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Romance inédito

 

                  Primavera dos mortos

                        

                              Jorge Fernando dos Santos                            

 

                                         Parte 2

                       Capítulo 16 - Galeno Valadares

            PERITOS DA Medicina Legal confirmaram minhas suspeitas. O orifício na têmpora direita da caveira de Gláucia Maria havia sido feito por uma bala provavelmente disparada de um revólver calibre 32.

O projétil não fora encontrado dentro do crânio e a questão agora era descobrir onde estava a arma, a quem pertencia, quem atirou na vítima e qual teria sido o motivo do crime.

As evidências apontavam para Maria das Dores de Moura Duarte, a respeitada Siá Zizinha admirada por todos não só pela beatice, mas também pela postura conservadora e sempre coerente. Por isso eu teria que me esmerar na condução das investigações.

De outra maneira, em vez de ré num caso de assassinato, ela poderia se tornar vítima de perseguição perpetrada por um delegado subversivo pelo qual jamais nutrira a mínima simpatia. Sua ligação com gente influente como padre Wenceslau e o prefeito Ascânio Benevides, que era seu parente, na certa dificultaria o meu trabalho.

Comecei a tarefa como se fosse um desses detetives de cinema, pois não seria louco de interrogá-la logo de saída.

Uma coisa que aprendi no exercício da profissão é que o mingau quente se toma pela beirada. Eu já havia me queimado por tentar levar a lei ao pé da letra. Agora, feito gato escaldado, pretendia era agir com muita cautela.

Comecei fazendo segredo do laudo que me fora enviado da capital juntamente com os ossos de Gláucia Maria, nos quais nenhum outro sinal de violência fora identificado.

Quando meu amigo Juscelino Baptista perguntou pelos resultados da perícia, preferi dizer que ainda não havia sido concluída.

Casos como este são muito demorados, aleguei.

Não sei se o velho farmacêutico acreditou. Seja lá como for, passou um bom tempo sem fazer perguntas.

Enquanto isso, comecei a percorrer a vizinhança dos Mouras à procura de informações que pudessem ajudar na elucidação do caso.

O único investigador do nosso distrito estava hospitalizado em São Roque depois de realizar a façanha de dar um tiro no pé esquerdo com a própria arma, enquanto a limpava.

Eu não tinha o charme de um Sam Spade, mas às vezes me sentia como Humphrey Bogart no filme A Relíquia Macabra. Durante uma semana e meia, bati palmas de casa em casa, querendo saber se alguém havia notado alguma coisa estranha na noite em que Leôncio e Gláucia Maria haviam sido arrastados pela enchente.

Já havia se passado três anos desde a tragédia e ninguém se lembrava de nada que pudesse contribuir com as investigações.

Também perguntei se escutaram algum disparo naquela noite e todos disseram que chovia e trovejava muito, o que naturalmente os impediu de ouvir qualquer outro ruído, por mais estridente que fosse.

  

Pelo visto, eu teria muito trabalho pela frente e aquilo me fez sentir como se fosse um dos primeiros bandeirantes a garimpar ouro no Ribeirão das Mortes. Ninguém sequer deu asas à imaginação quando comentei sobre o suposto relacionamento amoroso entre a irmã e o marido de Siá Zizinha.

Dessas coisas a gente não fala, doutor, foi o único comentário feito por seu Adão, um velho descendente de escravos e rei de congado que morava num barraco próximo à casa dos Mouras. Perguntei por que não, olhando-o no fundo dos olhos.

O homem parecia ter sofrido uma paralisia facial que lhe entortara o semblante. Falava com dificuldade, como se soprasse as palavras.

O coração tem lá suas razões, disse ele. Não cabe a um mortal julgar os semelhantes.

No momento em que deixava o barraco do banto, avistei o moço Hilário debruçado na janela de sua casa, com o olhar perdido no infinito. Aproximei-me e disse boa-tarde.

O pobre rapaz resmungou alguma coisa ininteligível. Perguntei se sua mãe estava em casa e ele sacudiu a cabeça, sinalizando que não.

Fazia muito calor naquele dia e resolvi tirar o paletó, jogando-o nas costas como se fosse um saco vazio. Esse gesto fez com que o Rossi .38 de cano curto em minha cintura se mostrasse quase por inteiro.

O rapaz viu a arma de coronha marrom e arregalou os olhos numa expressão de medo.

Fique tranqüilo, não vou atirar em você, falei, tentando deixá-lo à vontade.

Ele ficou ainda mais nervoso, quase em pânico.

Tirei o revólver do coldre e descarreguei o tambor, colocando os seis cartuchos no bolso da calça. Aproximei-me da janela e depositei a arma no batente, dizendo ao rapaz que poderia segurá-la se quisesse.

Para minha surpresa, Hilário recuou, sacudiu a cabeça entre as mãos e sumiu dentro de casa, como se tivesse visto assombração.

Nesse momento, sem que eu percebesse, Siá Zizinha se aproximava pelo passeio. Provavelmente, havia assistido à cena de longe e, sem entender direito o que se passava, foi logo perguntando que diabos eu estava fazendo em frente à sua casa.

Surpreendido feito uma criança em plena travessura, peguei o revólver e o coloquei de volta no coldre.

A beata só não me chamou de santo e rapadura. Disse que já era do seu conhecimento que eu rondava a vizinhança a fazer perguntas sobre ela e a família.

Preferi não bater boca. Acendi um cigarro e segui meu caminho enquanto ela ameaçava ir se queixar ao secretário de Segurança, em Belo Horizonte, amigo do prefeito Ascânio Benevides.

Fiquei intrigado com a reação de Hilário diante do revólver. Até então, mesmo sendo doente mental, ele parecia ser uma pessoa dócil e relativamente tranqüila. Provavelmente, não seria capaz de imaginar quanto uma arma de fogo pode ser perigosa.

Ou eu muito me enganava, alguma coisa havia acontecido em sua vida para que se assustasse tanto ao se deparar com um revólver. Pelo visto, o rapaz havia sofrido um trauma e esse era mais um mistério que eu teria que desvendar.

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