Volta para a capa
Romance inédito

 

Primavera dos mortos

Jorge Fernando dos  Santos

Parte 3

Capítulo 24- Padre Wenceslau

Dias depois de o aguaceiro ter desenterrado esqueletos no cemitério municipal, um cão sem dono, desses que perambulam pelas ruas de qualquer lugarejo, cruzou a praça da matriz com uma tíbia humana entre as mandíbulas. Num lugar sem maiores atrativos como Morro do Calvário, aquilo atraiu a atenção de todos e acabou por virar um espetáculo.

Não demorou muito, o delegado e alguns soldados entraram em ação a perseguir o cachorro na tentativa de arrancar-lhe o osso da boca. A cena pareceu-me patética e, apesar disso, muita gente ria do ridículo da situação.

Depois de minutos de peleja, o tal Dr. Galeno finalmente se apoderou da tíbia e ordenou a um dos praças que a encaminhasse para seu Vicente, no cemitério, para que descobrisse de qual sepultura ela havia saído e lá a enterrasse novamente.

Lembrei-me dos campos de batalha na Europa, onde por várias vezes vi urubus e cães famintos devorando cadáveres insepultos.

De costas e na horizontal, com as barrigas estufadas pela ação dos gases e os bolsos revirados pelo avesso, os soldados eram todos iguais, independentemente de patentes ou nacionalidades. Como oficial do Reich, eu confiava na supremacia de nossas tropas, mas temia acabar como aqueles homens.

Certa vez, no Norte da Itália, enfrentamos um regimento de soldados brasileiros. Estávamos quase sem munição e me lembro de o quanto foi difícil a batalha. Por mais que eu pressionasse os oficiais subalternos, nosso regimento acabou batendo em retirada.

Durante a fuga, meu veículo foi atingido por um obus. O motorista morreu na hora e eu fui arremessado para dentro de uma vala cheia de neve. Devo ter desmaiado e ali permaneci até ser encontrado no dia seguinte, por um pracinha brasileiro.

Já havia morado em Lisboa, a serviço do exército alemão, antes da guerra. Estudei latim e dominava um pouco do idioma português. Pelo que entendi, o soldado havia se separado de seu regimento. Assim como eu, também estava perdido feito uma ovelha desgarrada do rebanho.

Surrupiou a Luger de meu coldre, manteve-me as mão amarradas, mas foi mais gentil que eu teria sido com ele. Era um jovem inexperiente e teve a sorte de não nos conhecermos em situação inversa. Na certa eu o teria matado sem pestanejar.

Um estilhaço havia se alojado em minha perna direita e, se não fosse aquele inimigo que ajudou a caminhar em busca de abrigo contra a nevasca que se aproximava, provavelmente eu teria morrido.

Um cabo alemão também desgarrado de seu regimento nos encontrou por acaso e abateu o jovem soldado com uma rajada de metralhadora.

Com as mão desamarradas, recuperei minha arma e revirei os bolsos do morto em busca de documentos. Seu nome era Hilário de Moura, tinha 19 anos e era de um lugar chamado Morro do Calvário. Em sua carteira havia também uma carta assinada pelo pai, Arlindo de Moura, contendo junto uma foto da família.

_______________________

Capítulos anteriores

Próximo capítulo: 25 - Gláucia Maria - 21/12/2008

         Deixe seu comentário registrado aqui

* Nome
* E-mail
Comentário:
* campos obrigatórios
      

 

- Link1
- Link2
- Link3