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Romance inédito

             Primavera dos mortos

 

                                                                     Jorge Fernando dos Santos

 

                                         Parte 1

                                 Capítulo 10 - Leôncio Duarte

 

DOIS MESES se passaram desde o dia em que pedi Gláucia Maria em casamento. Enquanto fazia as viagens de tropa pelas retalhadas trilhas da Estrada Real, enviei três cartas a ela falando dos meus planos para o nosso futuro.

Queria me estabelecer numa pequena fazenda que pretendia comprar no Vale do Rio Doce, para me dedicar à criação de gado leiteiro e também ao cultivo da terra. Afinal, com a abertura de rodovias e o transporte sendo feito por carretas e trens-de-ferro, a lida de tropeiro havia mesmo de estar com os dias contados.

Sonhava ter muitos filhos com a minha jovem mulher, levar uma vida simples, mas com segurança, conforto e alegria.

Queria um sítio com boa casa, plantado de pasto pra alimentar as vacas holandesas, e também um pomar com muita goiaba da branca e da vermelha pro doce feito no tacho. E marmelo em quantidade pra marmelada, manga ubá e coração de boi, que é de mais fartura, coco babaçu, macaúba, guariroba, jabuticabas, amoras e pitangas para os licores.

E não haveria de faltar os cítricos de muito caldo, como a laranja da Bahia e serra d’água, limão galego, bergamota ou tangerina. E também araçá, pinha-lisa, mamão, banana prata, fruta-do-conde e até um pé de jaca, árvore frondosa de sombra prazenteira que daria frutos pra reforçar a ração dos capados. Estes ficariam numa ampla pocilga, com piso de cimento e água corrente pra facilitar a limpeza.

Também plantaria cana pra fazer rapadura e aguardente da melhor qualidade. E haveria de ter um cercadinho de bambu para conter os canteiros de couve, almeirão, cebolinha, serralha, quiabo, tomate e ora-pró-nobis.

Sonhava ainda cultivar uma rocinha de milho, mandioca e quem sabe feijão de corda e do fradinho, cada qual em seu devido tempo de plantio.

Das plantas de parreira, cultivaria maracujá, chuchu, uma rama de abóbora moranga e outra de batata-doce.

Teria criação de galinhas poedeiras, das angolas e também da raça índia, que é mais resistente, além de patos, marrecos e gansos. Queria um cão fila pra lidar com o gado e um par de perdigueiros bons farejadores pra ajudar nas caçadas de paca e tatu em noites de lua cheia.

Isso sim é que seria vida farta, tendo ainda cavalos marchadores, inclusive um piquira pros meninos aprenderem a montar sem o risco de cair de sela alta. Nas horas de descanso, iria com eles e a patroa pra beira-rio, pescar surubins, pacus e dourados. E de tarde, depois da lida na roça, ouviria o canto de canários e curiós bons de gaiola. Aos domingos, iríamos à missa matinal pra agradecer a Deus e pedir proteção.

No entanto, nas três vezes em que retornei com a tropa à casa paterna, em Itabira, endereço meu de remetente, fiquei decepcionado ao saber que nenhuma resposta obtiveram minhas missivas.

 O que teria acontecido a Gláucia Maria desde a última vez em que nos vimos em Morro do Calvário? Estaria ela relutando em corresponder meu amor de tropeiro?

Vai ver, nos seus sonhos de donzela casadoura, não cabia a presença de homem tão rude, de mãos calejadas, acostumado a lidar com peões e animais de carga.

Talvez alimentasse sonhos de princesa, preferindo ser desposada por um doutorzinho, filho de gente rica da capital. Ou por algum janota da sua idade, já que eu era dez anos mais velho que ela.

O que eu não sabia, no entanto, é que assim como ansiava pelas respostas às minhas cartas, a paixão de minha vida também se perguntava por que motivos eu nunca lhe escrevia. O fato é que as três mensagens de amor que enviei nunca chegaram às finas mãos de Gláucia Maria, e o mistério desse desencontro só seria desvendado no dia do casório.

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