, com medo do comunismo e seguindo a pregação de um falso padre americano divulgado pela imprensa conservadora, a beata e seu confessor haviam organizado novenas em Morro do Calvário sob o lema de que a família que reza unida permanece unida. Consta que os dois foram à capital para participar marcha da família com Deus pela liberdade.

Depois da minha chegada ao lugarejo, e ao tomarem conhecimento de minha iniciação na Maçonaria, ambos passaram a se referir à minha pessoa como o anticristo, adorador de Baphomé, a divindade pagã com cabeça de bode supostamente cultuada pelos templários e associada a Satã pela Inquisição.

Tudo isso colocava o prefeito, o padre e a beata num prato da balança e, no outro, este que vos fala. De certo modo, fiquei em desvantagem, pois não era fácil sobreviver numa cidade do interior sem apoio do clero e dos políticos de plantão.

Naquela época, a Maçonaria se fazia presente em muitas cidades, menos ali. A loja mais próxima ficava lá em São Roque a léguas de distância.

No entanto, a partir daquele momento, o prato da balança começaria a pender para o meu lado. Nos bastidores políticos corria a notícia de que o general protestante Ernesto Geisel, recém-empossado na presidência da República, pretendia colocar freios nos militares da linha dura para reconduzir o País à democracia.

Enquanto isso, eu levaria à frente uma investigação policial sem precedentes na história de Morro do Calvário. Investigação que, modéstia à parte, poderia colocar o distante lugarejo nos anais da criminologia brasileira.

__________________

Capítulos anteriores

Próximo capítulo: 8 - Arlindo de Moura -24/08/2008