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Romance inédito

                                   

                            Primavera dos mortos

                                                                      

                                                                    Jorge Fernando dos Santos

                                                     Parte 1

                                         Capítulo 2 - Siá Zizinha

O VELHO GALO índio bateu asas no terreiro. Pulei da cama antes mesmo de ouvir o seu canto madrugador. Joguei sobre a camisola de seda branca o xale preto de franjas compridas e escancarei a janela do quarto que dava para os fundos da casa.

Devo ter sido a primeira pessoa a despertar em Morro do Calvário, naquela manhã. A água ainda pingava das telhas coloniais escurecidas pelo tempo.

Empoleirado na goiabeira do nosso quintal, o galo castanho de esporas serradas e um olho vazado bateu as asas novamente e emitiu um canto curto e grave, que ecoou pela vizinhança.

Peguei sobre a cômoda de jacarandá o tacho de cobre cheio d’água recolhida de uma goteira durante a noite. Ao despejá-la no terreiro, deliciei-me com o cheiro de mato molhado na brisa matinal e também admirei o efeito dos primeiros raios de sol no horizonte alaranjado, por cima das casas.

A essas alturas, o campeão das rinhas já era respondido em coro pelos galos da redondeza. Bateu asas pela terceira vez, todo garboso, para logo em seguida saltar no chão. Com ares de dever cumprido, começou a cacarejar enquanto esgravatava o solo à procura de alimento.

Não demorou muito para que as galinhas se juntassem a ele na mesma função. A carijó de pescoço pelado reapareceu no quintal depois de três semanas de ausência, acompanhada por uma dúzia de pintinhos.

Pelo visto, aquela devia ser a primeira refeição da ninhada. Dois deles brigavam por uma minhoca, que espicharam no bico até arrebentar ao meio. Cada qual correu para o seu lado e o pequeno bando se dividiu em dois grupos.

Um sabiá pousado na jabuticabeira de seu Adão, do outro lado da cerca de bambu, entoou um canto tão melancólico que senti o coração apertar. Nem parece que choveu essa noite, resmunguei comigo mesma ao ver o céu azulando nas bordas.

E foi nesse instante, ao mover a cabeça na direção da rua já iluminada pela primeira luz do dia, que levei um grande susto. Esfreguei os olhos para afastar as remelas e melhor enxergar o motivo do meu espanto.

Valei-me, meu São Jorge guerreiro, suspirei sobressaltada, enquanto fazia o nome do Pai com o coração retumbando no peito.

Do outro lado da cerca de arame farpado, aninhada num monturo de folhas enlameadas entre as raízes do velho jatobá do passeio de casa, uma caveira de cor branco-amarelada feito marfim me espiava pelo oco dos olhos e até parecia sorrir um riso de escárnio.

Nunca fui de acreditar em assombração ou em almas de outro mundo. Quem teme ao Todo Poderoso não alimenta superstições, sempre pensei. Depois da morte, os bons vão para o céu e os maus, para o inferno. O purgatório, a meu ver, é a ante-sala do juízo final e somente Deus é quem pode julgar os mortais.

Eu havia saído da cama antes de rezar o Salve Rainha e talvez por isso tenha sentido um arrepio percorrer o corpo. Cogitei um castigo dos céus por alguma boa ação que deixara de praticar ou por um mau juízo precipitado, desses que perpassam o pensamento sem nem mesmo pedir licença.

Oxalá não fosse coisa feita, pensei, ou um sinal do anjo da morte que viera me buscar tão cedo. Orai e vigiai, diz o Senhor. Nesse instante esconjurei!

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 Próximo capítulo: 3 - Leôncio Duarte