Volta para a capa
Romance inédito

     

       

           Primavera dos mortos

 

                                                            Jorge Fernando dos Santos

  

                                                   Parte 2

                                Capítulo 20 - Juscelino Baptista

EM MORRO do Calvário sempre ocorreram episódios de requintes folhetinescos, que também lembravam as narrativas de cordel. A cultura do lugar, sua história e o tipo de gente que o habitava contribuíam para alimentar uma atmosfera quase fantástica.

Muitas vezes, quando me dava ao trabalho de ler um romance ou de escutar radionovelas como O Direito de Nascer ou Jerônimo, o Herói do Sertão ao lado da minha falecida esposa, deduzia que a nossa realidade superava a imaginação de muitos autores inspirados.

Dizem que, antes de morrer, padre Herculano rogou uma praga no coronel Arlindo de Moura e sua descendência. Talvez por ser farmacêutico, profissional naturalmente mais interessado nos segredos da ciência do que nas crendices populares, cheguei a duvidar dessa história. Mas, com o passar do tempo, aprendi a respeitar certas coisas que os cientistas não conseguem explicar.

Li na revista Seleções que o vôo do besouro contraria os princípios da aerodinâmica, pois suas asas são minúsculas e não conseguiriam sustentar-lhe o peso em pleno ar. E, no entanto, mesmo que a ciência não explique, o fato é que ele voa.

Sete dias depois da morte do vigário, Morro do Calvário recebeu a notícia de que o pracinha Hilário de Moura havia desaparecido em ação, na região montanhosa dos Apeninos, no Norte da Itália.

Dizem que sete é conta de mentiroso, mas o que eu narro aqui é a mais pura verdade. Arlindo e a prima Helena ficaram inconsoláveis. Queriam pelo menos ter o direito de enterrar o corpo do filho, desejo este jamais realizado.

Em telegrama enviado à família, a Força Expedicionária Brasileira lamentava informar que todas as buscas haviam sido inúteis e que o terreno onde se dera o combate com as tropas alemãs era muito acidentado. Para piorar a situação, um rigoroso inverno castigava os pracinhas e as tropas só não foram soterradas pela neve devido à ajuda dos americanos, que forneceram alimentação adequada, cobertores e uniformes de lã.

Daquele dia em diante, o coronel nunca mais foi o mesmo. Perdeu a altivez e passou a falar sozinho pelos cantos da casa. Durante o tempo que Morro do Calvário ficou sem vigário, ele abriu e fechou a igreja todos os dias para que o povo rezasse pela alma de seu filho.

As beatas comentavam que aquele gesto era, na verdade, uma penitência em memória do saudoso padre Herculano.

O velho também amaldiçoava Getúlio Vargas, dizendo ser o presidente culpado da morte de Hilário e de outros brasileiros mandados para o front.

Como a imaginação popular corre solta por essas bandas, um mês depois o povo passou a dizer que o filho caçula do matador do padre havia nascido morto e com um par de chifres na testa.

   

Não acreditei nos boatos, mas fiquei surpreso ao tomar conhecimento de que o tal Valdivino havia se suicidado com um tiro no céu da boca depois de passar dois dias afogando as mágoas na cachaça.

A criança havia mesmo morrido durante o parto e tinha duas bossas na cabeça, mas que não chegavam a ser chifres.

Nenhuma desgraça é grande o bastante para impedir que a vida siga o seu curso feito um rio caudaloso. Com o passar do tempo, Leôncio e Zizinha se acertaram e ela deu à luz um filho que recebeu o nome do tio desaparecido na Itália.

O parto teria sido normal se ela não tivesse o quadril estreito. Depois de muito trabalho, dona Francelina Papuda, a parteira mais respeitada do lugar, conseguiu salvar mãe e filho. No entanto, o menino que teria sorrido ao nascer, não demoraria a apresentar sinais de retardo mental.

___________________

Capitulos anteriores

Próximo capítulo: 21 - Fogaréu - 23/11/2008

                  

                 Registre aqui seu comentário

* Nome
* E-mail
Comentário:
* campos obrigatórios
      
-