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Romance inédito

    

        Primavera dos mortos

                                                 Jorge Fernando dos Santos

                                        Parte 3

                        Capítulo 30 - Leôncio Duarte

A PAIXÃO É fogo que devora a alma e o amor é bálsamo que alivia a dor. Minha mãe disse isso pouco antes de morrer. Conversávamos à sombra da mangueira no terreiro de nosso pequeno sítio, em Itabira do Mato Dentro.

Dona Irene se dizia preocupada comigo. Devido à tísica que lhe esgarçava os pulmões, ela pressentia estar com os dias contados e não teria tempo suficiente para conhecer uma nora, fosse quem fosse. Muitos anos depois é que pude entender o sentido daquelas palavras.

O que eu sentia por Gláucia Maria não era amor de verdade. Isso porque em vez de me livrar da solidão que sempre carreguei feito cruz, nossa convivência foi pouco a pouco me dilacerando o que restava da alma.

Em nossos primeiros encontros consentidos por Maria das Dores, eu experimentava uma estranha aflição. Uma espécie de vertigem que me arrebatava o pensamento feito um redemoinho. O coração apertava e foi se apertando cada vez mais, com o passar do tempo.

Vai ver que estou ansioso de tanto amor, cheguei a pensar, pois bebia do seu fogo como um cavalo sedento bebe da vereda mesmo quando a água é turva e amarga.

Com o tempo isso vai passar, pois deve resultar do desejo que represei, dizia a mim mesmo na calada da noite depois de me deitar com ela em sua cama perfumada de alecrim. Durante alguns anos, nossa convivência até que foi sossegada, embora algumas vezes a culpa me roubasse o sono.

Com o passar do tempo, por mais que eu desejasse o amor de Gláucia Maria, comecei a perceber que já não era capaz de satisfazê-la por completo. Com isso, voltei a me sentir sufocado pelo desejo. Seus beijos já não me acendiam o fogo como antes. E, apesar disso, eu queria mais, sempre mais.

Provei da aguardente do seu sexo e me embriaguei muitas vezes. Bêbado incurável, desses que enlouquecem a ponto de ver o mundo invisível que rodeia os mortais, eu havia me tornado dependente do vício. Mas, de repente, como se fosse um castigo de Deus por  ter desonrado o meu lar e a mulher que desposei, senti que já não podia mais me embriagar como antes. E só então concluí que o sentimento que eu havia alimentado por quase 30 anos era pura obsessão. O sonho se transformara em pesadelo.

Foi nesse momento que me lembrei de dona Irene e de suas sábias palavras pronunciadas naquela tarde quente, à sombra da velha mangueira.

É preciso ter nervos de aço para resistir ao fogo da paixão, dizia ela. Fogo esse que, no começo, nos aquece a alma e nos enche de prazer, mas depois de algum tempo pode nos queimar e causar dor. Seja de ferro como o Cauê, meu filho, e não se renda aos prazeres da carne, que a carne é traiçoeira igual à serpente do Paraíso e por isso apodrece depois da morte.

E foi assim que comecei a perceber que Gláucia Maria já não era mais o anjo azul que vi pousar na janela da casa grande, quando entrei em Morro do Calvário pela primeira vez. A água que ela me deu naquele dia para saciar a sede havia se convertido no mais ardido fel.

Aos meus olhos, ela havia se transformado na mulher-serpente cantada em verso por um violeiro que certa vez ouvi tocar em rio-abaixo, afinação que aprendida com o diabo num pacto sinistro no qual o músico oferece a própria alma em troca do sucesso.

                      Mulher-serpente morde a gente, mas não sente

                      O veneno sai do dente e paralisa o coração

                      E o caipira, alma boa, não percebe

                      Que a víbora persegue

                      O escravo da paixão...

Quanto mais o tempo passava, mais a dúvida corroía o meu espírito feito a mineração no Pico do Cauê e a tuberculose nos pulmões de minha mãe. Mas se o ferro resiste à corrosão e os pulmões humanos reagem à doença até o último suspiro, eu, ao contrário, me aprazia enquanto era consumido no fogo de tamanha paixão.

Certa noite, no escuro do quarto, ao som da chuva no telhado, veio-me um lampejo da verdade e então pressenti o bafio do desespero a rondar o meu leito.

A partir daquele instante, quando refleti sobre a prosa que havia mantido com minha mãe pouco antes de sua morte durante uma crise de hemoptise, resolvi que era chegado o tempo de ignorar as tentações da carne.

Dessa vez eu não fui ao quarto de Gláucia Maria e tampouco a procurei na noite seguinte, e na noite que se sucedeu àquela. Manhãs depois, ela quis saber o que se passava comigo.

Expliquei que talvez fosse o efeito da idade, pois o fogo que me alimentara o ânimo durante tantos anos já não dispunha mais de lenha e por isso seria melhor apagar para sempre a brasa de nossa paixão.

Você precisa se cuidar, ela disse. Os negros conhecem uma raizada que dizem fazer milagres nesses casos.

Falei que não estava interessado em milagres ou feitiçarias e que talvez aquilo fosse um sinal de que deveríamos nos arrepender do nosso pecado.

O amor não é pecado, ela falou.

Mas a paixão é loucura, retruquei. E a partir daquele dia ela resolveu despertar-me o ciúme como se quisesse se vingar do meu desinteresse ou atiçar a brasa que jazia adormecida no carvão da minha alma.    

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